III CONFERÊNCIA INTERNACIONAL EDUCAÇÃO, CONHECIMENTO, DIVERSIDADE E AÇÕES AFIRMATIVAS –FACULDADE ZUMBI DOS PALMARES – DE 22-23 DE NOVEMBRO DE 2014
KABENGELE MUNANGA
Por começar, de que educação estamos falando?Suponho que estamos falar de educação no estrito senso, ou seja, de educação escolar que em todas as sociedades, capitalistas e socialistas, é um monopólio do Estado. Num Estado democrático, que por princípio é um Estado de direitos, o Estado tem obrigação de garantir o acesso a educação a todos os membros da sociedade, independentemente das diferenças de sexos, classes sociais, “raças”, etnias, línguas, religiões, etc. A questão que se coloca é saber se em todas as sociedades capitalistas que se dizem democráticas o acesso à educação escolar é garantida igualmente para todas as crianças, jovens e adultas membros da sociedade? Nenhum país do mundo respeita integralmente os 40 artigos que compõem a declaração universal dos direitos humanos. Sem dúvida, os países da periferia dos sistemas capitalistas e socialistas que vivem em guerras, no exemplo de muitos países africanos violam mais os direitos humanos, a começar pelo direito à vida e direito de viver do que os países do centro do sistema capitalista, bem ilustrados pelos países do Norte daEuropa.Fica sempre a questão de saber se os países imperialistas são democráticos? Talvez sim, internamente. Mas no plano externo onde esses países violam constantemente os direitos dos outros povos, a começar pelo direito de autodeterminação política, fica duvidoso acreditar em sua natureza democrática.
A questão que coloco em debate diz respeito à democratização à educação num país que convive com práticas racistas, no exemplo dos Estados Unidos, da África do Sul durante o apartheid e do Brasil de hoje. Nos Estados Unidos, até o fim das leis segregacionistas nos Estados do Sul daquele país os negros só tinham acesso à uma educação pública segregada, de qualidade inferior, comparativamente aos brancos. A mesma coisa aconteceu nos países colonizados da África e sobretudo na África do Sul até o fim do regime do apartheid. Isso teve impacto na sub-representação dos negros no Ensino superior que a política de cotas ou ação afirmativa vem corrigindo desde os anos 60 nos Estados Unidos. No Brasil, país declarado de democracia racial, seu racismo de fato vem demonstrando que os negros não tiveram igualmente acesso ao ensino de boa qualidade com graves consequências em sua sub-representação no ensino superior que as políticas de cotas tentam corrigir.
Mas não é sobre esta questão tão falada que gostaria de centrar minha intervenção nesta mesa. Partindo da hipótese de que é por causa do racismo à brasileira que os negros não tiveram ou não têm igualmente acesso à educação por um lado, diz-se que a educação é o melhor caminho para se combater o racismo em nossa sociedade. Isto supõe que quando todos os cidadãos e todas as cidadãs tiverem acesso à uma boa educação, o racismo que segundo alguns é uma questão de ignorância deixaria de existir em nossa sociedade.
“Nenhuma criança no mundo nasceu racista ou odiando outras crianças”. Frase atribuída ao saudoso Nelson Mandela.
As diferenças naturais, culturais e socioeconômicas constituem a matéria prima a partir da qual se constrói todos os tipos de preconceitos e as ideologias deles derivadas. Assim, o preconceito racial e o racismo enquanto discurso ideológico justificador e legitimador das práticas discriminatórias entre grupos e pessoas biologicamente contrastados.
Quando uma criança vem ao mundo, ela traz hereditariamente em seu corpo os atributos físicos de sua identidade corporal que a diferenciam das crianças de outros grupos. No longo processo de educação que começa no lar e dentro do grupo a qual pertence, essa criança vai, acompanhando seu processo de crescimento físico e cognitivo, apreendendo os valores culturais do grupo e dominando os códigos culturais que de ora em diante guiarão seu comportamento no que diz respeito a sua sobrevivência material: o que comer, como comer e suas relações sociais: como se relacionar e com quem se relacionar, como casar e com quem casar, entre outros. Com o tempo, essa criança que está se tornando adolescente e logo adulta, vai descobrindo que seu grupo não é o único no mundo, pois ao redor ou nas vizinhanças existem outros grupos ou sociedades e que dentro do seu próprio grupo existem classes sociais. Ele vai descobrindo sempre através da educação ou socialização, porque seu grupo, sociedade ou classe social é diferente dos outros. Essa aprendizagem vai desembocar no descobrimento de sua identidade coletiva enquanto membro de um grupo, de uma sociedade ou de uma classe social. Mas o que é essa identidade coletiva? Ela não é nada mais que a autodefinição do grupo a partir de alguns atributos diferenciais em relação ao outro grupo, sociedade ou classe social. Uma identidade contrastiva que visa o fortalecimento da unidade do grupo e a solidariedade entre seus membros em nome da sobrevivência do grupo. Essa identidade não é um produto acabado, mas sim um processo em constante elaboração e reelaboração. O processo de construção da identidade se expressa em discurso cujo conteúdo pode, para valorizar o grupo ao qual se pertence descrever o grupo oposto de maneira preconceituosa, atribuindo-lhe uma identidade distorcida e negativa. Somos os melhores, nossa raça é a melhor, nossa religião é a melhor e a verdadeira, nossa classe social é superior, nosso sexo masculino é o melhor, etc.
No início era o outro, mas esse outro diferente é inferior a mim, ou seu grupo, sua classe social, seu sexo, etc.. é inferior ao meu. Assim se expressa opreconceito enquanto atitude e ideias preconcebidas sobre os outros fora do meu grupo. Três momentos simultâneos são colocados em ação: 1) a percepção da diferença – (2) a valorização da diferença acompanhada de formulação dos preconceitos em relação aos outros. É neste sentido que diz-se que todas as sociedades são culturalmente preconceituosas. Mas há um terceiro momento que constitui já uma ameaça para a humanidade, quando as diferenças assim valorizadas são utilizadas em benefício de si ou de seu próprio grupo e em detrimento dos outros e seus grupos. Ou seja, quando os preconceitos são transformados em armas ideológicas para justificar e legitimara discriminação racial e as consequentes desigualdades. Estamos aqui em pleno racismo ou ideologia racista. Ela independe da educação. É claro que uma pessoa mal informada por falta de educação não tem devido discernimento sobre os problemas de sua sociedade, mas nem todas as pessoas que nutrem preconceitos em relação aos outros não tiveram educação ou são ignorantes. Quando um grande intelectual declara que os eleitores do Nordeste votaram mal porque lhes faltam informações, isto nada tem a ver com a ignorância ou a educação. Os cientistas iluministas e naturalistas que teorizaram o conceito de raça e a hierarquização das mesmas não eram ignorantes. Os cientistas nazistas não eram ignorantes. O cientista americano James Watts, um dos cientistas que descobriram a fórmula do DNA e que cerca de dez anos atrás declarou que os negros são menos inteligentes que os brancos e asiáticos não é um ignorante. O professor da UFBA, coordenador do curso de Medicine que diz que o curso de medicina daquela universidade havia baixado seu nível por causa da entrada dos alunos cotistas negros. Prova disso é que essas pessoas só sabem tocar o berimbau, um instrumento que tem só uma corda, não é um ignorante. Os calvinistas americanos e sul africanos que se basearam nas lendas bíblicas de maldição doCão que se tornou antepassado dos negros não são ignorantes; o deputado Feliciano que disse palavras preconceituosas contra negros e homossexuais com justificativa na Bíblia não é ignorante. O pior é que elefoi mantido na presidência da Comissão dos direitos humanos da Câmara dos deputados, apesar do protesto. A questão que se coloca é saber que Comissão de direitos humanos é essa?
Sem ignorar a importância da educação em seu papelda formação do cidadão e da cidadã, vamos tirar dela o peso de ser única responsável no combate ao racismo e seus duplos. Ou seja, pensar que o racismo e suas práticas discriminatórias é somente consequência da ignorância e da falta da educação cidadã, principalmente escolar, é excessivamente exagerado. A educação sozinha não é suficiente para desmantelar as inércias das ideologias racista, machista a homofóbica.
É por isso que as sociedades que lutam hoje contra o racismo e suas consequências recorrem a três caminhos complementares: o legislativo, o político e o educativo. O legislativo promove leis que punem e reprimem as práticas racistas. É neste sentido que uma discriminação racial comprovada é na Constituição brasileira um crime inafiançável e sujeito à reclusão com pena que varia entre um ano a três anos de prisão. Apesar das dificuldades para fazer funcionar plenamente essa lei, devemos reconhecer que ela representa uma confissão oficial da existência do racismo no Brasil. Mas não basta punir e reprimir os que não respeitam essa lei. É necessário incrementar políticas públicas de inclusão das vítimas do racismo que acumulam muitas perdas, não somente na educação mas em todos os setores da vida nacional que exigem comando e responsabilidade; políticas capazes de reduzir as desigualdades acumuladas e promover a igualdade racial entre brancos e não brancos. Essas políticas passam pelas leis como a lei das cotas, oEstatuto da Igualdade Racial; a criação da SEPPIR, as leis que reservam vagas para negros na contratação dos funcionários públicos nos âmbitos federal, estadual e municipal, entre outros.
O terceiro caminho é a educação. Não basta apenas promover leis antirracistas e implementar as políticas públicas de mudança. É preciso curar as doenças da sociedade como se cura as doenças físicas e mentais com remédios e intervenções cirúrgicas, entre outras práticas medicinais. Mas a medicina preventiva deva vir antes da medicina curativa. Sendo a educação o caminho pelo qual se forma a cidadania, acredita-se que uma educação multicultural bem equilibrada contribuiria em termos preventivos na formação de um cidadão, de uma cidadã capaz de valorizar a riqueza da diversidade e das diferenças, e neste sentido não preconceituosos e não racistas. Aqui se coloca todo o peso da frase atribuída ao saudoso Nelson Mandelaquando disse que “nenhuma criança no mundo nasceu odiando outras crianças por causa das diferenças biológicas.
Como nosso sistema educacional ficou durante muito tempo preso à um único modelo eurocêntrico considerado como universal, os cidadãos e as cidadãs nunca aprender e nunca se conscientizaram da existência em seu meio de outros modelos tão válidos quanto os outros. A saída está na transformação desse modelo único. Daí a importância de uma educação multicultural que integra na formação da cidadania nossas diferenças de raça, sexo, gêneros, idade, religiões e outras que estão na base da formação dos preconceitos e práticas racistas. A questão é corrigir os vieses preconceituosos e racistas presentes no sistema educativo, transformando as diferenças em fontes de convivência pacífica. Acredita-se que a educação é capaz de desconstruir o monstro que criou e criar um novo ser com base nos princípios da riqueza da diversidade.
Para os negros e os indígenas se coloca uma dupla questão: na educação presente, eles não são quantitativamente representados, sobretudo na educação superior. Essa sub-representação exige políticas de cotas ou afirmativas cuja polêmica no âmbito nacional já conhecemos. A segunda questão é qualitativa, pois a educação existente na qual queremos ser incluídos é baseada no modelo eurocêntrico que rechaça a história, a cultura e a identidade negras. Ou seja, os aportes e contribuições históricas e culturais do negro no processo de formação do povo brasileiro em termos de participação e construção da nação não são igualmente reconhecidos neste modelo de educação.
O que as leis 10.639/03 e 11.645/08 estão tentando corrigir. Sobre estas leis muita coisa já se falou e se escreveu, entre outros, dissertações de mestrado, tese de doutoramento e livros. Alguns acham que essas leis não levantaram o voo por várias dificuldades de natureza prática, política e ideológica.
No campo da prática, era preciso primeiramente fazer um trabalho de sensibilização e conscientização dos educadores e das educadoras para que pudessem entender a importância e a urgência de uma educação multicultural que inclui a história e a cultura dos brasileiros negros e indígenas na escola brasileira no pé de igualdade com as dos outros de ascendência europeia. Depois do trabalho de sensibilização e conscientização era preciso, no segundo passo, formar os educadores e as educadoras dando-lhes subsídios que não tiveram em seus processos de formação escolar para que pudessem se capacitar para interferir no processo de formação do novo cidadão e da nova cidadã, corrigindo o conteúdo preconceituoso que alguns ou muitos alunos trazem do lar e da educação anteriormente recebida em outros contextos sociais, entre ela a autoexclusão do próprio alunado negro. Não é suficiente formar educadores e educadoras, é preciso também colocar em suas mãos instrumentos e ferramentas didáticas apropriados para que pudessem desenvolver o que apreenderam e transmitir a seus alunos novos conhecimentos que integram os valores e riqueza das diferenças e da diversidade. Pense-se que isto contribuiria para destruir os preconceitos e os mitos de superioridade e inferioridade racial entre alunos brancos e não brancos, futuros responsáveis do país.
A dúvida que se coloca é saber se esses três momentos complementares, ou seja, a sensibilização/conscientização – a formação dos educadores/educadoras - a produção de materiais didáticos apropriados foram devidamente cumpridos.
As dificuldades de ordem política e ideológica têm a ver com as realidades que qualquer processo de mudança duradouro tem de enfrentar: a lentidão por causa das hesitações, dúvidas, resistências e inércia das ideologias anteriores como o mito de democracia racial. O que fazer? Não desistir, pois o caminho é longo e espinhoso. Continuar a lutar, corrigindo os rumos e exigindo mecanismos de monitoramento e punição das escolas que não se enquadram nas leis 10.639/03 e 11.645/08. As universidades públicas têm também sua responsabilidade nesse processo de formação de professores e produção de materiais didáticos de qualidade. Elas podem contribuir através dos cursos de extensão e especialização ou de curso de pós-graduação lato senso. Infelizmente, muitas ainda são indiferentes apesar da norma do Conselho Nacional de Educação que as recomenda a fazê-lo. A sensação que tenho é a de estarmos num longo túnel do tempo cuja saída e resultados são imprevisíveis. Uma coisa deva ser reconhecida e inspira otimismo: o Brasil é por enquanto o único país da diáspora negra no mundo que tem uma lei federal ou nacional que torna obrigatório o ensino da história da África na Escola. Os Estados Unidos não tem essa lei no âmbito federal. É uma grande conquista da sociedade brasileira graças ao ativismo do Movimento Negro. A questão é fazer com que essa lei funcione efetiva e plenamente em todas as escolas brasileiras públicas e privadas..
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