SOCIEDADE
Propaganda enganosa em novo dilema racial
Levantamento mostra que a participação de afrodescendentes em peças publicitárias cresceu de 3% para 13% em 20 anos, mas elas ainda apresentam os modelos de forma estereotipada, como o atleta ou o artista exótico
Renata Mariz
Carlos Silva/Esp. CB/D.A Press |
Eduardo, modelo: “Muita gente liga e pergunta: ‘você que é o negro’?” |
Mal desfez o casamento com um homem que a impedia de trabalhar, a personagem de Taís Araújo na novela Viver a vida, da Rede Globo, já voltou à ativa. Na trama, a modelo internacional não para de receber convites para fotos e desfiles. A vida real, porém, é bem diferente da trajetória de Helena, a primeira protagonista negra de uma novela das oito. Um estudo da Universidade de São Paulo (USP) mostrou que a proporção de profissionais de pele escura na publicidade brasileira saltou de 3% para 13% num período de 20 anos. E os papéis representados nas peças ainda se restringem, em quase metade dos casos, a estereótipos clássicos, como o trabalhador braçal, a mulata sexualizada ou o carente social.
Os dados foram coletados pelo pesquisador Carlos Augusto de Miranda e Martins durante seu trabalho de mestrado no Núcleo de Estudos Interdisciplinares do Negro Brasileiro, ligado à Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Ele avaliou todas as peças publicitárias de 1985 a 2005 na revista Veja — escolhida por ter alta arrecadação com anúncios. “Não posso deixar de reconhecer que houve um avanço, só que muito tímido, em relação à presença dos negros. Mas a imagem depreciativa apresentada continua colaborando para a naturalização do preconceito. É o atleta com a mensagem clara de que a habilidade do negro se restringe a funções ligadas à força física ou o artista exótico, de cabelo trançado e roupas excêntricas”, lamenta Martins.
A pesquisa aponta que, no período analisado, os anúncios com estereótipos clássicos diminuíram de 75% para 43%, enquanto a publicidade tida como neutra, por não apresentar contexto, subiu de 12% para 50%. “Note que esses dois movimentos culminam na queda da proporção das peças com abordagem positiva, de 13% para 7%”, afirma. Para Martvs Antônio Alves, subsecretário de ações afirmativas da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, a publicidade ainda tem uma “visão racista”. “Não passa de falácia quando os produtores do setor afirmam que não há negro no mercado de trabalho”, diz. A Associação Brasileira de Agências de Publicidade foi procurada, mas não retornou as ligações do Correio.
O Estatuto da Igualdade Racial, um marco regulatório atualmente estagnado no Senado Federal, previa reserva de 20% para negros em programas de televisão e peças publicitárias. Um acordo na Câmara para garantir a aprovação do projeto, entretanto, retirou o item do texto. Para o frei David Santos, diretor executivo da Educafro, a alteração representou um retrocesso no tema. “A negação do negro, do indígena, do diferente na publicidade é latente e difícil de ser combatida”, afirma. Segundo Santos, as poucas mudanças que ocorreram são decorrentes das pressões(1) feitas pelo movimento negro.
Para o carioca Eduardo Nascimento, 23 anos e há cinco em Brasília, o fato de ser negro restringe seu trabalho às vezes. O modelo conta que, de fato, a maior parte das oportunidades de trabalho é para brancos. Mas quando o requisito é o contrário, ele se dá bem. “Logo lembram de mim. Muita gente liga e pergunta: ‘você que é o negro’?”, afirma, bem-humorado. Entre campanhas promocionais, desfiles, fotos e vídeo, Eduardo enxerga uma tendência de maior procura pelo seu perfil. “Vejo que muitas vezes querem diversificar.”
Um reflexo histórico e o preconceito, na avaliação de Zulu Araújo, são os principais fatores da pequena participação do negro na publicidade. “Apesar de termos uma variedade de povos, parte significativa da população identifica o belo no perfil do eurodescendente. Não deixa de ser uma consequência do passado de escravidão”, diz o presidente da Fundação Cultural Palmares.
The new black
Motivado pela Educafro, uma rede de cursos pré-vestibular para pessoas negras e carentes, o Ministério Público firmou com os organizadores da São Paulo Fashion Week, no ano passado, um acordo para que 10% dos modelos do evento fossem negros. Inspirado nessa iniciativa, o Ministério Público do Trabalho, no Distrito Federal, abriu um processo de investigação para verificar se há preconceito no mercado da moda brasiliense. Algumas audiências com pessoas do setor já foram realizadas.
Ouça trechos da entrevista com o pesquisador Carlos Augusto de Miranda e Martins
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