Mistério em Jericoacoara
Envolta em dúvidas, morte de jovem italiana no Ceará desafia polícia, que é criticada pela condução da investigação. Uma suspeita foi presa, mas a motivação para o crime ainda não está clara
Rogério Daflon (daflon@istoe.com.br)
ENIGMA
Gaia não foi roubada nem sofreu violência sexual
A italiana Gaia Barbara Molinari, 29 anos, adorava viajar pelo mundo e sempre fez amigos com facilidade. Herdeira de uma fábrica de calçados ortopédicos no norte da Itália, morava em Paris, onde era relações-públicas de uma multinacional. Na véspera de Natal sua vida teve um fim trágico. Por volta de 15h do dia 25 de dezembro, o corpo de Gaia foi encontrado numa área de reserva ambiental próxima à praia de Jericoacoara, na cidade de Jijoca de Jericoacoara, a cerca de 300 quilômetros de Fortaleza (CE). O laudo da Polícia Civil cearense diz que ela morreu na véspera, foi estrangulada, teve o rosto desfigurado os braços e as pernas feridos ao extremo. A morte tão chocante, contudo, continua envolta em mistérios após duas semanas. A italiana não foi roubada, não foram encontrados indícios de violência sexual e não evidências claras de qual seria a motivação do crime. Por enquanto, a polícia só admite revelar a identidade de uma suspeita: a farmacêutica carioca Mirian França de Melo, 31 anos, presa desde 29 de dezembro.
CONFLITO
Mirian está presa desde o dia 29 de dezembro.
Sua mãe, Valdicéia, (abaixo) acredita em racismo,
hipótese negada pela delegada Patrícia Bezerra
A delegada responsável pelo caso, Patrícia Bezerra, da Delegacia de Proteção ao Turista, pediu a prisão temporária de Mirian por 30 dias (por se tratar de crime hediondo) e a Justiça do Ceará acolheu a solicitação. “Ela mentiu várias vezes sobre pessoas, horários e locais nos seus dois depoimentos e suas afirmações não se sustentaram diante das acareações”, diz ela, que já ouviu mais de 15 testemunhas. Segundo a delegada, Mirian disse, por exemplo, que tinha visto Gaia pela última vez às 13h45 do dia 24 de dezembro na pousada em Jericoacoara, mas as duas foram vistas na pousada por volta de 18h30. Foi neste horário, aliás, que as testemunhas viram a italiana pela última vez. Patrícia afirma que há outros suspeitos, mas não divulga os nomes porque, segundo ela, isso atrapalharia as investigações. O caso, porém, parece complexo. Coordenador de medicina legal do Ceará, Sângelo Abreu afirmou à ISTOÉ que o laudo pericial leva a crer que a italiana não teve um único algoz. “Pelo menos duas pessoas devem ter participado deste assassinato, já que o nível de violência foi extremo”, acentuou o legista, para quem o responsável – ou responsáveis – deveria ter marcas da tentativa de defesa de Gaia.
A conduta da polícia tem sido bastante questionada. A Defensoria Pública do Ceará, responsável pela defesa da farmacêutica, diz que a prisão dela é irregular. “Mirian está presa ilegalmente. Foi uma resposta absurda à grande repercussão do caso. As contradições dela não são prova para uma prisão”, diz o defensor público Emerson Castelo Branco, que, com mais dois colegas, entrou com pedido de habeas corpus. “Ela colaborou com as investigações e prestou depoimentos como testemunha. Não estava orientada por advogados e não é obrigada a lembrar de tudo.” Entre as pessoas ouvidas, o uruguaio Rodrigo Sanz também reclamou da abordagem policial. Ele e sua noiva, uma francesa, foram detidos e levados de camburão para a delegacia em Fortaleza onde os investigadores insistiram para que confirmassem a existência de um romance entre Miriam e Gaia, segundo contou. Duas mensagens da noiva de Sanz foram encontradas no celular de Gaia, o que também levou a polícia a pensar num triângulo amoroso. O casal cedeu material para exames de DNA. Em nota à ISTOÉ, a polícia negou arbitrariedades: “A Polícia Civil do Estado do Ceará informa que o casal de turistas estrangeiros, assim como várias outras pessoas, foi conduzido à Delegacia de Proteção ao Turista (Deprotur) na condição de testemunha, onde prestou depoimento e se colocou à disposição para coleta de material genético”. O uruguaio contesta: “É inadmissível uma testemunha ser tratada com camburão e pressão psicológica”.
Orientada pelo advogado Humberto Adami, a mãe de Mirian, Valdicéia França, acredita que sua filha esteja sofrendo racismo. Adami – que defende, por exemplo, causas de quilombolas – afirmou ser “factível” a hipótese de que Mirian seja vítima de preconceito por ser negra, possibilidade negada pela polícia cearense. “Há um racismo institucionalizado no Brasil”, diz o advogado. O Movimento Negro também acompanha o caso. Adami defende que, embora os exames periciais em Gaia não tenham encontrado vestígios de estupro, como sêmem, essa possibilidade não pode ser descartada. Há quatro anos, as autoridades cearenses receberam do Conselho Comunitátio de Jericoacora um dossiê sobre a proliferação desse tipo de crime na região. Nascida em Austin, em Nova Iguaçu, um dos lugares mais pobres da região metropolitana do Rio, Mirian está numa cela sozinha por ter curso superior completo. Além da graduação em farmácia, ela tem mestrado e faz doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Vive da bolsa da pós-graduação e hoje mora em um apartamento em Bonsucesso com mais duas estudantes.
Depois de 12 dias, o corpo da jovem italiana foi transladado para a Itália para ser enterrado em Piacenza, cidade onde ela nasceu. Gaia teria conhecido Mirian pela internet, em um site de viagens. Como a mãe de Mirian desistiu de viajar com a filha, ela então teria procurado alguém para rachar as despesas da pousada em Jericoacoara. As duas se encontraram no dia 17 em um hostel em Fortaleza e, no dia 21, partiram para a praia cearense, onde a história das duas mudaria para sempre.
Fotos: Ricardo Borges/Folhapress
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