Terça-feira de altos despachos
Mãe Nitinha não embarcou para Roma. Mas aterrissou em Brasília com um ministério do candomblé
UM DIA NO PLANALTO COM...
Laura Greenhalgh
Mãe Nitinha perdeu o avião, mas não a esperança. Na terça-feira, 12 de abril, enquanto o presidente Lula ouvia tambores na Nigéria, a ialorixá de 74 anos, baiana de nascimento e descendente do primeiro terreiro de candomblé do Brasil, vestiu suas melhores rendas e desembarcou em Brasília levando consigo um ministério de mãesde-santo. Chegou farfalhante em babados, turbantes e colares - ela, veteraníssima matriarca do ramo Ile Axe Opo Afonja e líder inconteste da Sociedade Nossa Senhora das Candeias, na Baixada Fluminense. Com credenciais de montão e bênçãos dos orixás, Nitinha de Oxum não passou tropas em revista. 'Demorei 500 anos pra chegar até aqui...', disse ao contemplar a Esplanada dos Ministérios.
Traçou uma diagonal com os olh! os e calculou o tamanho do atraso histórico.
Convenhamos: de atraso, Mãe Nitinha entende. Dias antes, ela atrasou tanto que acabou perdendo o avião e o lugar na comitiva oficial que foi a Roma para os funerais de João Paulo II. O presidente Lula convocara uma representação ecumênica com padre, pastor, rabino, xeque e mãe-de-santo, porém a ialorixá se enredou nos meandros da burocracia - passaporte, passagens, horários, conta bancária, coisas assim -, e o AeroLula decolou sem ela. Tristeza nos terreiros da Baixada.
Nitinha seguiu seu odum (destino em iorubá), e eis que, em menos de uma semana, aqui está ela em Brasília, a bordo de uma agenda recheada de audiências com figurões da República. Primeiro despacho do dia: às 9 horas, encontro com a ministra Nilcéia Freire, na Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Fiel ao estilo que a fez nacionalmente famosa, Nitinha chega com meia hora de atraso, mas o arranhão no protocolo não impede a troca de abraços com a ministra nem as brincadeiras dos jornalistas - 'Atrasou, mas chegou...'. No gabinete, além da mãe-de-santo eleita por Lula, acomodam-se em sofás Beata de Yemanjá (outra veterana do grupo), Meninazinha de Oxum, Tânia de Yemanjá e a caçula das ialorixás presentes, Mãe! Nádia, a única branca do grupo. Elas vêm assessoradas por Humberto Adami Santos Júnior, advogado perito em questões raciais, e pela historiadora Wania Sant´Anna, ex-secretária de Direitos Humanos do governo Benedita da Silva. Ambos são afrodescendentes.
TELHADO EM OBRAS
Feitas as apresentações, Nilcéia nem precisa dizer 'a que devo a honra da visita?'. 'Ministra, buscamos respeito para nossa religião.!
Somos mulheres, mães-de-santo, guardiãs de um saber. Não temos estudo, mas nossa academia é o ori (cabeça). A senhora sabe o quanto a mulher é desprestigiada na sociedade, não sabe? Então, ministra, precisamos da sua ajuda para manter nossas casas de pé', diz Mãe Beata, 72 anos, uma espécie de porta-voz da comitiva. A ministra ouve as mães-de-santo uma a uma - exceto Meninazinha de Oxum, que passa mal no gabinete e tem de ir para um hospital. 'Mãe Menininha, a senhora vai melhorar', conforta-a Nilcéia, que é médica. 'Menininha, não, ministra.
Me-ni-na-zi-nha!', repetem em coro as outras. Nome dado por santo não deve ser trocado.
A conversa prossegue com contornos interessantes. Pelo relato das visitantes, fica-se sabendo que os custos de um terreiro não são baixos: gasta-se muito com água, luz, alimentos, flores, roupas, adereços para cerimônias. Quase nunca o dinheiro arrecadado com o jogo dos búzios cobre as despesas da casa. A oralidade é o meio de transmissão dos costumes e a memória, a maneira de preservá-los.
Falta documentar esse legado.
Mosteiros, igrejas, colégios e faculdades religiosas têm conseguido verbas governamentais para sua recuperação. No caso dos terreiros, raros são os investimentos públicos! ou privados. Nitinha fala pouco, mas vai direto ao ponto: - Preciso consertar o telhado da minha casa de santo.Vai lá ver como está, ministra. Aquilo é um espaço de ebé (comunidade), não pode ficar daquele jeito.
As histórias vão se sucedendo e, com uma hora de conversa, Nilcéia se dispõe a falar com o colega da Cultura, Gilberto Gil, para ver o que as duas pastas podem fazer pelo candomblé. Primeira vitória do dia. As ialorixás agradecem cantando um ponto em iorubá para abrir caminhos. A ministra chora. E assim se despedem.
CADÊ O ABDIAS?
Próximo despacho: encontro com estudantes da UnB p! ara falar de cotas raciais. Passa das 11 horas quando as quatro senhoras sobem num microônibus cedido pela universidade. Estão animadas, falam de Nilcéia, ajeitam turbantes, até alguém dar o alarme: 'Xii, esquecemos o Abdias!'. A comitiva entra em pânico. Abdias Nascimento, 91 anos, lenda viva do movimento negro no Brasil, veio ao Planalto especialmente para abrir alas para as cinco 'baianas'. Perseguido pelo regime militar, professor emérito da New York University, escritor, artista plástico e ex-senador da República, Abdias hoje se locomove em cadeira de rodas, empurrado pelo carinho da mulher, Elizabeth Larkin, uma ex-aluna americana com a qual é casado há anos. No corre-corre, o casal ficou para trás, no hotel. Lá vai o microônibus cruzando as grandes avenidas de Brasília para buscá-los.
Hora de seguir para a UnB.
Cheia de desvelos, Elizabeth ainda pede ao marido que ele não se canse demais na maratona de audiências, mas Abdias, que nunca foi de tomar chá de camomila em dia de passeata, resume: 'Elizabeth, cuide do seu cansaço, que eu cuido do meu'. E toca o ônibus.
Num auditório da universidade, o decano e o quarteto feminino são recebidos com um coro estridente: 'Mãe-de-santo/ padre e pastor/ a luta pelas cotas é uma ordem do Senhor'. Estimulados por frei David, um franciscano que abraçou a causa das cotas, os estudantes assustam as ialorixás. Que não se espere delas, por mais calorosa que seja a recepção no movimento, uma adesão ao estilo 'terreiro/ unido/jamais será vencido'.
Menos, menos empolgação.
Nitinha, Beata, Tânia e Nádia ocupam lugares de honra e dão seu recado. 'O ser humano sem estudo e sem trabalho não vive. Por isso estamos aqui para apoiar a luta das cotas. Olorum nos botou no mundo para ser mães. E mães não excluem ninguém...', vai desenvolvendo Beata, quando um gaiato da platéia solta um 'xô, Exu'.
Quase ninguém ouve, exceto as quatro ialorixás, imediatamente encrespadas. Beata muda o tom: 'Olha aqui, Exu não tem chifre, nem rabo, nem capa. Exu é natureza, ouviu bem? Ele faz e desfaz'.
Mãe Nádia tenta localizar o provocador na platéia. Nitinha, a veterana, cruza os dedos em forma de cruz. Chamado a falar, Abdias muda o foco: 'A universidade brasileira está esperneando com as cotas. Ela concede alguma coisa, mas ainda não mudou sua estrutura. Por isso, garotos, vocês têm de se rebelar. Eu fiz piquete até em Harvard'. A rapaziada aplaude. O encontro termina bem, mas mãede-santo! tem memória. 'Deixa Exu quieto. Por que nos tratar como bruxas?', empertiga-se Nádia. 'Esses meninos precisam estudar mais antropologia', conclui Beata, que aprendeu a escrever em papel recolhido do lixo e hoje tem dois livros publicados. O microônibus as leva ao hotel para o almoço, quando alguém pergunta: 'Xii, será que Meninazinha melhorou?'. Esqueceram a herdeira de Olga de Alaketu no hospital.
FORTE COMO UM BAOBÁ
Pausa para o almoço. Meninazinha se incorpora ao grupo, agora com a pressão arterial sob controle. Contam-lhe a história do atrevido qu! e evocou Exu no auditório da UnB. A mãe-de-santo balança a cabeça. 'Ah, mas as provocações estão aumentando, isso tudo me faz mal.' Organizações do candomblé, especialmente as que se identificam com o discurso do movimento negro, têm procurado sair dos terreiros e assumir uma atuação política. No entanto, colidem com grupos religiosos, sobretudo pentecostais. Meninazinha queixase de como sua casa de santo, em São João do Meriti, no Rio, vem sendo abordada por evangélicos. 'Chegam com aparelhos de som gritando coisas horrorosas, falam que vão expulsar o diabo da minha casa', conta. O que dizer então das bancas que vendem o 'acarajé do Senhor'? Daí, a indignação é geral. As ialorixás sacodem as pulseiras e reclamam que os evan! gélicos querem ganhar dinheiro com comida de santo. Já não basta comer acarajé de garfo e faca, agora tem de servir com a Bíblia no tabuleiro? Próximo despacho: Nelson Jobim, presidente do Supremo Tribunal Federal. As mães se levantam da mesa de almoço, somem pelos corredores do hotel e voltam uma hora mais tarde absolutamente impecáveis. São outras anáguas, outras saias, outros colares, outros perfumes. Tudo para Jobim. Às 15h30, o grupo engomado já está no salão principal do Supremo, quando o motivo da visita é anunciado ao presidente da Casa pelo advogado Adami. As! ialorixás querem ser admitidas como amicus curiae em ação de inconstitucionalidade que a Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen) move para questionar a lei das cotas. Como 'amigas da corte', tradução da expressão latina, Nitinha, Beata e outras tantas matriarcas de terreiro querem ser ouvidas no processo. Dirão que são a favor das cotas, sim, na qualidade de educadoras e transmissoras da cultura afro-brasileira. 'Hoje há uma distorção da histó! ria do candomblé, ministro', diz Nádia para um Jobim que se esquece do relógio à frente da bancada dos turbantes. 'Nossa religião é força, fé e união', acrescenta Tânia. 'Somos guardiãs de um patrimônio', informa Beata. 'Sou a última descendente da Casa Branca do Engenho Velho, o primeiro terreiro do Brasil, ministro', repete Nitinha. 'E a senhora, mãe Menininha?', pergunta Jobim. 'Menininha, não.
Me-ni-na-zi-nha', rebate o coro.
O ministro do Supremo, excompanheiro de Abdias no Congresso, há anos dá certa atenção para o movimento negro. Conta para as ialorixás que quando era menino, no Rio Grande do Sul, pouco sab! ia do candomblé, mas ficava curioso com o mistério que envolvia as cerimônias. 'Hoje as senhoras estão aqui buscando ocupar espaços na sociedade.
Do que trata este nosso encontro? Trata do tempo histórico da nação', filosofa. 'Vamos dar encaminhamento ao pedido.' Festa no terreiro da Justiça. Sabendo que é dia do aniversário do ministro, as visitantes fazem uma saudação especial a Oxalá, invocam as árvores e desejam que Jobim seja forte como um baobá. Depois, sessão de fotos. Muitas. Todas.
SEM CANTORIA
Próximo despacho: Cláudio Fonteles, procurador-geral da República. Lá vai o microônibus da UnB, agora mais cheio, pois a cada parada sobem defensores da causa. No encontro com Fonteles, deu Nitinha outra vez. O grupo chega com 40 minutos de atraso, portanto o procurador já está em outra audiência. Sem problemas.
As mães resolvem aguardar. Repetem que esperar alguns minutos é coisa pouca para quem não pôde entrar na casa grande por séculos - no que são apoiadas pelo incansável Abdias.
Quase uma hora depois, Fonteles vai ao encontro delas. De saída, recebe um documento de 12 páginas, assinado por uma dezena de entidades do movimento negro. Trata-se de uma representação junto ao Ministério Público para que se cumpra a Lei 10.639, sancionada por Fernando Henrique Cardoso em 1996. Essa lei determina que se inclua na grade curricular do ensino fundamental, como matéria obrigatória, História e Cultura Afro-Brasileira. E mais: o grupo pede que se instaure inquérito civil público para enquadrar diretores de escola que não estejam cumprindo a lei. 'Só ! isso, minhas senhoras?', indaga entre irônico e perplexo o procurador-geral. Não ganhou cantoria.
Nem uma oraçãozinha.
O dia termina em Brasília quando Lula encerra a agenda em Gana, na África. Satisfeitas, Beata, Meninazinha, Tânia e Nádia dão a missão por finda. Para Nitinha, falta uma coisa. A baiana de Brotas, feita mãe-de-santo aos 4 anos e vivendo no Rio há mais de 40, soube pela assessoria do presidente que, tão logo ele chegue, será convidada para um almoço em Brasília. Acredita que assim vai superar o desapontamento que teve com o embarque que não aconteceu, o av! ião que se foi, a chance perdida de fazer o axexe (serviço religioso pós-sepultamento) para o papa. Não iria a Roma prantear o pontífice, mas comemorar com ele a 'alegria do retorno' à casa de Deus. Seria discreta. Não pediria atabaques. Não cumpriria obrigações. Não entoaria pontos. Rezaria baixo. Herdeira espiritual de Maximiana, uma das ialorixás mais cultuadas na Bahia, nem quer mais se lembrar da confusão que viveu às voltas com um pelotão de assessores presidenciais estabanados. Não tem mesmo conta em banco. Fala pouco e anda devagar. Rainha do terreiro, nunca v! ai - mandam buscá-la. E não acata ordens - manifesta desejos.
Nitinha quer almoçar com Lula.
http://www.adami.adv.br/informativo/14.asp
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