sexta-feira, 9 de setembro de 2016

OPINIÃO

Flexibilizar presunção de inocência traz impactos à população negra



As Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADC) de números 43 e 44, ajuizadas pelo Partido Ecológico Nacional (PEN) e Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CF-OAB), estão no Supremo Tribunal Federal. De relatoria do ministro Marco Aurélio, versam as ações sobre a recente mudança de entendimento do Tribunal, que voltou a permitir — como fazia até 2009 — a execução provisória da pena para aqueles condenados em segunda instância, após julgamento do HC 126.292. O pedido é de que se reconheça a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal.
A ADC 43, protocolada pelo PEN, é mais ampla. Além do pedido principal, requer, subsidiariamente, que: declare o artigo 283 do CPP “ainda constitucional”, enquanto perdurar o “estado de coisas inconstitucional(ECI) ou até o julgamento e cumprimento das providências da ADPF 347; ou, enquanto persistir esse ECI", não se promova a pena de prisão, mas as medidas alternativas previstas no artigo 319 do CPP; ou ainda, caso o Supremo declare a inconstitucionalidade do artigo em exame, que o efeito seja ex nunc, atingindo somente os fatos posteriores ao julgamento da ADC 43 e relacionados ao do HC 126.292; por fim, caso sejam conferidos efeitos repristinatórios à declaração de inconstitucionalidade, interpretação conforme do artigo 637 do CPP para conferir efeito suspensivo aos recursos especiais, dirigidos ao STJ, negando-os somente para recursos extraordinários, dirigidos ao STF. A ADC 44, proposta pela OAB, pugna pela declaração de constitucionalidade do artigo 283 do CPP. Ambas requerem, em caráter liminar, não sejam deflagradas execuções provisórias da pena de prisão e sejam suspensas as que já estiverem em curso.
Neste breve artigo, buscaremos fazer um recorte racial, de modo a evidenciar como a flexibilização da presunção de inocência atinge a ampla maioria da clientela do sistema penal, ou seja, os pobres, pretos e favelados.
Em um primeiro plano, faz-se necessário estabelecer que a criminalização é parte do processo de construção social por juízos atributivos do sistema de controle, determinados pelos mecanismos atuantes no psiquismo do operador jurídico, como estereótipos e preconceitos que decidem sobre a aplicação das normas jurídicas.
Assim, a tutela penal das condutas desviantes implica a escolha política da criminalização de determinadas classes sociais, fundamentada no direito penal do inimigo. O sistema penal, como produção social, carregará os pressupostos daqueles que detêm o poder, estabelecendo em sua raiz a seletividade a partir de um público alvo pré-definido: os marginalizados pelo sistema.
Cria-se, então, um rótulo de criminoso, no qual estão potencialmente inseridos uma série de indivíduos pré-selecionados pelo sistema, que terão tendência a se enquadrar no rótulo após sofrer a sanção penal derivada do processo de criminalização (o chamado efeito reprodutor da criminalização). O resultado é que a grande mídia e os outros aparatos de dominação constroem, no imaginário popular, uma suposta relação entre a questão racial e o crime, colocando o negro criminalizado como sujeito ativo desta relação, concepção retroalimentada pela atuação das agências punitivas e pela pseudocriminologia do senso comum. Quem não se lembra das imagens apresentadas pelos telejornais daquela multidão de jovens negros correndo em praias, seguida de discursos punitivos coléricos a respeito da criminalidade e demandas por punição?
Os criminalizados são o verdadeiro sujeito passivo desta relação de poder: se o capitalismo forma as desigualdades sociais, a função do sistema penal é empurrar as vítimas dessa desigualdade — pobres, e especialmente, negros — para a criminalização. Segundo Nilo Batista, “aqueles cuja constituição física e social se enquadram no estereótipo da miséria”.
Nesse contexto se estabelece o entendimento questionado pelas ADC 43 e 44. Em um panorama de megaoperações midiáticas que envolvem esquemas bilionários e crimes de colarinho branco, busca-se justificar a relativização de garantias fundamentais como um fator eficaz no combate à dita criminalidade, como se, de alguma maneira, isto se comprovasse na prática como medida efetiva. Ainda, o contexto de arbitrariedade — incluindo negação de direitos fundamentais e vazamentos de informações processuais sigilosas — dos juízes que comandam megaoperações criou no imaginário popular a ideia de que, no Brasil, agora, “ricos são presos” (frente ao panorama de impunidade difundido pela mídia), e, portanto, permitir a decretação da prisão a partir da condenação em segunda instância afetaria, supostamente, a parcela mais rica da população, dotada de meios para realizar “recursos protelatórios”.
Nas palavras de Maria Lucia Karam, presidente da LEAP Brasil: “a pena (...) é necessária e prioritariamente dirigida aos excluídos, aos desprovidos deste poder. Tratando-se de um atributo negativo, o status de criminoso necessariamente deve recair de forma preferencial sobre os membros das classes subalternizadas, (...) servindo o excepcional sacrifício, representado pela imposição de pena a um ou outro membro das classes dominantes (ou a algum condenado enriquecido e, assim, supostamente poderoso), tão somente para legitimar o sistema penal e melhor ocultar seu papel de instrumento de manutenção e reprodução dos mecanismos de dominação.” [1]
Não faltam dados para comprovar o quadro caótico do sistema penitenciário brasileiro. Em verdade, o próprio STF, em julgamento recente da ADPF 347, declarou o estado de coisas inconstitucional da nossa estrutura prisional. Atualmente, segundo dados do GeoPresídios [2], do CNJ, temos 654.576 pessoas presas, desconsiderando as 290.307 prisões domiciliares que, se contabilizadas, levam ao assustador número de 944.883 presos no Brasil. Em 2014, de acordo com o Infopen [3], 41% das pessoas presas ainda estavam sem condenação. Afira-se, ainda, que entre 2000 e 2014 a população carcerária cresceu 161%, valor dez vezes maior que o crescimento do contingente populacional brasileiro.
Os números assustadores mostram o principal alvo do sistema penal. Dividindo-se por faixa etária, 56% da população carcerária são de jovens (entre 18 e 29 anos de idade). O recorte racial, por fim, nos dá a certeza: dois em cada três presos são negros (67%).  No país em que o jovem negro tem 2,5 vezes mais chance de ser assassinado que um jovem branco [4], percebemos que aqueles que sobrevivem têm muito mais chances de acabarem presos. Em 2012, segundo dados da Anistia Internacional [5], 77% dos jovens assassinados eram negros. Outro dado alarmante trazido pela DPERJ é a respeito das audiências de custódia: a chance de um acusado branco ser solto é 32% maior que a de um negro [6].
Os dados demonstram a importância dos recursos para efetivação da justiça. Segundo a DPESP [7], ao analisar alguns meses de 2015, pode-se observar que cerca de 64% das decisões do TJ-SP com recursos da Defensoria são revertidas nos tribunais superiores. Esta, adverte, é a porcentagem de pessoas que cumprirá pena injustamente, com o recente giro jurisprudencial do STF.
O professor Thiago Bottino, em seu estudo [8], nos mostra que 27,86% dos HC’s impetrados no STJ são concedidos. Portanto, há uma alta taxa de reversão dos tribunais de 2ª instância, matéria diretamente relacionada ao objeto das ADC’s.
A DPERJ [9] apresentou dados relevantes. Analisaram-se 80 casos, dentre recursos e HC’s impetrados no STJ, cujo requerimento era absolvição, redução da pena, atenuação de regime ou substituição por restritiva de direitos. Tiveram resultados positivos 37,5% desses processos. A média de redução de pena chegou a dezenove meses.
Chama atenção, ainda, o caso de Mariana. De início, ela teve sua pena estabelecida em quatro anos e três meses, regime semiaberto. Com o recurso, houve redução da pena, além de substituição da privativa de liberdade por restritiva de direitos. Mariana, que respondia solta ao processo, teria ficado 1 (um) ano ilegalmente presa segundo a nova orientação do STF. Quantas “Marianas” teremos, se esse entendimento se mantiver?
Nesse sentido, a decisão que vier a ser proferida pela Suprema Corte surtirá reflexos com maior efeito na população negra, principal público-alvo de um sistema punitivo de uma sociedade marcada pelo racismo.
O Estado deixa de fazer o seu papel em relação à população que será maior afetada pela decisão, pois é mais simples arcar com o ônus de um preso do que garantir seu direito às políticas públicas e a efetivação dos Direitos Fundamentais previstos na Constituição de 1988, que, para grande parte da população negra, nunca saíram do papel.
Assim, a tese por nós aqui delineada está no fato de que o Estado brasileiro continua a institucionalizar uma política de perpetuação do racismo e de injustiça social. Afirma-se que os impactos do entendimento firmado no HC 126.292 se direcionariam aos “criminosos de colarinho branco” e políticos corruptos, canalizando verdadeiro sequestro do debate em prol de uma solução reducionista e simbólica. Afinal, se o alvo preferencial do sistema penal é o negro pobre — comprovado visto estes representarem 67% da população carcerária — fica evidente que este contingente populacional será o mais afetado pela relativização de direitos.
Se, por um lado, a institucionalização de políticas racistas costuma acontecer de forma velada no Brasil, às vezes o racismo se mostra de forma explícita, como foi o caso do RHC 113.769, em que o STF decidiu pela impossibilidade de considerar a frequência em aulas de curso de capoeira para remição de pena dos presos — ainda que seja a capoeira um patrimônio imaterial da humanidade. Isto é, até nos critérios para estabelecimento de atividades que atenuem a situação do condenado, aquelas de origem negra não são consideradas como educação formal, e portanto, consideradas impassíveis à remição de pena.
É nesse contexto de combate ao racismo institucional que se insere o Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (Iara) com atuação constante no enfrentamento e desconstrução do racismo, tendo atuado em diversas causas relevantes às populações negras no STF, ações afirmativas em processos seletivos — como vestibular e concursos públicos; titulação de terras quilombolas; possibilidade da utilização da capoeira para remição de pena; além de controle social junto às autoridades administrativas nacionais e internacionais pelo cumprimento da valorização da cultura e história dos africanos e dos afro-brasileiros.
Ainda nessa esteira, foi criada pelo Conselho Federal da OAB a Comissão Nacional na Verdade sobre a Escravidão Negra do Brasil (CNVENB), presidida pelo advogado Humberto Adami, cuja missão é investigar, por todo o país, a verdadeira história do povo negro, a fim de possibilitar um resgate histórico que venha a ensejar efetiva reparação. Lá, foi gestada a ADC 41, protocolada pela OAB, que visa declarar a constitucionalidade de Lei de Cotas nos Concursos Públicos (Lei 12.990/2014), a fim de pacificar as divergências com um posicionamento do Superior Tribunal Federal. Mais um caso em que o Iara figura como amicus curiae, enriquecendo o debate e defendendo arduamente os interesses da população negra.
Frente ao seu histórico combativo, o Iara se habilitou como amicus curiaenas ADC 43 e 44, uma vez que seus resultados podem produzir fortes impactos na população negra brasileira — especialmente no caso de manutenção do entendimento inconstitucional tomado nos autos do HC 126.292.
Em um panorama de poder judiciário cada vez mais punitivo e menos garantista, o resultado inevitável da manutenção deste entendimento seria uma expansão da população carcerária — em especial, negra e pobre, evidentemente — transformando o estado em verdadeiro coculpado da acentuação da marginalização da população negra. Ou seja, em curto prazo de tempo se difundirá a necessidade da criação de novas unidades prisionais, ou ainda, sua entrega à iniciativa privada - afinal, o jovem negro e pobre corre o risco de ser ainda mais útil para a expansão da indústria do aprisionamento no Brasil. Cabe ressaltar, aqui, que o modelo de prisões privadas foi recentemente abandonado pelos Estados Unidos.
Em verdade, nos parece um delírio que o mesmo STF que reconhece oestado de coisas inconstitucional do sistema prisional venha a tomar decisões que apenas contribuirão para o aumento da população carcerária — que hoje já enfrenta um déficit de 231 mil vagas.
Dessa forma, nos parece que os defensores da decisão tomada no HC 126.292, canalizam o verdadeiro sequestro da decisão — canonizando este entendimento como apto a combater os delitos de corrupção e seus derivados, ou de alguma forma, diminuir a imoralidade na política, ignorando a produção criminológica recente e a histórica ineficácia anômica do sistema penal em resolver mazelas sociais.
Com os dados aqui trazidos à luz, pode-se perceber a importância dos recursos aos tribunais superiores quando da aplicação correta da justiça. Permitir a execução provisória da pena, a partir da decisão de segunda instância, trará mais prejuízo à sociedade como um todo — e em especial à população negra, pobre e favelada, alvos preferenciais do sistema — do que os benefícios aos quais se propõe a gerar.  Como bem salientou o criminólogo Maurício Dieter, em seu pronunciamento no Senado a respeito do PLS 402/2015, de mesma temática, “não é possível atingir os mais ricos sem que isso repercuta negativamente sobre os mais pobres. Qualquer concessão de direitos fundamentais é retrocesso e retorno a barbárie — e quem defende isto não pode ser outra coisa que bárbaro”.
* Este artigo contou com a participação dos acadêmicos Antonio Gomes da Costa Neto, Eduardo Ramos Adami, Natan Aguilar Duek e Vanilda Honória dos Santos.

BIBLIOGRAFIA:
[1] Maria Lucia Karam, em “A Esquerda Punitiva”.
[2] Dados das Inspeções nos Estabelecimentos Penais – Geopresídios - CNJ.
[3] Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN – Junho de 2014).
[4] Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência e Desigualdade Racial 2014 – Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
[6] 3º Relatório Sobre o Perfil dos Réus Atendidos nas Audiências de Custódia – DPERJ.
[7] Dados apresentados no pedido de entrada como amicus curiaeprotocolado pela DPESP.
[8] “Panaceia universal ou remédio constitucional? Habeas corpus nos Tribunais Superiores”.
[9] Dados apresentados no pedido de entrada como amicus curiaeprotocolado pela DPERJ.
 é advogado e mestre em Direito. É Diretor do IARA Instituto de Advocacia Racial e Ambiental e ex- Ouvidor da SEPPIR Secretaria Nacional de Políticas de Igualdade Racial, da Presidência da República.  Atualmente preside a Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra no Brasil, do Conselho Federal da OAB. 

Revista Consultor Jurídico, 1 de setembro de 2016, 13h51


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