CUSPE NA CARA E NEGRA SAFADA NO ÔNIBUS EM BRASÍLIA.
A cidadania no balcão da delegacia.
* Por Humberto Adami
A cena chocou até mesmo quem insiste em não admitir o racismo no Brasil. A copeira negra, de meia idade, moradora de Sobradinho, recebeu, sem qualquer razão, uma cusparada no rosto e a expressão qualificante racial: “negra safada”. A providencial intervenção de um rapaz negro, de vinte e poucos anos, passageiro do mesmo ônibus que transitava em uma via pública na Asa Norte, no Plano Piloto de Brasília, capital da República, impediu que violência ainda maior ocorresse. Imobilizado o agressor pelo rapaz, o motorista do coletivo só parou na chegada à estação rodoviária.
O jovem negro, assim que desceu do ônibus, pediu, por telefone, ainda no calor da discussão e da agressão, socorro ao Ministério da Igualdade Racial, como é conhecida a SEPPIR. Já na 5ª. Delegacia de Polícia, no setor bancário norte, do Plano Piloto, em Brasília, o ouvidor da Secretaria de Promoção de Políticas da Igualdade Racial, que assina este artigo, acionou o Conselho Estadual do Negro do DF, que mobilizou grande contingente de conselheiros, que se dirigiram ao local. Foi definitiva essa legítima pressão. Na chegada à delegacia, o jovem que saíra em defesa da senhora agredida nutria a desconfiança que aquela seria mais uma das muitas experiências infrutíferas acumulada pelos que tomam a iniciativa de levar, de fato, o crime racial ao exame da área penal. Ë grande a quantidade de ocorrências raciais que deixam de ser registradas, nos boletins de ocorrência, preenchido nos balcões das delegacias, como sendo o que realmente são: crime de racismo, ou mesmo injúria racial. Além da atuação na ouvidoria da SEPPIR, minha experiência como advogado no Rio de Janeiro dá razão ao jovem negro brasiliense.
Logo na chegada à delegacia, a boa surpresa: o “cuspidor”, e ofensor racial já estava preso, prestando depoimento à autoridade policial. Ele admitira, ficamos sabendo em seguida, a cusparada no rosto da mulher negra e o xingamento racial. Mas, saindo em defesa própria, justificou que havia recebido um gesto obsceno feito com dedo pela senhora, antes de agredi-la; fato não comprovado.
As suspeitas do jovem negro (testemunha e também vítima, pois o rapaz levou uns sopapos do agressor, ao sair em defesa da senhora) eram procedentes. Realmente o agressor racial iria ser enquadrado na injúria simples, e não na injúria racial ou crime de racismo, como de hábito. Entretanto, uma importante reunião dos integrantes dos movimentos sociais, especialmente Movimento Negro, e representantes dos governos federal e do Distrito Federal, com o Delegado Titular e seus delegados assistentes apontou a relevância do caso, e o seu aspecto racial. A equipe de delegados parte, então, para a “pesquisa jurídica”, digamos assim, na tentativa de acertar, voltando inclusive a re-interrogar o agressor, vítima e testemunhas, buscando o enquadramento que tivesse base nos fatos ocorridos dentro do ônibus.
A pesquisa começaria, então, a ser feita na internet, mais precisamente nos sites dos tribunais superiores. Neste ínterim, militantes do Movimento Negro acorrem à delegacia, já com os primeiros representantes da imprensa. Isto durou de 11 às 16 horas do dia 30.04.2010. Por fim, foi anunciado o enquadramento como INJÚRIA RACIAL, com base no art. 140 do Código Penal, o que não permitiria que a fiança fosse arbitrada pelo delegado de polícia, mas apenas pelo Juiz de Direito. O agressor continuaria preso até lá. O fato teve repercussão inédita na mídia da capital federal, bem como no resto do país.
Às vésperas de mais um aniversário da Abolição da Escravidão no Brasil, no próximo 13 de maio, o que nós, do Ministério das Relações Raciais temos a destacar no que se refere aos avanços e reincidências apontadas pelo fato acima, é, sobretudo mudanças no cotidiano das relações raciais em nosso país, contemporaneamente:
1. Em primeiro lugar, um jovem negro decide “não deixar para lá” o assunto – a ofensa racial -, e parte para o exercício de cidadania plena. É acompanhado pela vítima, uma mulher também negra, assim como pelo motorista, cobrador e outros passageiros que se encontravam no ônibus. Trabalhadores, uma gente simples e honesta, que sabe distinguir o certo e o errado. E que, ressaltemos, buscam ajuda num órgão do Governo Federal, e a recebem, efetivamente.
2. O segundo aspecto importante é o fato de a autoridade policial que busca a forma de corretamente encarar os fatos - racismo e discriminação racial -, sem demonstrar preconceitos, idéias pré-concebidas, e procurando o melhor enquadramento dentro dos dispositivos legais (Código Penal e Lei Caó) oferecendo com isto, à sociedade do país e aos que buscaram o auxílio da lei, neste caso em particular, uma resposta de valor inquestionável. E que se soma aos esforços de todos os que lutam pela igualdade de direitos em nosso país: a prisão do agressor racial.
3. Indiretamente, a medida tomada pelo delegado titular também aponta para o acerto de mais uma das ações do Ministério da Igualdade Racial, que está adotando medidas para realização de cursos de práticas antidiscriminatórias em todas as ACADEPOL – Academia de Polícia, dos 27 estados da federação.
3. Outro dado relevante é o aumento, nos últimos tempos, em todo o país, das denúncias de casos de racismo, incluída a injúria racial. Podemos lembrar casos como, por exemplo:
a) O do funcionário da Gol no aeroporto de Aracaju, agredido racialmente pela médica que perdeu o avião para a lua de mel. Resultado: médica indiciada;
b) A história das quatro funcionárias das Lojas Riachuelo, em Vitória (ES), que foram presas por se recusarem a trocar uma bermuda comprada dois meses antes, por uma delegada de polícia, com fianças de R$ 1.600,00 para funcionárias brancas e R$ 5.000,00 para funcionárias negras, tendo apenas estas ultimas sido transportadas na caçapa da viatura policial e dormido por uma noite na penitenciaria de Vila Velha (ES). Resultado: delegada exonerada, respondendo a inquérito; acusação contra as funcionárias arquivadas;
c) Crime envolvendo o motoboy negro assassinado em São Paulo, no último mês de abril, com requintes de tortura, com transparência do Secretario de Segurança de São Paulo, afirmando a existência de tortura. Resultado: nove policiais militares presos;
d) O episódio dos jogadores ofendidos e de seus companheiros de profissão que foram indiciados por ofensas dirigidas em campo àqueles, aos quais chamaram de “macaco” ou “preto fedorento”, etc.
Este último destaque poderia levar ä equivocada idéia de que uma súbita onda de racismo assolou o país. Entretanto, o correto é entender que esses fatos, infelizmente sempre ocorreram. O dado novo - e de suma importância – para o qual o caso de Brasília aponta, é que há avanços inegáveis no encaminhamento dos problemas de natureza racial no Brasil, sendo os principais: uma melhor atenção dirigida à questão, tanto por parte do Estado, quanto da sociedade, que os repreende e não os aceita. Além de uma repercussão conseqüente nos veículos de comunicação, que buscam dar visibilidade a casos como este, em coberturas bem feitas, entre as quais, podemos dar como exemplo a realizada pelo próprio Correio Brasiliense, entre outros importantes veículos. Coberturas jornalísticas que buscaram se desviar dos sensacionalismos esvaziados de sentido público, dando voz aos envolvidos no fato, assim como a representantes da sociedade civil organizada devotados à defesa da igualdade racial no Brasil.
É certo que ainda falta muito para que, neste Treze de Maio, pudéssemos comemorar a instauração de uma verdadeira democracia racial em nosso país. Falta, inclusive, uma firme jurisprudência dos tribunais para tais casos. Mas estamos em bom caminho.
* Humberto Adami é Ouvidor da Secretaria da Igualdade Racial, da Presidência da República.
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