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O narrador de Caçadas de Pedrinho(2), quando se refere a Tia
  Nastácia, o faz preferencialmente destacando-lhe a cor (preta ou negra), a
  qual muitas vezes vem antecedida do adjetivo pobre, no sentido de digno de
  lástima, ou no sentido de pessoa simplória, parva, tola, pobre de espírito.  
   
  Tia Nastácia se expressa invariavelmente por meio de esconjurações e
  pelos-sinais (imersa que está em temores, superstições
  e misticismos), tem dificuldades para
  pronunciar algumas palavras e acaba estropiando-as (felómeno por fenômeno) ou
  recusando-se, por incapacidade, a pronunciá-las (rinoceronte).  
   
  Os bichos, todos bem falantes, argumentam e pronunciam com correção as
  palavras. Num contexto em que os animais pensam, comunicam o que pensam e se
  expressam num registro culto, as dificuldades de Tia Nastácia reservam-lhe um
  lugar bastante diferenciado entre os personagens. As analogias entre bichos e
  humanos acabam por reduzir ainda mais Tia Nastácia. Na hierarquização
  sugerida, os negros situam-se abaixo mesmo dos animais.  
   
  Não sendo bicho (embora tenha beiço, como as onças), Tia
  Nastácia é pouco provida da capacidade de pensar e de se expressar que os
  bichos dominam na narrativa. Na escala utilizada por Lobato, os bichos são
  mais sagazes e articulados.  
   
  Tia Nastácia protagoniza, ou por ser mais desastrada do que os demais, ou por
  não compreender os expedientes e artifícios impostos pelas circunstâncias, as
  cenas de quedas e de exposição ao perigo, nas quais o objetivo é provocar
  risos e confirmar o quanto ela é desajeitada e inepta.  
   
  Tia Nastácia apresenta-se também distinta dos humanos, distinção centrada na
  cor, seu principal atributo identificador (a preta, a negra...), mas
  distingue-se também na ignorância, nas superstições de fundo religioso.  
   
  Mas é a “carne preta” que determina tudo o mais, a marca indelével de sua
  inferioridade biológica.  
   
  Na cena final, o narrador refere-se a ela com condescendência: ‘boa
  criatura’. Condescendência que é o reconhecimento da inferioridade do outro,
  visto de cima. Para passear no carrinho puxado pelo rinoceronte, como os demais
  personagens, Tia Nastácia alega que “Negro também é gente, Sinhá...”.  
   
  Tia Nastácia precisa alegar sua condição humana, lembrar que os negros compartilham
  com os demais essa mesma condição, para também poder sentar-se no carrinho. É
  igual, não inferior como foi representada
  no decorrer da narrativa. A igualdade reivindicada contrasta com a
  desigualdade dos fatos narrados, os quais destacaram o suporte biológico de
  uma inferioridade intrínseca.  
   
  No final do relato, concede-se a uma criatura inferior, bondosa, a
  participação em uma atividade que envolve a todos. Mas isso a torna igual aos
  demais, aos olhos do leitor? Depois de marcar a personagem, de
  estigmatizá-la, de mostrá-la tão
  diferente de humanos e de animais em razão de sua cor, será isso possível?  
   
  A fala de Tia Nastácia parece questionar a hierarquização racial que a
  narrativa acentuou com tanta ênfase. Mas a questão é: diante das evidências
  de inferioridade registradas na narrativa, inferioridade sempre associada à
  cor da pele, por que a mera declaração desse ser parvo alegando sua igualdade
  nos faria duvidar da pertinência daquela outra caracterização tão enfática e
  duradoura?  
   
  Caçadas de Pedrinho nos ensina que se você é negro ou preto, é inferior. A
  inferioridade dos negros não é só cultural, mas principalmente biológica.
  Isto é o que significa a palavra que está numa extremidade da frase de Tia
  Nastácia, no fecho do livro (‘Negro’). Foi esse o sentido apreendido pelo
  leitor, que agora chega ao final da narrativa. Na outra, está a palavra
  ‘sinhá’, que o dicionário define como “tratamento dado
  pelos escravos a sua senhora”. Portanto, se é negro ou preto, e, além disso,
  tem sinhá, não é igual.  
   
  Antônio Risério, em entrevista(3), após seu rompimento com Gilberto Gil, que
  o demitira do ministério da Cultura, tornou público o apelido do ministro:
  Tia Nastácia. Risério já deixou a escola há muito tempo, e suponho que há
  muito deixou de ler Lobato. No entanto, não só considera o apelido atual e
  pertinente, como sabe que seu
  conteúdo injurioso será perfeitamente compreendido por aqueles que tiverem
  acesso à entrevista.  
   
  Quando se trata de racismo no Brasil, de
  representações desumanizadoras da população negra, é quase impossível
  segmentar o tempo, separando o passado do presente. O que temos é um presente de
  longa duração(4), no qual a defesa de hierarquizações rigidamente
  estabelecidas pode se travestir em proteção de obras literárias consideradas
  “clássicas”.  
   
  As contradições são muito evidentes: no jornal “Folha de S. Paulo”, depois de
  afirmar que há na obra “patente preconceito”, o editorialista recua do
  manifesto para o hipotético, subordinando o debate à condição de que haja
  racismo em Lobato – “Se há racismo em Lobato, melhor
  discuti-lo em classe do que evitar sua leitura”(5). Preconceito é certo
  (tomado geralmente como um delito menor,
  uma crença compartilhada com outros), mas é necessário acautelar-se contra a
  acusação de racismo.  
   
  Se o parecer do CNE não estimula na grande imprensa o debate sobre racismo, por que isso
  aconteceria na escola? Desde quando a escola passou a se insurgir contra a
  cultura e as relações de poder dominantes? Segundo João Ubaldo, ninguém sabe
  o que é certo e o que é errado e indaga: “Existirá um racistômetro?”. Para
  Ubaldo, é preciso considerar também que “os defeitos” que se apontam em
  Caçadas de Pedrinho estejam não na obra “mas na mente e na percepção de quem
  os aponta”(6).  
   
  Ou seja, racista é quem diz que Lobato é racista. Numa sociedade em que
  racista é o negro que reivindica direitos humanos, econômicos, políticos,
  etc., não atentar para o racismo de Lobato não é
  uma simples questão de preparo intelectual.  
   
  O deputado Aldo Rebelo (PC do B-SP), radical ao revés, consegue a proeza de
  enxergar na figura da Tia Nastácia em Caçadas de Pedrinho a projeção da
  “igualdade do ser humano a partir da consciência da cor” e aproveita para
  criticar rispidamente o movimento negro, por
  importar racismo dos Estados
  Unidos para nosso país “mestiço por excelência”. Risério, na leitura
  enviesada de Rebelo, estaria na verdade elogiando Gilberto Gil quando o chamou de Tia Nastácia.
   
   
  João Ubaldo, no artigo citado, afirma que Caçadas de Pedrinho é “somente um
  livro” que transporta as crianças “para a fantasia, a aventura e o
  encantamento inocentes”. Não preciso me reportar aqui aos estudos sobre
  ideologia para refutar o encantamento e a inocência de textos que negam ao
  negro a condição de pessoa humana. Os leitores de Lobato aprenderam a
  distinguir pessoas de não-pessoas, numa fantasia em que seguramente aprendem
  a amar porcos , bonecas de pano e sabugos de milho.  
   
  As advertências que se preconizam para serem antepostas ao livro de Lobato
  são de todo inúteis. O racismo não é o detalhe
  supérfluo e descartável de uma obra, cujo “conteúdo (...) é insubstituível
  para a infância brasileira”(7). Em Caçadas de Pedrinho, a representação
  desumanizadora do negro é dimensão essencial na estratégia de dominação que
  torna possível o conforto de nossas elites, de ontem e de hoje.  
   
  Conforme ainda o editorial da Folha, criar obstáculos à circulação de Caçadas
  de Pedrinho é “quase como um insulto
  pessoal”. Para a Folha, “trata-se de um dos livros mais carinhosamente
  guardados na memória do público brasileiro”. Esses são os ofendidos que
  contam. Se a liberdade de expressão de Lobato ofende a dignidade das pessoas
  negras, qual é mesmo o problema? Quem
  se preocupa mesmo com a dignidade
  de seres inferiores? O ofendido a ser considerado é o leitor de Lobato, não o
  negro.  
   
  Segundo João Ubaldo, os leitores de Lobato “não vieram mais tarde a abrigar
  preconceitos e idéias nocivas, instilados solertemente na consciência
  indefesa de crianças”. Acompanhando o noticiário sobre o parecer do Conselho
  Nacional de Educação, o que presenciamos é exatamente o
  contrário do que afirma Ubaldo. A cegueira, a resistência em admitir o racismo, as inversões
  delirantes, a indiferença e o cinismo tornam
  perfeitamente possível a hipótese de que Lobato cumpriu e cumpre um papel
  decisivo na formação dessa insensibilidade de intelectuais, jornalistas e
  professores, leitores confessos, emocionados e
  muitíssimo ofendidos.  
   
  Eles se sentem pessoalmente atingidos quando você critica e ameaça investir
  contra a hierarquização racista da humanidade que os coloca no topo de uma
  presumida evolução da espécie, com direitos a todos os privilégios. Sim,
  Lobato é um clássico do racismo brasileiro. Por
  isso eles dizem: “Mexeu com ele, mexeu comigo – com meus interesses, com meus
  privilégios”.  
   
  Para concluir, precisamos refletir sobre a
  imagem da capa da edição mais recente de Caçadas de Pedrinho que tem
  circulado como ilustração sem o logotipo da
  editora (Editora Globo). Nem no Jornal Nacional, nem no Estado de S. Paulo,
  nem em O Globo aparece a identificação
  editorial. Até mesmo no Parecer
  CNE/CEB nº 15/2010 evita-se citar a editora e, quando o fazem, citam-na com
  erro: Editora Global.  
   
  Não se pode deixar de lado o fato de que a maior parte dos recursos do FNDE(
  Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação) destina-se à compra de livros
  didáticos e paradidáticos. A editora Globo, ao assumir os direitos sobre a
  obra de Lobato, quer alcançar uma fatia maior dos bilhões de reais à
  disposição do FNDE. É preciso colocar a apropriação do dinheiro público também
  na roda de debates. Para compreendermos todas as
  dimensões do escândalo midiático que se seguiu ao Parecer do CNE, precisamos seguir o
  dinheiro.  
   
   
  1. Texto-base para discussão com participantes da oficina “Racismo e relações
  sociais”, realizada durante a Semana de Extensão da Universidade de Brasília,
  em 11/11/2010.  
   
  2.Lobato, Monteiro. 2ª Ed. São Paulo: Globo, 2008.  
   
  3. www.metropoletv.com.br. Memorabilia,
  28/04/2009.  
   
  4. Ver Arendt , Hannah. Entre o passado e o futuro. 6ª Ed. São Paulo: Perspectiva,
  2007.  
   
  5. Folha de S. Paulo, edição de 30 de outubro de 2010, p. A2.  
   
  6. Ribeiro, João Ubaldo. “Por que não reescrevem tudo?”. O Estado de S.
  Paulo, edição de 7 de novembro de 2010, p. D4.  
   
  7. Carta de Yolanda (Danda) C. S. Prado à Folha de S. Paulo, 07/11/2010, p.
  A3.  
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