CNE mantém decisão de notificação sobre preconceito em obra de Lobato
Larissa Leite
Publicação: 06/11/2010 08:00
Racismo e censura. Os dois temas mais do que polêmicos envolveram, na última semana, os debates acerca da obra Caçadas de Pedrinho, do escritor Monteiro Lobato. Afinal, há racismo na obra? Se existe, o que fazer em relação a isso? Sugerir a exclusão da utilização oficial do livro ou a inclusão de uma nota explicativa seria um ato de censura? Os questionamentos foram feitos a partir de posicionamento do Conselho Nacional de Educação (CNE) a respeito da obra — na qual o órgão identificou a presença de “estereótipos raciais”. A posição recebeu críticas de estudiosos e não foi respaldada pelo Ministério da Educação (MEC). No entanto, a discussão a respeito do clássico infantil, publicado em 1933, parece longe do fim: a despeito da posição contrária do MEC, o CNE — que tem a atribuição de assessorar a pasta — informou que o argumento em relação à obra não irá mudar: a defesa de, pelo menos, incluir uma nota sobre a existência de racismo — já defendida em parecer não homologado — está mantida. E o Ministério da Educação está convidado a novo debate.
A discussão teve início com o Parecer nº 15/2010, publicado em setembro deste ano. No documento, o CNE defende que obras com preconceitos ou estereótipos não sejam usadas em programas governamentais e, caso obras selecionadas ainda tenham esse tipo de conteúdo, que elas recebam uma nota de orientação sobre a presença de estereótipos raciais (leia trecho ao lado). O presidente da Câmara de Educação Básica do CNE, Francisco Cordão, informou que presidirá uma reunião, na próxima terça-feira, apenas para verificar se o parecer do CNE extrapola essas orientações. “O posicionamento do conselho é o mesmo. Ele não vetou Monteiro Lobato nem vai vetar. A nossa posição é bastante clara: aconselhamos que o MEC não compre uma obra que tenha preconceito racial. Mas se é um clássico, e decide comprar, basta colocar uma nota contextualizando”, afirmou Cordão ontem, em entrevista ao Correio.
[FOTO2]Segundo o presidente da Educação Básica, tanto a Secretaria de Educação Básica quanto a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do MEC serão convidadas para a discussão. “Queremos adequar o posicionamento do conselho. Ele não está censurando, vetando. Se tiver qualquer frase que tenha sido mal-interpretada, iremos revisar”, disse. O parecer que foi publicado pelo CNE precisa da assinatura do atual ministro da Educação, Fernando Haddad, para ser homologado. No entanto, depois da discussão sobre o livro ter tomado grandes proporções, Haddad declarou que iria devolver o parecer ao CNE, para reconsiderações. “É incomum a quantidade de manifestações que recebemos de pessoas que são especialistas na área e que não veem nenhum prejuízo em que essa obra, de Monteiro Lobato, continue sendo adotada nas escolas”, disse o ministro, na última quarta-feira. Na ocasião, o ministro afirmou ainda que o CNE deveria detalhar melhor de que forma deveria ser feita a inserção de uma nota na obra, pela editora.
Moralismo
O livro já foi usado em duas ocasiões pelo Ministério da Educação, em 1998 e em 2003, no âmbito do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), que distribui livros a bibliotecas de escolas públicas de todo o país. De acordo com a Secretaria de Educação Básica do MEC, para o programa são selecionadas obras com temáticas diversificadas, de diferentes contextos sociais, culturais e históricos. “Entre outras características, serão observadas a capacidade de motivar a leitura, o potencial para incitar novas leituras, a adequação às expectativas do público-alvo, as possibilidades de ampliação das referências do universo cultural do aluno e a exploração artística dos temas. Não serão selecionadas obras que apresentem didatismos, moralismos, preconceitos, estereótipos ou discriminação de qualquer ordem”, informou a secretaria, por meio de nota. Ainda de acordo com a secretaria, a escolha das obras costuma mudar a cada ano.
Independentemente da discussão sobre a edição do livro, o MEC já descartou deixar de utilizar a obra no futuro. Uma nota explicativa sobre a questão do meio ambiente já foi incluída em edição da obra, informando que, quando ela foi escrita, a onça não era uma espécie ameaçada de extinção, como nos dias de hoje. Uma nota semelhante, relativa à questão racial, poderá ser incluída na edição. No entanto, especialistas como a professora titular aposentada da Universidade de Campinas (Unicamp), Marisa Lajolo, autora da organização de Monteiro Lobato livro a livro, são contra a inclusão. “A literatura não pode vir com instrução de uso, já disse e reafirmo minha opinião. Essa posição é autoritária”, resume. O trecho mais polêmico da obra diz, em trecho relacionado à Tia Nastácia: “Sim, era o único jeito — e Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima, com tal agilidade que parecia nunca ter feito outra coisa na vida senão trepar em mastros”.
Leia a íntegra da nota da ABL
A imprensa divulgou esta semana que a Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação do MEC aprovou um parecer aconselhando o banimento de uma obra de Monteiro Lobato nas escolas do Distrito Federal.
A noticia parece tão absurda que nem se pode acreditar que seja verdadeira. No mínimo, deve estar descontextualizada. E toda leitura deve ir além do texto, buscando também o contexto. Essa é a boa maneira de ler . Assim é que qualquer obra literária deve ser lida — inclusive a de Monteiro Lobato. Sobretudo nas escolas.
Somos contra qualquer forma de veto ou censura à criação artística. Consideramos que uma cultura não pode se tecer com as linhas dos melindres e ressentimentos. Isso a empobrece, em vez de enriquecê-la.
Cabe ao professor orientar os alunos no desenvolvimento de uma leitura crítica. Isso não significa concordar com tudo o que o autor escreveu ou que uma época passada considerava. Pelo contrário, implica fazer uma viagem a esse tempo e tentar compreendê-lo, sem com isso deixar de discordar. Supõe manter a capacidade de dialogar com a obra, distinguindo nela o que não se aprova e o que desperta identificação — características que variam de um leitor para outro, aliás.
Um bom leitor de Monteiro Lobato sabe que tia Nastácia encarna a divindade criadora, dentro do sítio do Picapau Amarelo. Ela é quem cria Emília, de uns trapos. Ela é quem cria o Visconde, de uma espiga de milho. Ela é quem cria João Faz-de-conta, de um pedaço de pau. Ela é quem “cura” os personagens com suas costuras ou remendos. Ela é quem conta as histórias tradicionais, quem faz os bolinhos. Ela é a escolhida para ficar no céu com São Jorge. Se há quem se refira a ela como ex-escrava e negra, é porque essa era a cor dela e essa era a realidade dos afrodescendentes no Brasil dessa época. Não é um insulto, é a triste constatação de uma vergonhosa realidade histórica.
Em vez de proibir as crianças de saber disso, seria muito melhor que os responsáveis pela educação estimulassem uma leitura crítica por parte dos alunos. Mostrassem como nascem e se constroem preconceitos, se acharem que é o caso. Sugerissem que se pesquise a herança dessas atitudes na sociedade contemporânea, se quiserem. Propusessem que se analise a legislação que busca coibir tais práticas. Ou o que mais a criatividade pedagógica indicar.
Mas para tal, é necessário que os professores e os formuladores de políticas educacionais tenham lido a obra infantil de Lobato e estejam familiarizados com ela. Então saberiam que esses livros são motivo de orgulho para uma cultura. E que muito poucos personagens de livros infantis pelo mundo afora são dotados da irreverência de Emilia ou de sua independência de pensamento. Raros autores estimulam tanto os leitores a pensar por conta própria quanto Lobato, inclusive para discordar dele. Dispensá-lo sumariamente é um desperdício.
A obra de Monteiro Lobato, em sua Integridade, faz parte do patrimônio cultural brasileiro. Portanto, sugerimos que o plenário se manifeste, apelando ao senhor Ministro da Educação no sentido de que se respeite o direito de todo cidadão a esse legado, e que vete a entrada em vigor dessa recomendação.
Nota da Academia Brasileira de Letras, aprovada pelo presidente Marcos Vinicios Vilaça
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