Por que a oposição às cotas raciais nas universidades?
A rejeição das cotas raciais faz parte da democracia. Não obstante, o discurso dos discentes e docentes faz pensar: por que tamanha oposição e agressividade? Será possível compreender esta postura apenas pelos argumentos ou é inerente à natureza da universidade? A minha hipótese é que a contenda sobre as cotas expressa algo mais profundo do que ser contra ou a favor. É o próprio caráter da universidade e do seu papel na sociedade que se encontra sob questionamento.
A universidade é, por excelência, o espaço das elites, expressão da influência desta no âmbito da sociedade – e isso é particularmente visível nos cursos de elite, os mais concorridos. A universidade é pública. Porém, da mesma forma que o Estado universaliza a cidadania através do reconhecimento dos direitos políticos, igualiza a todos na universalidade da lei e na categoria cidadão/cidadã e, assim, coloca um véu sobre a realidade social desigual, a universidade pública escamoteia as desigualdades de oportunidades fundadas em diferenças raciais, sociais e culturais. Se a universidade é para todos e, em tese, qualquer indivíduo, desde que se esforce, pode ingressar nela, ela o é no discurso, na letra da lei, no mito de que o vestibular é um critério justo para definir quem entra. A universidade é, por sua natureza social, excludente. As exceções dos menos favorecidos social e economicamente que conquistam o direito de freqüentá-la, e até de seguir carreira e se tornarem professores universitários e doutores, apenas confirmam a regra.
A universidade é intrinsecamente elitista. Não é por acaso que a resistência às cotas raciais aumenta na medida em que a escolaridade e o nível de renda são maiores. Isto tem uma relação direta com a oposição tenaz em cursos cujo perfil discente demonstra nível de renda maior (como no Direito).
Escolaridade e nível de renda caminham juntos. A classe média e os que se encontram acima, os mais aquinhoados financeiramente, são os que ocupam em sua maioria as vagas na universidade. No fundo, até mesmo pelo investimento que fazem na preparação dos seus filhos, vêem a universidade como sua. As cotas lhes parecem um perigoso artifício para tirar um direito adquirido pela posição que ocupam na sociedade. Até admitem que os pobres concorram, mas não reconhecem que o ponto de partida destes é inferior. No limite, acabam culpando o pobre pela situação em que se encontra.
Na universidade prevalece um tipo de saber pretensamente científico e racional, branco, eurocêntrico e excludente da cultura e saber populares. Eis os alicerces da nossa universidade, os quais foram sedimentados pela colonização que, seguindo a modernidade ocidental, impôs um padrão dominante erigido como novo dogma substituto à teologia. Em outras palavras, na universidade assimilamos acriticamente o modelo racional científico de saber, oficial e pretensamente neutro, legitimado em si mesmo. São os fundamentos elitistas desse saber e cultura oficiais, reservados aos que, desde a infância, trilham os caminhos e são preparados para incorporá-las: pois, suas famílias têm condições econômicas e culturais para tanto, isto é, são depositários do “capital social” e “capital cultural”. O vestibular, portanto, termina por escolher os escolhidos social e economicamente, isto é, os mais preparados pelas próprias condições de vida para passar pelo funil.
Raça Humana é um documentário que contribui para esta reflexão. Vale a pena assistir!
* Com direção e roteiro de Dulce Queiroz e duração de 42 minutos, Raça Humana foi vencedor da categoria Documentário, na 32ª edição do Prêmio Vladimir Herzog de Anisitia e Direitos Humanos, em 2010. Para mais informações e download do vídeo em alta resolução, acesse: http://www.camara.gov.br/internet/tvcamara/?lnk=RACA-HUMANA&selecao=MAT&materia=100406&programa=138&velocidade=100K