Um dos melhores textos que vi examinando a polêmica sobre o livro “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, iniciada na
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quinta-feira, 13 janeiro 2011 |
Onde Você Guarda o seu Racismo?
Autor: César Augusto Baldi
Artigo publicado na 28ª edição do Jornal Estado de Direito
Um parecer do Conselho Nacional de Educação- praticamente não lido e tampouco citado corretamente- causou muita polêmica pelo que foi considerado um veto à utilização, nas escolas, do livro “Caçadas de Pedrinho”, por seu conteúdo considerado racista. O parecer, contudo, não determinava qualquer censura ou veto. Estabelecia, ao contrário, que: a) o MEC deveria respeitar os critérios que ele mesmo determinou para escolha dos livros, um deles o de evitar a disseminação de estereótipos e preconceitos; b) as políticas públicas deveriam formar professores capazes de lidar pedagógica e criticamente com obras clássicas que apresentassem estereótipos raciais; c) um estudo introdutório, tal como já existente no livro a respeito da questão ambiental, poderia incluir os estudos sobre a questão racial na literatura; d) a Secretaria de Educação orientasse escolas sobre implementação de diretrizes curriculares para educação de relações étnico-raciais e práticas pedagógicas correspondentes; e) as ações fossem realizadas em conjunto com o corpo docente e comunidade escolar; f) a literatura não está fora dos conflitos, tensões e hierarquias sociais e raciais “nas quais o trato à diversidade se realiza”.
O parecer é interessante muito mais pelas reações contrárias.
Primeiro, porque reafirmou-se a ideia de “harmonia social”, de país de um profunda “convivência entre as etnias”, de verdadeira “democracia racial”, em que não se poderia deixar insuflar o ódio e a sede de vingança. Ignora-se, com isto, toda uma discussão que envolve: a) a interseccionalidade entre raça, classe, gênero, sexualidade, espiritualidade e colonialismo, mostrando as profundas mesclas entre distintas discriminações; b) o silenciamento de que inexiste uma “especificidade histórica” como algo isolado de um contexto internacional de distribuição desigual de hierarquias, em que o racismo é um componente estrutural; c) o reconhecimento de que a miscigenação não significa igualdade social nem ausência de hierarquias e assimetrias de poder. Como foi possível ao Brasil, “democracia racial”, cordial e absolutamente “integrado”, reproduzir relações tão desiguais e hierárquicas, em que, por exemplo, a percentagem de negros com grau universitário do Brasil em 2001 ( 2,5%) foi atingida nos EUA em 1947, em plena era de segregação racial, e era similar à da África do Sul em 1995, quando recém encerrado o período do apartheid?
Segundo, porque, ao discutir se Lobato era ou não racista, procuram vincular o racismo ao momento em que o livro foi escrito. É a tese de que, no Brasil, ou não existe racismo ou ele é um problema de pouca importância. Ao contrário: o racismo não “era” uma mentalidade presente naquele tempo, mas sim uma realidade que permanece presente na sociedade, em especial numa elite que
se imagina não preconceituosa e “formadora de opinião”. Basta ver, inclusive, as poucas condenações judiciais para reprimir uma prática que a Constituição reputou crime inafiançável e imprescritível, ou mesmo que piadas de cunho evidentemente discriminatório seja vistas apenas como “de mau gosto.” Sem falar na “coincidência” entre violência policial e vitimização negra.
Terceiro, porque as críticas passaram ao largo da necessidade de discutir como implementar uma educação crítica, antirracista e descolonizadora, bem como trabalhar a “transversalidade” do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana. Aliás, exigências legais e constitucionais. Afinal, não dizia respeito à adoção e leitura de um livro? Uma resistência que é não somente em relação ao conteúdo, mas também ao próprio estatuto epistemológico destes conhecimentos. Do que se trata é, também, de uma luta por justiça social e histórica, aliada à “justiça cognitiva”.
Quarto, porque não se trata de importação de “politicamente correto”, nem de multiculturalismo “servil”. Tanto os movimentos indígenas quanto negros têm dinamizado o processo de reconhecimento da diversidade cultural, insistindo na plurinacionalidade, na interculturalidade e no constitucionalismo de nova feição, ao mesmo tempo em que vão ampliando a “gramática” dos direitos humanos, com a inclusão do “sumak kawsay” ( quéchuas e aimaras), da “amefricanidade” ( Lélia Gonzalez) e “quilombismo” ( Abdias do Nascimento). Novas visões de direitos humanos têm exigido um novo léxico para repensar as questões do nosso tempo. Ignorar esta rica discussão é continuar silenciando, invisibilizando e descartando como inovadoras e credíveis iniciativas destas comunidades, que conseguiram pressionar para que o processo constitucional incluísse demandas tanto no campo cultural ( arts. 215 e 216, CF), quanto no reconhecimento de sociodiversidade ( arts. 231- 232, CF e art. 68-ADCT). Não se trata, portanto, de “guetização” e autonomia de culturas, mas de uma nova articulação entre igualdade e diferença, superando o padrão hegemônico ( branco, ocidental, adulto, proprietário, masculino, heterossexual). É a continuação de uma luta contra todas as formas de racismo, sexismo e colonialismo; no caso da população negra, uma segunda ( ou verdadeira) abolição.
Momentos como este podem possibilitar uma reavaliação dos diversos tipos de racismos e preconceitos, seja contra índios, seja contra negros. A apologia da “mestiçagem” e mesmo da inexistência de “raças” não impediu- nem tem impedido- a prática do racismo constitucionalmente reprimida ( art. 5º, XLII, CF). É obrigação de todos os Poderes, em toda as esferas: a) impedir qualquer conduta, prática ou atitude que incentive, prolifere ou constitua racismo; b) tomar todas as medidas cabíveis e possíveis para a erradicação de tal prática. É disto que se trata, neste momento. Não de ignorar sua existência para não desfazer a “coesão social”, mas sim de reconhecer a necessidade de combater uma grave violação de direitos humanos de parcela significativa da população. Antes que “Terra Brasilis”, a indicar uma origem europeia direta de Roma, o Brasil é muito mais “Pindorama”, parte integrante de Abya Yala ( nome dado ao continente pelos povos indígenas) e também da “Améfrica”, o espaço geopolítico que, sem negar as raízes africanas, resgata a experiência fora da África como central no processo de diáspora.
É necessário reconhecer que o racismo é uma realidade da sociedade brasileira e tanto mais perverso quanto mais “cordial” e “ameno” é considerado, e que o fim do processo colonial não significou sua abolição, mas sim a manutenção por meio de um “colonialismo interno”, em que os descendentes de europeus reproduzem os mesmos padrões em relação ao “outro”, ao “diferente.” Esta luta anticolonial e antirracista é dolorosa. Afinal: Onde você guarda o seu racismo? Não guarde, jogue fora! Este é o grande desafio que a discussão de um livro publicado na década de 30 põe de forma mais atual ainda.
se imagina não preconceituosa e “formadora de opinião”. Basta ver, inclusive, as poucas condenações judiciais para reprimir uma prática que a Constituição reputou crime inafiançável e imprescritível, ou mesmo que piadas de cunho evidentemente discriminatório seja vistas apenas como “de mau gosto.” Sem falar na “coincidência” entre violência policial e vitimização negra.
Terceiro, porque as críticas passaram ao largo da necessidade de discutir como implementar uma educação crítica, antirracista e descolonizadora, bem como trabalhar a “transversalidade” do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana. Aliás, exigências legais e constitucionais. Afinal, não dizia respeito à adoção e leitura de um livro? Uma resistência que é não somente em relação ao conteúdo, mas também ao próprio estatuto epistemológico destes conhecimentos. Do que se trata é, também, de uma luta por justiça social e histórica, aliada à “justiça cognitiva”.
Quarto, porque não se trata de importação de “politicamente correto”, nem de multiculturalismo “servil”. Tanto os movimentos indígenas quanto negros têm dinamizado o processo de reconhecimento da diversidade cultural, insistindo na plurinacionalidade, na interculturalidade e no constitucionalismo de nova feição, ao mesmo tempo em que vão ampliando a “gramática” dos direitos humanos, com a inclusão do “sumak kawsay” ( quéchuas e aimaras), da “amefricanidade” ( Lélia Gonzalez) e “quilombismo” ( Abdias do Nascimento). Novas visões de direitos humanos têm exigido um novo léxico para repensar as questões do nosso tempo. Ignorar esta rica discussão é continuar silenciando, invisibilizando e descartando como inovadoras e credíveis iniciativas destas comunidades, que conseguiram pressionar para que o processo constitucional incluísse demandas tanto no campo cultural ( arts. 215 e 216, CF), quanto no reconhecimento de sociodiversidade ( arts. 231- 232, CF e art. 68-ADCT). Não se trata, portanto, de “guetização” e autonomia de culturas, mas de uma nova articulação entre igualdade e diferença, superando o padrão hegemônico ( branco, ocidental, adulto, proprietário, masculino, heterossexual). É a continuação de uma luta contra todas as formas de racismo, sexismo e colonialismo; no caso da população negra, uma segunda ( ou verdadeira) abolição.
Momentos como este podem possibilitar uma reavaliação dos diversos tipos de racismos e preconceitos, seja contra índios, seja contra negros. A apologia da “mestiçagem” e mesmo da inexistência de “raças” não impediu- nem tem impedido- a prática do racismo constitucionalmente reprimida ( art. 5º, XLII, CF). É obrigação de todos os Poderes, em toda as esferas: a) impedir qualquer conduta, prática ou atitude que incentive, prolifere ou constitua racismo; b) tomar todas as medidas cabíveis e possíveis para a erradicação de tal prática. É disto que se trata, neste momento. Não de ignorar sua existência para não desfazer a “coesão social”, mas sim de reconhecer a necessidade de combater uma grave violação de direitos humanos de parcela significativa da população. Antes que “Terra Brasilis”, a indicar uma origem europeia direta de Roma, o Brasil é muito mais “Pindorama”, parte integrante de Abya Yala ( nome dado ao continente pelos povos indígenas) e também da “Améfrica”, o espaço geopolítico que, sem negar as raízes africanas, resgata a experiência fora da África como central no processo de diáspora.
É necessário reconhecer que o racismo é uma realidade da sociedade brasileira e tanto mais perverso quanto mais “cordial” e “ameno” é considerado, e que o fim do processo colonial não significou sua abolição, mas sim a manutenção por meio de um “colonialismo interno”, em que os descendentes de europeus reproduzem os mesmos padrões em relação ao “outro”, ao “diferente.” Esta luta anticolonial e antirracista é dolorosa. Afinal: Onde você guarda o seu racismo? Não guarde, jogue fora! Este é o grande desafio que a discussão de um livro publicado na década de 30 põe de forma mais atual ainda.
Escrito por: direito
http://www.estadodedireito.com.br/2011/01/13/onde-voce-guarda-o-seu-racismo/
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