segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Negra Brasília

Correio Braziliense

Negra Brasília

Conceição Freitas

Treze brasilienses vão contar, de hoje a 30, como é ser negro e morar na capital do país

Nem todos nascem sabendo que são negros. No país que até hoje renega ou disfarça o preconceito racial, os de pele parda ou preta têm de aprender que pertencem a uma matriz comum, que são herdeiros de 380 anos de escravidão e de mestiçagem com o português e com o índio. Na capital dos brasileiros, os afrodescendentes são tratados de modo singular e ao mesmo tempo perverso. A segregação é espacial. Enquanto o Plano Piloto é 70% branco, o Itapoã é 79% negro (preto pardo) ou 64% pardo.

No ano em que se comemora o centenário de nascimento do abolicionista Joaquim Nabuco, o Correio Braziliense vai contar a história de negros brasilienses, homens e mulheres, adolescentes e adultos, moradores de áreas nobres e de cidades-satélites. Relatos em primeira pessoa de quem experimenta o preconceito, as dúvidas, as angústias, os medos, a raiva, as conquistas, a dor e a delícia de ter a identidade negra.

A capital do país é mais negra do que se dá conta. A diferença entre os de pele parda ou preta e os de pele branca é de 36,8%. Em números absolutos: dos 2,4 milhões de moradores do Distrito Federal, 1,3 milhão são negros e 1 milhão são brancos, segundo dados da Pnad/2007, tabulados pelo Laeser/UFRJ. Mesmo quando se leva em conta os moradores da capital do país que se declaram pretos (179 mil), os pardos ainda são flagrante maioria, 1,2 milhão, 17% a mais que os brancos.A distribuição espacial de brancos e negros no Distrito Federal é segregadora. Ao branco está reservado o Plano Piloto e os lagos Sul e Norte, e ao negro, as cidades-satélites.

Quanto menor a renda, maior o número de habitantes de pele parda ou preta, segundo revelam dados da Codeplan. São números antigos, de 2004, que estão sendo atualizados desde 1º de setembro passado, quando 40 pesquisadores começaram a visitar 24 mil moradias de 30 regiões administrativas. Entre as perguntas que estão sendo feitas aos chefes de família entrevistados, está a da cor. São cinco as opções oferecidas: branco, pardo/mulato, negro, indígena, amarelo ou não definido. Até que se conclua, em oito meses, a nova Pdad, a pesquisa domiciliar de Brasília, o que se tem são os dados de seis anos atrás que demonstram que a segregação espacial na capital do país é também uma segregação de raça.

“A diferença é espacial. Aqui, a pobreza está confinada na periferia. No Rio de Janeiro, por exemplo, grande parte dos pobres mora ao lado dos bairros nobres. A empregada doméstica carioca não precisa pegar ônibus às quatro da manhã para chegar ao trabalho, basta descer o morro. Aqui precisa. Mas no fundamental, não há nenhuma diferença de Brasília em relação ao país. Aos brancos, estão reservados os melhores lugares. Aos pretos e pardos, os piores”, diz Mário Theodoro, diretor de cooperação e desenvolvimento do Ipea, negro, morador do Lago Sul.

Morador eventual de Brasília há dois anos, o ministro das Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Eloi Ferreira de Araújo, já se deu conta dessa segregação. “Nos ambientes que frequento percebo uma invisibilidade muito grande da população negra. Fui recentemente numa escola de Ceilândia e vi um montão de negros. Mas no Plano Piloto, eles são invisíveis.”

O Plano Piloto tinha, há seis anos, 70 mil chefes de família, dos quais 70% eram brancos, 19% eram pardos/mulatos e 6,3% eram pretos. No Lago Sul e Lago Norte, o percentual era de 80% de branco para 20% de preto, pardo, amarelo e indígena. No Itapoã, a proporção se inverte: 64% dos chefes de família são pardos/mulatos; 8% são pretos e 15% são brancos. No Recanto das Emas, os números também viram do avesso em relação às áreas nobres da cidade: dos 24 mil chefes de família entrevistados, 66% se declararam pardos/mulatos, 7%, pretos e 25% brancos.

Preto como a Nigéria

“O Brasil é o segundo país mais negro do mundo. Só perde para a Nigéria, nação mais populosa da África.” Assim, o professor Marcelo Paixão, coordenador do Laeser, começou palestra a ativistas do movimento negro e jornalistas latino-americanos, em Manágua, no mês passado. Dito assim, parece um delírio, mas há uma verdade númerica e cultural na afirmação. de antemão, é preciso ressaltar que o meio acadêmico, o ativismo negro e os formuladores das políticas públicas reconhecem como sendo de cor negra todos os brasileiros que se autodeclaram pretos e pardos. Ou cor de café, chocolate, escurinho, mestiço, cor de burro fugido, quase-negro, queimado, roxo, mulatinho, tostado, retinto, como os entrevistados pela Pnad de 1976 se designaram, quando lhes foi perguntada a cor da pele. Naquela época, o IBGE ainda não apresentava as opções de escolha dos censos mais recentes: branco, pardo, preto, amarelo, indígena.

Estimativas que devem se comprovar com a tabulação do Censo 2010 indicam que o Brasil já é mais negro (preto pardo) que branco. Tabulações feitas pelo Laeser/UFRJ a partir de dados do Pnad/2007, indicam que são 93,7 milhões os brasileiros de pele clara e 94,4 milhões os de pele escura, cor de canela, moreno-jambo, negrota, cabocla, corada ou bugrezinha escura. A diferença numérica entre brancos e negros é bem pequena, de 0,7%, mas pode aumentar. desde 2008, que o IPEA já trabalha com a perspectiva de que os negros são maioria no país. A expectativa agora é de que, divulgados os dados do censo, se constate que essa hegemonia é absoluta, ou seja que pretos e pardos, juntos, compõem mais de 50% da população brasileira, mais que a soma de brancos, índios e amarelos.

O consenso nos meios acadêmicos, governamental e ativista de que negro é igual a preto pardo deve-se a uma constatação. “Já se comprovou, do ponto de vista estatístico, que as populações pretas e pardas têm características muito parecidas em indicadores de renda, de educação, saúde, saneamento básico, nível de emprego. É um grupo homogêneo”, explica Mário Theodoro, diretor de cooperação e desenvolvimento do Ipea. O que significa dizer que ter a pele um pouco mais clara, amorenada, cor de café, corada, bronze ou pouco clara não abre caminho no mundo mais bem servido dos brancos.

Por que o número de negros tem aumentado no Brasil? São vários os fatores, entre os quais a valorização estética, social cultural da afrodescendência. Como explicou Marcelo Paixão, em texto publicado pelo Pnud sobre o aumento da população negra: “A redução da taxa de fecundidade das mulheres brancas se produziu a um ritmo superior ao verificado entre as mulheres pretas e pardas, uma maior intensidade da redução da mortalidade infantil e na infância entre os filhos de mulheres prestas e pardas e uma redução das desigualdades entre as esperanças de vida ao nascer da população branca e as da população preta e parda”. Somam-se a eles o avanço do movimento negro e as políticas públicas para a promoção da cidadania afrodescendente que deixaram o brasileiro mais à vontade para reconhecer a ascendência africana em seus traços físicos, na textura do cabelo, na genealogia da família e na cor da pele.

Vista no mapa, a tonalidade da pele brasileira se distribui geograficamente de modo concentrado: o Sul, o Sudeste e parte do Centro-Oeste é branco, com a exceção de nichos de negritude, no Rio, São Paulo, Minas Gerais e Mato Grosso do Sul. O Norte e o Nordeste e parte do Centro-Oeste é negro (preto pardo). É o que demonstra o mapa da distribuição espacial da população segundo cor ou raça, pretos e pardos, feito em 2000 pelo IBGE em convênio com a Seppir. O Distrito Federal está incrustrado numa região de razoável concentração de população negra. Há uma explicação histórica: as minas de ouro de Goiás trouxeram para o estado, entre os séculos 17 e 18, considerável leva de escravos. O historiador goiano Gelmires Reis (1893/1979) escreveu num de seus 28 livros sobre a história de Luziânia que, em 1763, havia 13 mil escravos no município, para uma população de 16 mil habitantes. Tanto assim que a população negra goiana é 45% maior que a branca.

Glossário

IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

LAESER - Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro

PDAD - Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílio

PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio

PNUD - Programa das Nações Unidas para o desenvolvimento

Livro em que consta o texto de Marcelo Paixão — derechos de La población afrodescendiente de América Latina: desafios para su implentación

Todas as cores

Em 1976, a PNAD investigou pela primeira vez a cor dos brasileiros. Coube aos entrevistados definir seu tom de pele. Seguem algumas das 136 tonalidades declaradas

Alva

Alvo-escura

Alvo-rosada

Amarelo-queimada

Avermelhada

Azul

Azul-marinho

Bem-branca

Bem-clara

Branco-melada

Branco-pálida

Branco-queimada

Branco-suja

Bronzeada

Bugrezinha-escura

Burro quando foge

Cabocla

Café

Café com leite

Canela

Chocolate

Clarinha

Cobre

Corada

Cor de café

Cor de canela

Cor de ouro

Cor de rosa

Crioula

Encerada

Enxofrada

Esbranquecimento

Escurinha

Fogoió

Galega

Jambo

Laranja

Lilás

Lourinha

Marrom

Meio-amarela

Meio-branca

Meio-morena

Meio-preta

Melada

Mestiça

Morenão

Moreninha

Morena bem chegada

Moreno-jambo

Moreno-fechada

Moreno-roxa

Moreno-trigueira

Mulatinha

Negrota

Pálida

Pardo-escura

Polaca

Pouco clara

Pouco morena

Pretinha

Puxa pra branca

Quase-negra

Queimada de praia

Retinta

Roxa

Ruça

Sapeca

Tostada

"Você sabe a cor da sua alma?"

Minha avó era índia, meu avô africano e meus pais, baianos. Somos nove irmãos ao todo. Tinha 18 anos quando vim para Brasília. Era aquela animação, aqui dava muito emprego. Na minha cidade havia uma serraria e por ela passaram os caminhões cara-chata que vinham trazer madeira para a nova capital. Um dia um senhor falou pra mim: ‘Rapaz, vamos para Brasília. Lá está um movimento muito bonito e você vai se desenvolver mais nas suas atividades’. Eu já mexia com mecânica, mas era pouquinha coisa. Não havia mais do que cinco carros na cidade. Tinha interesse em vir para a cidade grande, queria aprender. Cheguei aqui em 1960 naquela empolgação. Eu estava com 18 anos e meu primo me disse que se eu fosse pra GEB (Guarda Especial de Brasília) era a mesma coisa que servir o Exército. Quando dei fé, estava na polícia. Fiquei lá um ano, sem salário, porque eles davam só uma gratificação. Quando dei fé, estava na polícia. ‘Ah, isso aqui não é pra mim, não.’ Aí esse mesmo primo me arrumou para trabalhar numa representante da Chevrolet.

Fui desenvolvendo, desenvolvendo até que fui a São Paulo fazer curso pela Chevrolet. Aí apareceu o apelido de Sabonete. O curso era de setenta e poucas horas. No final, a Ângela Maria veio cantar para o pessoal. Na época, ela era tudo. Terminamos o curso pouca hora antes do show. Todo mundo tinha de correr para tomar banho. Quando cheguei no meu armário, cadê o sabonete? Tinha sumido. Quando soube quem havia pego, xinguei a mãe do cara e ele veio de lá igual a uma fera. Nos agarramos em cima de um andaime e caímos do segundo andar. Batemos lá no chão e foi aquela bagunça. A turma não apartava. Ficava era batendo palmas.

Quando voltei para Brasília, quem estava no curso comigo passou a me chamar de Sabonete. Não gostei, comecei a brigar e acabou que o danado do Sabonete não saiu mais. Até hoje tomo três banhos por dia, se não mais. Tomo banho para vir para o serviço, meio-dia eu tomo banho, à noite eu tomo banho novamente e se suou o corpo eu estou tomando banho. Não aguento ficar com o corpo pregando. Naquela época eu gostava do sabonete Phebo, era o que mandava.

A DKV tinha me convidado para trabalhar pelo dobro do salário. Fui. Fiquei seis anos nessa firma e resolvi trabalhar por conta própria. Vim para o Núcleo Bandeirante e me instalei na BR [060]. Coloquei o nome lá: Oficina de DKV. Passei uns três meses sem nenhum cliente. Aí um motorista de praça meu amigo viu aquilo, fez uma placa e botou: Oficina do Sabonete. E aqui estou eu. Naquela época, o pessoal que vinha do Rio de Janeiro já vinha recomendado. Eu fazia a revisão dos carros para viagem e fui ganhando a praça.

Bati em muito garoto e apanhei muito também por causa do preconceito. Uma vez eu dei uma pedrada na testa de um garoto galego que rachou a testa dele. O cara desfazia da minha cor, eu apelava; desfazia da cor da minha mãe, eu apelava. Briguei muito. Me chamavam de pé de macaco, neguinho, prego, tição. Aí eu explodia, batia, apanhava e quando chegava em casa apanhava de novo porque minha mãe não queria que eu reagisse. Sorte minha é que graças a deus nunca aconteceu nada grave. Mas foi por pouco. As pessoas até hoje dizem que não existe preconceito, mas há sim, não tem jeito.

Aqui em Brasília, tive que aprender artes marciais para tirar um pouco daquela raiva. Com as artes marciais, aprendi a respeitar o ser humano porque ele é muito frágil. Hoje eu sei que se for revidar eu vou ser mais ignorante do que o cara. O que eu valorizo muito hoje é eu chegar, comprar e pagar. Não quero nem saber se sou preto, entro em qualquer lugar e não estou nem aí. Estou comprando e pagando. Se você é profissional, tem saúde e tem dinheiro, você é bonito. É que manda.E eu gosto de andar de terno. Quando eu tinha lambreta só andava de terno. Fiz até um crediário na Bibabô — lembra da Bibabô?* — só para comprar terno. Naquela época, negro gostava muito de terno de linho, terno claro, e minha mãe tinha o capricho de engomar o bicho, chega ele ficava em pé.Minha mãe sempre foi do lar e meu pai mexia com fazenda em Mato Grosso. Trouxe todos os meus parentes para Brasília. Ia trazendo, ia trazendo. Minhas irmãs são todas funcionárias públicas. Eu mudei a vida de todos eles. Meus quatro filhos trabalham comigo aqui [na Retífica Sabonete, em Taguatinga].

Hoje, se a pessoa me chamar de negro, não está me ofendendo, não. Agora, se o camarada chegar na minha oficina e disser ‘isso é serviço de preto’, ele leva uma bolacha na hora. Mas se chegar ‘ô, negão’, isso pra mim é carinho. E se disser que meu serviço é de preto, leva uma porrada seja ele quem for. Já fiz isso muitas vezes, nunca fui preso porque o delegado me chamava, eu ia lá explicava tudo pra ele e ele me mandava embora.

Não acho que deva existir esse negócio de cota para negro. Se somos dez pessoas brancas e dez pessoas negras, aquela que passar no concurso entra. Porque esse negócio de que o negro não tem acesso à escola acabou. Se você é uma pessoa dedicada e gosta de trabalhar, as portas estão abertas para qualquer um.

Dizem que o negro é o primeiro racista, mas não é não. É que ele é tão pisado que acaba ficando assim [agressivo]. Outra coisa que eu fico doente é de ver a parte negra na marginalidade, fumando droga. Se eu pudesse não deixava. O cara vai sendo pisado, pisado, pisado. Se você não tiver um QI elevado, acaba caindo naquilo. As crianças ficam sozinhas, a mãe trabalha, o pai trabalha, então ele é pisado e não conta para a família e acaba reagindo.Uma coisa que eu detesto é o cara falar para mim que sou preto da alma branca. Eu respondo na cara: ‘Você sabe a cor da sua alma?’

Uma vez fui convidado por um colega branco para uma festinha. Cheguei lá e ele foi me apresentar para os amigos: “Esse aqui é o Sabonete, é dono da retífica e mora aqui não sei onde e tal.... Quando ele terminou, eu falei: ‘Faz um favor para mim. Você fala que eu sou o Sabonete, mas não diz o que eu tenho para me valorizar não. Esquece dos meus objetos, se o cara quiser me receber na festa dele, bem, se não quiser, que ele vá pra m... Eu fico com o coração queimado.Com esse negócio de meu pai ser negro, ele dizia sempre pra mim: ‘Meu filho, faz certo porque a sociedade não aceita o preto de jeito nenhum. Você tem que ser honesto para vencer na vida.

Vou fazer 70 anos e não me sinto velho. O fôlego é o mesmo. A única coisa que me levanta a pressão é quando estou sem dinheiro. Quando estou com dinheiro, a pressão fica uma maravilha [risos]. Chego na oficina às seis da manhã, almoço aqui e mesmo e só vou para casa depois que todo mundo vai embora. Se eu ficar em casa, eu morro.

* Bibabô – Uma das primeiras lojas de departamento de Brasília. Ficava na W3 Sul.

Para ler

Pele negra, máscaras brancasFrantz Fanon, Editora Universidade Federal da Bahia, 2008 Escrito em 1952 por um francês nascido na Martinica quando a ilha ainda era possessão francesa, o livro assombrou a França e o mundo pelo seu forte conteúdo de protesto e de fortalecimento da identidade negra. Nos anos 60, serviu de referência para os movimentos Black Power, Black Panthers e movimentos anticolonialistas nos Estados Unidos e na Europa.

Um comentário:

dils santos disse...

puts terrivel isso...essa pesquisa em pleno 2010 lamentavel