__________________________
2. DOUTRINA NACIONAL______________________
2.5
O PAPEL
FUNDAMENTAL DO ADVOGADO
NA APLICAÇÃO DA
JUSTIÇA AMBIENTAL
E NO COMBATE AO
RACISMO AMBIENTAL
HUMBERTO ADAMI
SANTOS JUNIOR
e FLAVIA TAVARES ROCHA LOURES
SUMÁRIO: l. Direito ambiental
brasileiro e a efetividade das normas jurídicas pertinentes - 2.
Desenvolvimento sustentável e justiça ambiental - 3. Advocacia ambiental - 4.
Ética, direito e justiça ambiental - 5. Fundamentos dos conceitos de justiça e
de racismo ambientais. Dados concretos demonstrativos - 6. O Movimento por
Justiça Ambiental - 7. Os estudos de Robert D. Bullard - 8. O racismo ambiental
no Brasil, segundo Henri Acselrad - 9. A sociedade civil organizada por justiça
ambiental - 10. Exemplos de êxito do movimento -11. O Aterro de Gramacho - 12.
Conclusões - Bibliografia.
l. Direito ambiental brasileiro e a efetividade das normas
jurídicas pertinentes
A
Constituição Federal de 1988 se destacou por haver sido no Brasil a primeira a
dedicar um capítulo inteiro à tutela do meio ambiente, tomado este, em seu art.
225, caput, como bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida, impondo-se, tanto ao Poder Público como à coletividade,
o dever de preservá-lo e defendê-lo, para as presentes e futuras
gerações.
Os institutos e
princípios consagrados nos parágrafos do art. 225 da CF estão explicitados e
regulamentados em legislação infraconstitucional. Esta, como se sabe, é vasta e
bastante avançada no ordenamento jurídico pátrio. 1
A isso hão que se acrescentar os
demais textos legais pertinentes à matéria e aplicáveis em todo o território
brasileiro, a legislação ambiental estadual e muni-
(1) Interessante mencionar, nesse
sentido, as Leis 6.938, de 31.08.1981 (Política Nacional do Meio Ambiente),
9.605, de 12.02.1998 (Lei de Crimes Ambientais), 8.974, de 05.01.1995 (Lei de
Biossegurança), 9.985, de 18.06.2000 (Sistema Nacional de Unidades de
Conservação da Natureza), 7.802, de 11.07.1989 (Lei de Agrotóxicos), 9.795, de
27.04.1999 (Sistema Nacional de Educação Ambiental), 9.433, de 08.01.1997
(Política Nacional de Recursos Hídricos), 4.771, de 15.09.1965 (Código
Florestal), 5.197, de 03.01.1967 (Código de Caça), 10.257, de 10.07.2001
(Estatuto da Cidade), dentre outras.
cipal fundada
nos dispositivos constitucionais definidores das regras de competência, as
normas, critérios e padrões expedidos pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente -
Conama e as atividades de controle, monitoramento, fiscalização e
regulamentação a serem exercidas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e
dos Recursos Naturais Renováveis — Ibama e demais órgãos estaduais e municipais
competentes integrantes do Sistema Nacional de Meio Ambiente -Sisnama, conforme
previsto na Lei 6.938/81.
Para
impor o cumprimento desse robusto corpo de normas jurídicas, há também a
previsão normativa de severas sanções, tanto nos âmbitos administrativo e
penal quanto processual, além da responsabilização civil objetiva, por força da
qual se constitui, para o poluidor direto ou indireto, pessoa jurídica ou
física, pública ou privada, independentemente da demonstração de culpa, a
obrigação de recompor, ou, em não sendo isso possível, indenizar os danos
causados ao meio ambiente (art. 14, § 1.°, da Lei 6.938/81).
Como
se sabe, todavia, entre a existência de tal legislação e sua efetiva aplicação
coloca-se um abismo de enormes proporções.
Mais ainda,
quando encontramos, como resultado adverso da louvável tentativa de
descentralizar a proteção ambiental, a superposição de competências legislativas
entre a União Federal, os Estados e os Municípios. 2 Isso porque o
texto constitucional não delimitou com precisão as competências outorgadas a
cada um dos entes da Federação, o que tem dificultado, ainda mais, a
implementação da Política Nacional do Meio Ambiente e, por conseguinte, a
concreta aplicação da legislação ambiental, em virtude da ausência de uma norma
uniforme de conduta administrativa e de harmonia entre os órgãos e níveis de
poder a que se outorgaram competências e atribuições para levar a efeito a
proteção ambiental.3
Ademais, a
própria aplicação judicial das normas jurídicas, que resulta na jurisprudência,
embora, de fundamental importância para a efetividade e a evolução dinâmica
da legislação ambiental, tem-se revelado rara e ainda imatura.
A verdade é que
todas essas normas não têm conseguido abranger, de forma completa, o perfeito
equacionamento do binômio meio ambiente e desenvolvimento.
(2) Enquanto o art. 22
estabelece as matérias de competência privativa da União, às competências
comuns, de natureza administrativa, estabelecidas no art. 23, correspondem as
competências legislativas concorrentes dispostas no art. 24, dentre as quais
algumas, contraditoriamente, também se incluem no rol do referido art. 22,
todos da CF;
quanto ao art.
24, a União é competente para estabelecer normas gerais, ficando a competência
suplementar reservada aos estados e municípios, devendo estes últimos atuar
sobre temas de interesse local.
(3) A questão da superposição de competências é
bastante complexa e merece análise mais acurada, o que não caberia dentro dos
limites do presente trabalho. A esse respeito, cf. Paulo de Bessa Antunes, Direito
ambiental, 5. ed., Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2001, p. 60-64.
2. Desenvolvimento sustentável e justiça
ambiental
O conceito de
desenvolvimento sustentável - assim compreendido como a continuidade do
exercício das atividades econômicas, mediante a utilização racional e
planejada dos recursos naturais, garantindo-se, com isso, melhores condições de
vida para as gerações presentes, sem que se comprometa, para tanto, a fruição
dos bens ambientais, hoje disponíveis, pelas gerações futuras -tornou-se um
tema em constante discussão, devendo integrar o cotidiano do exercício das
atividades empresariais, financeiras e governamentais, dos movimentos sociais e
da comunidade como um todo.
Não é
mais possível, hoje, separar o progresso econômico da imposição constitucional
da garantia universal à fruição de um ambiente ecologicamente equilibrado.
Note-se que "preservação e progresso não são ideais incompatíveis. A
tutela do ambiente é perfeitamente conciliável com a necessidade de o Brasil
progredir" (Nalini, 2001, p. 135).
Mais
que isso, a ciência e a história já demonstraram que a economia não é capaz de
desenvolver-se senão em harmonia com o ambiente que a rodeia; isto porque, uma
vez esgotados os recursos naturais que a mantém em movimento e a partir dos
quais se desenvolve, a exemplo dos recursos hídricos como fonte de produção de
energia, a ordem econômica perderia sua razão de ser, deixaria de existir. Em
outras palavras, “[s]ó existe economia porque a ecologia lhe dá suporte. A
ecologia permite o desenvolvimento da economia. A exaustão da primeira
reverterá em desaparecimento da segunda (...) Depois, a ecologia não tem por
exclusiva função o sustento da economia. Ela é também fator da qualidade de
vida da espécie humana" (Nalini, 2001, p. 143).
Na verdade,
chegou-se a um ponto em que, ou bem o ser humano compreende agora que os
recursos naturais4 - atmosfera, águas interiores, superficiais e
subterrâneas, estuários, mar territorial, solo, subsolo e elementos da
biosfera, fauna e flora - são limitados, e não só isso, estão se esgotando em
ritmo alucinado, do mesmo modo que as áreas e sistemas aptos a exercer a função
de absorção de resíduos e emissões, ou, em pouco tempo, o sistema econômico
mundial sofrerá sério colapso, por absoluta escassez de fontes energéticas, de
alimentos para enorme parcela da população, de suprimento de água potável, por
acúmulo de lixo e excesso de emissões de gases poluentes etc.5
Compreendia
a noção de desenvolvimento sustentável, cumpre assinalar que esse conceito foi
incorporado pelo Movimento de Justiça Ambiental, no 3.°
(4) Art. 2.°, IV, da Lei 9.985/2000.
(5) Acerca de desenvolvimento
sustentável e esgotamento das funções de suprimento e de absorção, cf. Donella
Meadows, Beyond the limits: confronting global collapse, envisioning a
sustainable future, White Ri ver Junction, Vermont, EUA: Chelsea Green,
1992.
2. DOUTRINA
NACIONAL
Princípio (uso
responsável, ético e moderado do solo e dos recursos naturais) e no 17.°
Princípio (reavaliação dos hábitos de consumo e redução da produção de resíduos
e de emissões de substâncias prejudiciais à saúde, ao meio ambiente e ao
Planeta), entre os 17 Princípios aprovados durante The First National People of
Color Environmental Leadership Summit, realizado em 1991, em Washington, para
balizar a justiça ambiental, e dos quais alguns serão referidos e explicitados
no decorrer do presente trabalho.
3. Advocacia ambiental
Nesse contexto, o trabalho de advogados realmente
cientes das possibilidades que podem ser alcançadas ganha expressivo relevo,
pois estes não somente podem auxiliar o Ministério Público, advogando para
organizações não governamentais e associações similares, como também serão
capazes de educar, instruir e orientar os potenciais poluidores que lhes venham
consultar a respeito de questões ambientais, despertando nestes, por meio de um
constante trabalho de cunho preventivo, a consciência para a importância
social, econômica e ambiental do desenvolvimento sustentável.
O papel
do advogado é, pois, fundamental na interpretação das normas ambientais e, em
conseqüência, na aplicação efetiva da justiça ambiental e no combate ao
racismo ambiental. Isto porque é ele, o advogado, quem, na liderança do
processo, toma conhecimento do conflito de interesses entre as partes, teoriza
a solução e propõe ao Poder Judicante resposta às expectativas daquele que o
provocou. De fato, "o advogado é o canal pelo qual a sociedade exercita
seus anseios e os homens buscam satisfazer suas necessidades" (Fagúndez,
2001, p. 65).
Pode-se inclusive
dizer que, no campo ambiental, é exatamente a figura do advogado que está
faltando para incrementar e motivar o processo de transição por que a sociedade
vem passando, consubstanciado na conscientização de um número cada vez maior de
pessoas da urgente necessidade de se proteger, preservar, conservar e
restaurar este bem de interesse difuso, comum a todos os habitantes do
Planeta.
Tanto é
assim que vemos químicos, biólogos, arquitetos, engenheiros, entre outros
profissionais, manipulando livremente a legislação ambiental,
independentemente, contudo, do indispensável auxílio e orientação daquele que,
em última instância, irá promover a sua definitiva aplicação, em especial se as
pessoas por ela vinculadas não o fizerem espontaneamente.
Dito isso, a
advocacia ambiental vem ganhando espaço ao longo dos últimos anos, tanto nas
empresas prestadoras de serviços e indústrias utilizadoras de recursos
naturais, na qualidade de potenciais agentes poluidores, como nas associações e
organizações não governamentais, na qualidade de eficientes entidades
auxiliares do Poder Público na fiscalização e monitoramento da concreta e
adequada proteção ambiental e do cumprimento da legislação pertinente; e,
ainda, nas instituições financeiras públicas e privadas, em razão do crescente
entendimento
REVISTA DE DIREITO AMBIENTAL
– 27
segundo o qual estas poderiam ser responsabilizadas
por danos ambientais causados por projetos por elas financiados.
Nesse
enorme campo de atuação, o advogado pode colocar-se, em princípio, em três
posições especiais:
a) Advogando para empresas que
exerçam atividades potencialmente poluidoras
Cada vez mais, as empresas
percebem a importância de se considerar a questão ambiental na gestão de seus
negócios, na melhora da eficiência de seu desempenho, na redução de custos e no
aumento da competitividade no mercado em que atuam. Como se sabe, a
“ecoefíciência”, traduzida na minimização da geração de resíduos e no
gerenciamento do consumo de recursos naturais, representa a redução não apenas
do impacto ambiental, como também dos custos envolvidos na produção,
possibilitando, por conseguinte, a melhora na qualidade do produto e na
competitividade da empresa.
Do
mesmo modo, a preservação da imagem institucional empresarial perante os
consumidores, as autoridades governamentais e a opinião pública é questão que
ganha cada vez maior relevância. Não é difícil imaginar exemplos de empresas
que tiveram suas imagens seriamente comprometidas em virtude de danos causados
ao meio ambiente, decorrentes de condutas irresponsáveis e contrárias à
legislação ambiental brasileira em vigor.
Também
será importante a atividade do advogado na intermediação entre a empresa e o(s)
órgão(s) ambiental(is) competente(s) - em âmbito federal, estadual ou municipal
— no caso concreto, evitando abusos e orientando acerca das normas ambientais
aplicáveis e da necessidade de adequação a estas, a fim de legalizar, por meio
do competente processo de licenciamento ambiental, o exercício das atividades
produtivas da pessoa jurídica.
A esse respeito,
saliente-se, vez mais, o papel de educador ambiental do advogado atuante
nessa área: além do dever profissional, como advogado, de referir-se às
inúmeras vantagens, até mesmo econômicas, que podem ser auferidas por empresas
ambientalmente conscientes, e às despesas com multas de natureza
administrativa, penal, processual ou civil que podem ser evitadas, o cidadão há
que atentar para seu dever ético e procurar mostrar ao seu cliente a
necessidade premente de se dar adequado cumprimento à legislação aplicável, de
se proteger e conservar os bens ambientais e de se respeitar e apoiar as comunidades
atingidas pela poluição industrial, inclusive investindo na melhora da
qualidade de vida dessas populações, como justo retorno à sociedade que consome
seus produtos e permite-lhe o aferimento de lucros.
b) Advogando para grupos ambientalistas e
entidades ecológicas
As associações e organizações não
governamentais estão cada vez mais atuantes ou, ao menos, interessadas em atuar
na defesa do meio ambiente. Ao lado do Ministério Público - que hoje ainda
exerce o papel mais importante nessa seara, por meio, principalmente, da
propositura de ações civis públicas - as chamadas ONGs vêm ganhando importância
e espaço nos meios de comunicação,
2. DOUTRINA NACIONAL
em virtude da repercussão e eficiência
de seus projetos e dos notáveis resultados a partir deles obtidos.
Como é evidente,
a atuação das ONGs poderá vir a ser ainda mais significativa, ria medida em que
possam contar com assessoria e orientação de profissionais jurídicos altamente
experientes, adequadamente qualificados e genuinamente dispostos á participar
desse movimento. A esse respeito, vale referir o modelo norte-americano, em que
o quadro interno de tais instituições é composto de considerável número de
advogados, cada qual coordenando determinado campo do direito ambiental, como
energia, gerenciamento costeiro, direito urbanístico, entre outros. 6
Nessa posição,
portanto - e diante da Constituição Federal de 1988, que deu reais condições às
entidades associativas, mais especialmente às ambientalistas, para que
eficazmente representem seus filiados, judicial ou extrajudicialmente, fazendo
uso de tal possibilidade por meio de seus advogados -, estes terão a seu dispor
todo um leque de instrumentos legais destinados à sociedade civil, de forma a
municiar com técnica e, conseqüentemente, aprimorar a árdua luta socialmente
organizada em prol da preservação e conservação do meio ambiente.
c) Advogando
para instituições financeiras, que financiem projetos, obras e serviços
potencial ou efetivamente causadores de degradação ambiental
A relação entre
os bancos e o meio ambiente está se tomando cada vez mais estreita, e isso
ocorre em virtude dos inúmeros dispositivos legais aplicáveis à espécie, a
partir dos quais emerge a interpretação no sentido de que essas instituições
podem ser consideradas solidariamente responsáveis, nos âmbitos cível e
criminal, por danos ambientais decorrentes de projetos por elas financiados. 7
Mencionem-se, de
início, o advento da Declaração dos Bancos para o Meio Ambiente e
Desenvolvimento Sustentável, assinada em Nova Iorque, nos EUA, em 1992, que é
um marco na história das instituições financeiras, a ser adotado para urgentes
reflexões por parte do meio bancário brasileiro, e a assinatura do Protocolo
Verde, no Brasil, em 1995, que é fundamental para a aproximação dos bancos
brasileiros com os princípios constantes daquela declaração.
No plano
legislativo interno, há a Lei 6.93 8/81, acima mencionada; seja por força de
seu art. 12, que impõe às entidades e órgãos de financiamento e incentivos
governamentais o dever de condicionar a aprovação de projetos habilitados a
esses benefícios, ao licenciamento, na forma desta Lei, e ao cumprimento das
normas, dos
(6) Conferir, a título de exemplo:
- website da Conservation Law Foundation,
organização regional sem fins lucrativos, de interesse público de proteção
ambiental, com sede na Nova Inglaterra, EUA.
(7) Cf. Humberto Adami Santos Júnior, Responsabilidade
das instituições financeiras frente ao dano ambiental de projetos por elas
financiados, dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro - UERJ como parte integrante dos requisitos para
obtenção do título de Mestre em Direito da Cidade e Urbanismo.
REVISTA DE
DIREITO AMBIENTAL - 27
critérios e dos
padrões expedidos pelo Conama; seja em razão de seu art. 3.°, IV - que
traz o conceito de “poluidor indireto”, categoria esta na qual os bancos
poderiam ser inseridos, na qualidade de financiadores de atividades poluidoras,
combinado com o seu art. 14, § 1.° - que prevê a responsabilidade civil
objetiva inclusive do poluidor indireto pela reparação ou indenização dos danos
causados ao meio ambiente.
Ademais, se
considerarmos que poluir é crime, nos termos do art. 54 da Lei de Crimes
Ambientais, 8 o financiamento de atividades poluidoras recairia no
art. 1.521 do CC, ficando, portanto, a instituição financeira envolvida na
qualidade de “cúmplice” e, assim, solidariamente responsável por eventuais
danos ambientais.
Ainda na esteira
da Lei de Crimes Ambientais, o art. 3.° consolida, na forma prevista na
Constituição Federal, a responsabilidade penal da pessoa jurídica causadora de
danos ambientais, assim como a possibilidade de desconsideração da
personalidade jurídica sempre que esta for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos
causados à qualidade do meio ambiente (art. 4.°).
Também há que se
referir ao tipo penal de gestão temerária, 9 previsto no art. 4.°,
par. ún., da Lei 7.492/86 (Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional), que,
se combinado com o art. 12 da Lei 6.398/81, já mencionado acima, induz ao tipo
“gestão temerária ambiental” e, por conseguinte, à possibilidade de
enquadramento penal para os administradores de instituições financeiras. A
“gestão temerária ambiental”, portanto, teria lugar quando o administrador da
instituição financeira deferisse o crédito em desobediência ao disposto no art.
12 da Lei 6.398/81, isto é, sem exigir do projeto em questão o necessário
licenciamento ambiental e o cumprimento das normas, critérios e padrões
estabelecidos pelo Conama; neste caso, seria possível a equiparação do administrador
da instituição financeira ao poluidor direto, ficando aquele, por isso, incurso
no crime de “gestão temerária ambiental”.
Por
fim, cabe lembrar que o art. 2.°, § 3.°, da Lei 8.974/95, que trata de
biossegurança, expressamente prevê que as organizações públicas e privadas,
nacionais, estrangeiras ou internacionais, financiadoras ou patrocinadoras de
atividades ou de projetos de alguma forma relacionados a Organismos
Geneticamente Modificados (OGMs), deverão certificar-se da idoneidade
técnico-cientifíca e da plena adesão dos entes financiados, patrocinados,
conveniados ou contratados, às normas e mecanismos de salvaguarda previstos
nesta lei, para o que deverão exigir a apresentação do certificado de qualidade
em biossegurança (art. 6.°, XIX), sob pena de se tornarem co-responsáveis pêlos
eventuais efeitos advindos de seu descumprimento.
Recorde-se,
ademais, que os bancos têm em seu poder a possibilidade e, em verdade, o dever
ético de estimular e dar preferência, no processo de seleção de
(8) “Art. 54. Causar poluição de qualquer
natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde
humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa
da flora (...)."
(9)
Sobre o alcance da
expressão "gestão temerária", cf. Rodolfo Tigre Maia, Dos crimes
contra o Sistema Financeiro Nacional, São Paulo: Malheiros, 1996, p. 59.
2. DOUTRINA
NACIONAL
projetos a serem
financiados, à implementação daqueles que tomem a componente ambiental como
premissa básica, demonstrando sincera preocupação com a recuperação e a
conservação do meio ambiente local e com a saúde, segurança e o bem-estar das
comunidades mais atingidas por tais projetos.
Assim posicionados nos mais variados pontos de
discussão, aos advogados cabem o exame e o direcionamento das controvérsias
jurídicas que começam a aparecer e que, por certo, têm alvoroçado a comunidade
jurídica, na esteira da efervescência política a que se tem alçado o movimento
ambiental, não se restringindo à comunidade acadêmica ou intelectual, mas
também alcançando diversos setores sociais, ao redor do mundo, na qualidade de
legítimo herdeiro dos grandes movimentos políticos da década de 60.
4. Ética, direito e justiça
ambiental
Na seara da justiça
ambiental, o papel do advogado é fundamental na disseminação desse novíssimo
desdobramento do direito ambiental na comunidade como um todo, a ser
forçosamente considerado pela ética jurídica moderna, inforrmada pela doutrina
holística, “em que todo o indivíduo, a sociedade e a natureza formam um
conjunto indissociável, interdependente e em constante movimento” (Weil, 1991,
p. 88, citado em nota de rodapé por Fagúndez, 2001, p. 6910). Nesse
Sentido, importa reafirmar e restabelecer de forma pragmática o compromisso do
direito com a vida, sua preservação e compreensão, com a ética e com a
construção; de uma sociedade mais livre, justa e igualitária.
Os advogados ambientalistas
no Brasil, aliás, já desfrutam de uma entidade que os congrega. A Associação
Brasileira dos Advogados Ambientalistas - Abaa11 vem implementando,
em atuação pioneira, desde 1993, a concepção de que o Itiomem deve aproximar-se
da natureza e viver em harmonia com os demais seres, com o Planeta e com o
Universo, e a compreensão de que somos partes integrantes de um todo, uno e
maior.
O advogado deve, enfim,
respeitar a vida em todas as suas formas e manifestações e combater eticamente
a marginalização de parcela do povo, mais especialmente o racismo ambiental
- esse mal que nos aflige e ainda tão corrente em nossas sociedades.
“O
advogado do novo milênio deverá ter um papel que transcende ao que lhe foi
reservado pelo sistema capitalista (...) estar voltado para as novas demandas
sociais (...) Enfim, atuará num direito comprometido em estimular condutas positivas
(...) educar (...) O direito deverá se encontrar com a ética, retomar o
(10) “O advogado e a nova
ética”, capítulo escrito por Paulo Roney Ávila Fagúndez, na obra Ética
holística aplicada ao direito, 18. ed., Florianópolis: OAB/SC, 2001, p.
53-76.
(11) A
Abaa possui sede na capital do Estado do Rio de Janeiro, na Rua Senador Dantas,
75, conjunto 2.601, CEP 20031-201; fone 2544-5099; fax 2524-4606; site ;
e-mail .
REVISTA DE DIREITO AMBIENTAL
- 27
compromisso com
a estética e buscar o reencontro com a vida na sua complexidade (...) Há
necessidade de se despertar para a solidariedade, que somente é possível com a
atitude responsável de toda a pessoa (...) Para que se tenha paz há a
necessidade que cada um seja responsável por si e pelo futuro da humanidade
(...)” (Fagúndez, 2001, p. 53-54).12
Essa compreensão holística da interdependência entre todos os seres, do
dever de respeito mútuo intra e inter espécies e da imperiosa necessidade de
convivência harmônica e pacífica entre os elementos que partilham o mesmo
espaço, parece haver sido incorporada no primeiro princípio que rege o
Movimento por Justiça Ambiental.
5. Fundamentos dos conceitos de justiça e
de racismo ambientais. Dados concretos demonstrativos
A
idéia fundamental por detrás de conceitos como justiça e injustiça ou racismo
ambientais, a seguir examinados, é a de que, do mesmo modo que os benefícios da
aplicação concreta do desenvolvimento sustentável, assim como os bens
ambientais postos à disposição para fruição racional, devem alcançar uniformemente
todos os membros da sociedade, 13 os ônus decorrentes do progresso,
especialmente se realizado, como ainda o é hoje, de forma irresponsável, devem
ser preferencialmente eliminados, senão suportados igualmente por toda a
coletividade - e não discriminadamente por minorias de pouca ou nenhuma
representatividade política ou financeira, por questões de discriminação
racial, étnica ou econômica.
Na verdade, para
compreender o real alcance da expressão justiça ambiental, importa
analisar alguns dados que expressam de forma franca o que se costuma chamar racismo
ambiental, coletados por diversas organizações envolvidas no movimento:
(i)
“a composição racial de uma comunidade é a variável mais apta a explicar a
existência ou inexistência de depósitos de rejeitos perigosos de origem
comercial em uma área”, 14 havendo, assim, probabilidade muito maior
de que uma fábrica de
(12) Op. Cit.
(13) 12.º Princípio de
Justiça Ambiental.
(14) LAITURI, Melinda.
"Andrew Kirby, finding faimess in Americas's cities? The search for
environmental equity in everyday life", Journal of Social Issues,
vol. 50, n. 3,1994, p. 125, citada por Heniy Acselrad, Justiça Ambiental -
Novas articulações entre meio ambiente e democracia. Série Sindicalismo e Justiça Ambiental,
Movimento Sindical e Defesa do Meio Ambiente: o debate internacional, editada
em cooperação pelo Projeto Meio Ambiente e Democracia, do Ibase - Instituto
Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, pelo Instituto de Pesquisa e
Planejamento Urbano da UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro -
IPPUR/UFRJ, com apoio da Central Única do Trabalhadores do Rio de Janeiro -
CUT/RJ, através de sua Comissão de Meio Ambiente. Rio de Janeiro, 2000, vol.
III, p. 10. Essa conclusão foi extraída de um relatório elaborado em 1987 pela
United Church of Christ Commission on Racial Justice.
2. DOUTRINA NACIONAL
produtos tóxicos ou perigosos se instale em comunidades de minorias
raciais ou étnicas, do que em comunidades de população predominantemente
branca;
(ii) 80% (oitenta por cento) dos
afro-americanos vivem a menos de 5 km (cinco quilômetros) de instalações
industriais altamente poluidoras e emissoras de substâncias tóxicas;
(iii) afro-americanos que residem no Câncer
Alley, como é referida a área situada no Corredor Industrial do Rio Mississipi,
por concentrar enorme quantidade de indústrias poluentes, estão submetidos ao
que se denomina Double Jeopardy, vez que expostos a produtos poluentes tanto de
grandes indústrias como de fábricas menores, que se concentram nas mesmas
áreas dentro dessas comunidades;
(iv)
por outro lado, os membros dessas comunidades negras são raramente empregados
nessas empresas - menos de 1% (um por cento);
(v) segundo
moradores de áreas altamente contaminadas, uma das exigências dos governos de
algumas comunidades, ao autorizar a instalação das indústrias, é a de que os
negros não sejam por elas contratados, pois seu trabalho é considerado mais
importante no campo;
(vi)
muitos habitantes negros das regiões do Câncer Alley estão doentes e morrendo,
embora ainda não haja prova científica estabelecendo o elo entre essas doenças
e a poluição que se concentra nesses locais, e que os submete à exposição
constante e em pequenas doses a diversas formas e concentrações de produtos
químicos perigosos.
Inserido na noção de injustiça ambiental, o racismo
ambiental, portanto, traduz-se no fato de que a legislação ambiental,
embora existente, não tem alcançado todas as camadas da população,
marginalizando, ainda mais, comunidades já tão excluídas socialmente:
afro-americanos, latinos, asiáticos, polinésios, povos nativos do Alaska e
indígenas americanos. Isso porque essas comunidades não têm sido beneficiadas
por programas políticos de imposição do cumprimento à legislação ambiental e de
saúde pública, assim como são vítimas de insuficiente destinação de recursos
públicos e privados para financiamento da correção dos problemas ambientais que
são diariamente obrigadas a enfrentar.
Em outras
palavras, há um padrão de discriminação ambiental que submete determinadas
comunidades, com muito maior intensidade, a danos ambientais decorrentes das
atuais políticas econômicas e de mercado. Isso ocorre tanto em países
industrializados, como os EUA, como em países em desenvolvimento, fe como o
Brasil, e, infelizmente não tem recebido da opinião pública e de pessoas
capacitadas ao debate a atenção que merece.
É notável, pois,
dentro de nossas sociedades, o desproporcional impacto, que se vem revelando
ao longo de gerações após gerações, produzido por substâncias tóxicas e
poluentes, inerentes ao ainda atual modelo de desenvolvimento econômico
irresponsável (leia-se, aquele praticado deforma insustentável), sobre os
bairros residenciais, escolas, locais de trabalho e de lazer das minorias
raciais e étnicas e da população mais pobre e carente das atenções do Poder
Público e da sociedade civil organizada.
REVISTA DE
DIREITO AMBIENTAL - 27
Paradoxalmente,
as mesmas comunidades que servem como depósitos do lixo produzido pela
sociedade acabam sendo impedidas, até mesmo, do ter acesso a uma parcela justa
dos bens da vida postos à disposição para consumo, como maiores ofertas de
empregos, investimentos em educação e distribuição isonômica de recursos públicos
arrecadados com o pagamento de tributos. Essas desigualdades são motivadas
pelas regras que regem o mundo e a economia globalizados, oferecendo cada vez
maior liberdade às grandes corporações e, por outro lado, dificultando em ritmo
crescente as possibilidades de autodefesa das comunidades minoritárias contra
os efeitos adversos econômicos e ambientais por elas sofridos.
Lidar, enfim,
com justiça ambiental significa preocupar-se com questões como; produtos
tóxicos e radioativos nas comunidades; os riscos suportados por membros
vulneráveis da sociedade, a exemplo de trabalhadores rurais, que ficam expostos
aos perigos oferecidos à saúde humana por pesticidas; crianças com asma e
outras doenças respiratórias; saúde pública, abrangendo a segurança da água e
dos alimentos destinados ao consumo familiar, assim como os efeitos de
substâncias poluidoras do ar, como o chumbo; a escolha forçada e não mais
admissível entre trabalho, desenvolvimento econômico e proteção ambiental; a
falta de oportunidades concedidas aos jovens, a fim de que possam se tornar
líderes comunitários e dar significativas contribuições à sociedade em que
vivem.
6. O Movimento por Justiça Ambiental
O chamado Movimento por
Justiça Ambiental se constituiu nos EUA nos anos 80, como resultado de lutas
articuladas de naturezas social, territorial, ambiental, assim como de
direitos civis, direitos de propriedade, direitos humanos internacionais e de
imigrantes, trabalho, segurança e saúde públicas e ocupacionais e de justiça
econômica e social.
Emerge
na qualidade de herdeiro das discussões do fim da década de 60 acerca de
condições inadequadas de saneamento, contaminação química de residências e
ambientes de trabalho e disposição indevida de resíduos sólidos tóxicos e
perigosos, e da articulação, nos anos 70, de sindicatos, ambientalistas e
minorias étnicas para exame da poluição urbana.
A
propósito, o fato histórico que marcou a afirmação do movimento foi a luta
iniciada por moradores (84% de negros) de Afton, condado de Warren, Carolina do
Norte, em 1982, em face da eminente contaminação da rede local de abastecimento
água; nesse caso concreto, o critério racial para seleção do local de
instalação do depósito era evidente. Como resultado, a Justiça Ambiental foi
alçada à condição de questão central na luta pêlos direitos civis e o Movimento
Ambientalista evoluiu para demonstrar maior preocupação com as desigualdades
sociais, sob uma ótica ambiental.
Questionando o
modelo atual de desenvolvimento, o Movimento por Justiça Ambiental espalhou-se
pelo mundo como um clamor por justiça e igualdade, nos campos econômico, social
e ambiental. Transcende, assim, o direito ambiental, para pregar a importância
e a necessidade de se ir além da simples proteção do
2. DOUTRINA
NACIONAL
solo, do ar e dos recursos hídricos, por meio da implementação de
programas preventivos de saúde pública e da provisão, às comunidades urbanas e
rurais, de maior controle sobre seus próprios recursos, encorajando-as a
manifestarem-se por si mesmas.
Note-se que não
se trata de transferir para outras comunidades menos organizadas os riscos
ambientais, mais sim de gerenciá-los dentro dos princípios que norteiam o
desenvolvimento sustentável, tal como acima examinado. Prioriza-se, nesse
sentido, a proteção ambiental quando realizada nos locais onde as comunidades
vivem, trabalham e estudam, pois aqui a noção de meio ambiente engloba
todo esse espaço, e não apenas a natureza selvagem. E formar comunidades
saudáveis e com acesso à informação e ao conhecimento, capacitando-as a contribuir
com a construção de um mundo melhor e de um meio ambiente equilibrado, é
compromisso fundamental desse movimento.
Este, como se
vê, traz um enfoque um pouco diferente do meio ambiente se comparado com as
organizações não governamentais que atuavam na área, as quais, em regra, não
costumavam estender os olhos para as injustiças ambientais que afligem muitas
comunidades. O advento de um movimento independente para lidar com tais
questões, por isso, foi tão importante.
Os 17 Princípios
da Justiça Ambiental que balizam'esse movimento foram estabelecidos na I Cúpula
Nacional de Lideranças Ambientalistas de Povos de Cor, 15 em 1991,
que teve por objeto incorporar a causa das minorias étnicas e raciais e dos
menos favorecidos nas políticas dos EUA.
Como resultado,
veio a consolidação do movimento como congregação de diversas raças e culturas
que, já tendo ultrapassado as fronteiras nacionais, aproxima entidades de
direitos civis, grupos comunitários, organizações de trabalhadores, igrejas e
intelectuais, unificando os movimentos sociais e ambientalistas ao redor do
mundo.
7. Os estudos de Robert D. Bullard16
Como tradução prática do racismo ambiental,
Robert D. Bullard, além de mencionar vários casos concretos, destaca o que
denomina “Colonialismo Tóxico”, assim definido como o comportamento dos países
industrializados, “justifi-
(15) Essa é a tradução oferecida por Henri Acselrad, Justiça
ambiental - Novas articulações entre meio ambiente e democracia. Série
Sindicalismo e Justiça Ambiental. Idem, p. 11, para a The First National People
of Color Environmental Leadership Summit, que não pode deixar de ser
questionada, à luz da realidade brasileira, onde as expressões “povos de cor”,
“pessoas de cor” e “comunidades de cor’ não são bem recebidas por aqueles a
quem intencionam referir, pois estão carregadas, na língua portuguesa, de certo
conteúdo pejorativo, de modo que devem ser ao máximo evitadas.
(16)
“A anatomia do racismo ambiental e o Movimento por Justiça Ambiental”. Confronting
environmental racism - Voices from the grassroots. Boston, Mass: South End Press, 1996,
transcrito na Série Sindicalismo e Justiça Ambiental. Op. cit., p.
32-42.
REVISTA DE DIREITO AMBIENTAL – 27
Cado” com “uma
lógica puramente econômica e injusta”, que desenvolveram o hábito de despejar o
seu lixo sobre as comunidades não brancas e pobres do Terceiro Mundo e nelas
introduzir tecnologias de risco.17
Narra, a esse
respeito, que na fronteira dos EUA com o México operam mais de l.900 fábricas
de montagem de propriedade de empresas estrangeiras, que se aproveitam da
mão-de-obra barata mexicana, criando subempregos e agravando os problemas de
poluição industrial e da superpopulação das cidades e, comprometendo, assim, a
saúde dos trabalhadores e habitantes locais.
Além disso,
também descreve a evolução do Movimento de Justiça Ambiental nos EUA, desde o
surgimento dos primeiros grupos de comunidades de base, compostos por ativistas
negros que desafiavam as industrias poluidoras e também os movimentos puramente
ambientalistas, por muito tempo indiferentes aos danos ambientais causados de
modo desproporcional e discriminatório às minorias raciais e étnicas e aos mais
pobres. Ressalta que esse movimento tem-se concentrado em questões como
localização de vazadouros de lixo, intoxicação por chumbo, pesticidas,
poluição d'água e do ar, autonomia de governos indígenas, testes nucleares e
segurança no trabalho.
Esse autor
também destaca a crescente documentação registrando o racismo ambiental no
mundo e fortalecendo, por conseguinte, as reivindicações dó Movimento por
Justiça Ambiental no sentido de um meio ambiente equilibrado, seguro e saudável
como direito de que todas as pessoas e comunidades, igualitariamente, são
titulares. Nesse mesmo passo, como constata, até mesmo os grupos ambientalistas
mais convencionais vêm compreendendo melhor a grande importância das questões
de justiça ambiental, conferindo ao movimento maior apoio por meio de
assessoria técnica, ajuda financeira direta, captação de recursos, pesquisa e
assistência legal.
Quanto à
organização tática do movimento, o autor refere as estratégias do antigo
movimento de luta por direitos civis, tais como protestos, passeatas, petições,
lobbies, relatórios, apuração de fatos e audiências para instruir a
comunidade e intensificar o debate público, além de oficinas e fóruns entre as
associações de bairro para mantê-las informadas. Tais táticas destinam-se à
sensibilização dos governos em âmbito federal, estadual e local, como
instrumento de influência sobre a tomada das decisões18 pertinentes
aos ideais buscados pelo movimento.
O autor
conclui com exemplos de como as minorias desfavorecidas nos EUA vêm tomando as
necessárias iniciativas no sentido de defesa de seus direitos: nesse sentido,
mencionem-se os esforços do Grupo de Ação Comunitária da Zona
(17) Um memorando interno, de 12.12.1991, escrito
por Lawrence Summers, economista-chefe do Banco Mundial, explicita
detalhadamente essa condenável política, cujos trechos principais foram
transcritos por Robert D. Bullard. Op. cit., p. 34-35.
(18)
Aliás, a participação democrática das comunidades na tomada de decisões
relevantes é considerada princípio fundamental do movimento (7.° Princípio).
2. DOUTRINA
NACIONAL
Nordeste de Houston, que lograram êxito ao serem
baixados: Resolução proibindo caminhões de lixo municipais de despejarem
detritos em certas regiões não adequadas; Regulamento que limitou a construção
de vazadouros para resíduos sólidos nas proximidades de locais públicos; e
normas atualizando e revisando os requisitos exigidos para obtenção de licença
de construção de aterros sanitários.
8. O racismo ambiental no Brasil, segundo Henri Acselrad19
Esse autor chama atenção
para a morte de uma criança de um ano, na Baixada Fluminense, no Município do
Rio de Janeiro, em maio de 2000, por intoxicação por produtos industriais após
brincar em um terreno baldio ao lado de casa, como mais um exemplo do
lançamento de resíduos perigosos em espaços públicos, principalmente em regiões
onde moram as camadas mais pobres de nossas sociedades. Em situações como essa,
revela-se o desequilíbrio sócio-ambiental, que ainda é corrente em nosso País,
quanto à exposição da população a substâncias poluentes e tóxicas.
Assim é que, em
virtude da localização de suas casas, às margens das concentrações urbanas, os
menos favorecidos, também no Brasil, estão mais expostos a riscos ambientais,
tais como enchentes, desmoronamentos, esgotos a céu aberto, lançamentos de
rejeitos sólidos e emissões líquidas e gasosas. Daí a correlação entre
indicadores de pobreza e de doenças associadas à poluição, tão bem descrita
por esse autor.
O professor
atribui esses fatos aos mecanismos de privatização do uso dos recursos
ambientais coletivos (água, ar e solo); e lembra que, ao mesmo tempo em que as
empresas limitam-se a evitar desperdícios ou simplesmente operam dentro dos
mecanismos de mercado, preferindo instalar-se nas comunidades mais pobres, por
conta dos custos reduzidos, os governos omitem-se ou agem com práticas
discriminatórias; ambos os agentes, como conclui, não atentam para o evidente binômio
degradação ambiental — injustiça sócia.
Os movimentos
sociais, por seu turno, já compreenderam que o mercado sozinho é incapaz de
superar essas questões e que somente o efetivo exercício da democracia e a
capacidade defensiva da sociedade serão capazes de promover a justiça
ambiental. O professor ainda observa a concreta relação existente entre o
crescimento do desemprego e a redução da capacidade de organização e
resistência dos trabalhadores, seguida do descaso por parte das empresas e da
intensificação do ritmo de trabalho dos que continuam empregados, dos acidentes
e dá ocorrência de danos ambientais.
(19) Justiça
ambiental: novas articulações entre meio ambiente e democracia. Série Sindicalismo
e Justiça Ambiental. Op. cit., p.
7-12. Henri Acselrad é Doutor em Economia pela Universidade de Paris e
Professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ
(IPPUR/UFRJ).
REVISTA DE
DIREITO AMBIENTAL - 27
Segundo
esse professor, o debate acerca de tais questões, no Brasil, ainda é
insuficiente, sendo necessário coordená-lo com discussões acerca das condições
de vida da população e do processo de construção de direitos, de modo a
harmonizar a proteção ambiental com os princípios democráticos. E preciso
compreender, portanto, a íntima conexão existente entre “as lutas ambientais
e por justiça ambiental”; entre os “movimentos ambientalistas e sindicais”;
entre as “desigualdades sociais e ambientais”; entre, em última análise,
“raça, pobreza e poluição”; relações essas que vêm continuamente afligir a
nossa sociedade, como aspectos de um mesmo e único processo de desagregação
que “separa ricos e pobres, brancos e negros”.
O Prof.
Acselrad enumera algumas das causas da injustiça ambiental (p, 10-11):
“disponibilidade de terras baratas”; “falta de oposição da população local por
fraqueza organizativa e carência de recursos políticos”; “falta de mobilidade
espacial das ‘minorias’ em razão da discriminação residencial”; e “subrepresentação
das ‘minorias’ nas agências governamentais responsáveis por decisões de
localização dos rejeitos”.
9. A sociedade
civil organizada por justiça ambiental
Em
relação às organizações que impulsionam o movimento, o Environmental Justice
Found20 é uma organização nacional fundada em 1995 por seis redes21
de entidades de justiça “ambiental e dedicada a fortalecer a justiça ambiental,
por meio do aprimoramento da capacidade, dessas e de outras redes sociais
ligadas ao assunto, de aumentar seus fundos e implementar seus programas. Tais
redes, por sua vez, são fundadas nas comunidades onde atuam e buscam a
realização da justiça econômica e ambiental. Seu fundamento é a união
estratégica de esforços, até então isolados, a fim de criar um modelo
descentralizado capaz de promover
(20) 310 Eighth Street, Suite 100, Oakland, CA 94607; fone (510) 267-1881;
fax (510) 267-1884; e-mail
; Website .
(21) As seis redes são: l. Asian Pacific Environmental Network (Apen) - 310
Eighth Street, Suite 309, Oakland, CA 94607; fone (510) 834-8920; e-mail
;
Website ; 2. Farmworker Network for Econonüc and Environmental Justice (FWN) -
1.902 Barton Park Road, Suite 209, Aubumdale, FL 33823; fone (863) 956-5183; e-mail ; Website
; 3. Indigenous Environmental Network (IEN) -
P.O. Box 485, Bemidji, MN 56619; fone (218) 751-4967; e-mail
; Website ; 4. Northeast
Environmental Justice Network (NEJN) - 271 West 125"' Street, Suite 211,
New York, NY 10027; fone (212) 961-1000; e-mail ; Website
; 5. Southern
Organizing Comittee forEconomic and Social Justice (SOC)-P.O. Box 10518,
Atlanta, GA30310; fone (404) 755-2855; e-mail ; Website
; 6. Southwest Network for Environmental and Econonüc
Justice (SNEEJ) - P.O. Box 7399 Albuquerque, NM 87194; fone (505) 242-0416; e-mail
.
DOUTRINA NACIONAL
o surgimento de lideranças
locais por todo o país, a partir do reconhecimento de que o fortalecimento do
movimento em âmbito internacional e nacional depende diretamente da mobilização
em escalas menores.
O Deep South
Center for Environmental Justice - DSCEJ,22 fundado em 1992 pela
Dra. Beverly Wright, professora de sociologia e referência como ativista no
campo da justiça ambiental, e desenvolvido junto à Xavier University Of
Louisiana - XU, em New Orleans, com a colaboração de grupos ambientalistas de
dentro das comunidades locais e outras universidades da região, tem por
finalidade lidar com questões de justiça ambiental.
Essa
universidade é historicamente composta por negros e está localizada nas
proximidades de algumas das mais industrializadas e poluídas comunidades do
Estado da Louisiana, as quais têm suportado os terríveis efeitos decorrentes da
degradação ambiental desproporcional na região - o que justifica o seu trabalho
e interesse no sentido de aprimorar a qualidade do ambiente e de vida dos habitantes
locais. O DSCEJ tem dado oportunidade às comunidades, aos seus líderes e
representantes, e a pesquisadores científicos, de colaborar com programas e
projetos que promovam o exercício concreto do direito, de que são titulares
todas as pessoas, à qualidade de vida, livre de danos ambientais e dos impactos
por estes causados sobre a saúde, o desenvolvimento das atividades
profissionais e domésticas e a educação.
Seus objetivos
fundamentais são: i) parcerias entre as comunidades e as universidades,
enriquecendo a pesquisa e o conhecimento acadêmicos com a experiência concreta
de vida das populações diretamente atingidas pela poluição; ii) interação entre
os componentes do programa; e iii) preservação da herança cultural dos povos.
Tais objetivos serão alcançados por meio de pesquisa e desenvolvimento de
políticas, assistência à comunidade, educação23 e treinamento, nos
níveis primário, secundário e universitário.
Esse mesmo
centro também oferece workshops para a comunidade, tratando de questões
como: i) introdução à justiça ambiental; ii) informações, técnicas e
estratégias para a prevenir a poluição; iii) formação e desenvolvimento de
lideranças representativas das minorias, que participem efetivamente de
decisões políticas relativas a emissões de produtos químicos tóxicos e inspirem
e apóiem os demais membros da comunidade; e iv) relação da comunidade com as
agências governamentais e compreensão do processo de licenciamento ambiental e
das normas de competência.
Proporciona, ademais,
programas de treinamento de trabalhadores em vários estados, em parceria com
outras universidades e instituições, intensificando as
(22) Xavier University of Louisiana, Deep
South Center for Environmental Justice - Box 45B, l Drexel Drive, New Orleans
LA 70125; fone: 504.304.3324; fax: 504.304.3329;
e-mail ;
(23) A educação ambiental e social das presentes e futuras
gerações está prevista no 16.° Princípio de Justiça Ambiental.
REVISTA DE
DIREITO AMBIENTAL - 27
relações entre a
universidade e a comunidade, aprimorando a educação dos participantes e
aumentando, com isso, suas oportunidades de emprego no crescente mercado de
atividades voltadas à proteção e à recuperação do meio ambiente.
Com
esse trabalho, vários resultados já foram alcançados. Em âmbito local, o
treinamento de professores e o desenvolvimento de grades curriculares, que já
vêm sendo usadas nas escolas, com a inclusão da disciplina justiça ambiental,
merecem destaque. No plano internacional, a eficaz formação de porta-vozes vem
permitindo a disseminação do conceito de justiça ambiental no mundo.
O DSCEJ
também desenvolve estudos que demonstram exemplos concretos de como o racismo
ambiental vem ocorrendo no mundo. Como se constatou, a região do Câncer Alley,
e onde se concentra a atuação do centro, abriga 136 pólos petroquímicos e 6
refinarias de óleo e é responsável por 1/5 da produção norte-americana no
setor. O ar, a água e o solo da região estão tão contaminados que já foi ela
referida como um imenso experimento humano, que acabou transformando-se
radicalmente numa das áreas mais pobres e atrasadas do Estado de Louisiana.
O ônus
desse desenvolvimento recaiu obviamente sobre o meio ambiente e as comunidades
que ali habitavam muito antes da chegada das indústrias; hoje, 80% dos
afro-americanos que ocupam essa área vivem a uma absurda distância de menos de
5 km das instalações industriais tóxicas. Desnecessário dizer que também essas
comunidades foram as que obtiveram menores benefícios com a industrialização
acelerada, inclusive quanto às ofertas de empregos.
De
qualquer modo, algumas dessas comunidades conquistaram vitórias, para as quais
a assessoria jurídica foi fundamental. Exemplo disso é o caso da Shintech
Corporation, empresa japonesa que pretendia construir a maior fábrica do mundo
de PVC em Convent-Louisiana, pequeno município rural de aproximadamente 2.000
habitantes, situado dentro do Câncer Alley. A área desse município mais próxima
do local escolhido pela empresa, que, aliás, já sofre com a presença de outras
fábricas e com altas emissões de gases tóxicos, é ocupada por 82% de
afro-americanos. A fábrica, que seria um imenso empreendimento, liberaria no ar
272.156 kg de substâncias químicas tóxicas e despejaria diariamente no Rio
Mississipi 8 milhões de resíduos.
A
população local já vinha reclamando da poluição e denunciando problemas de
saúde, como asma, dificuldade respiratória e câncer; a pretensão daquela
empresa foi a gota d'água para a comunidade. Depois que políticos locais se
recusaram a prestar qualquer assistência, o povo se uniu para formar a St.
James Citizens for Jobs and the Environment - SJCJE, que deu início a uma
agressiva batalha legal contra a construção da indústria, com o apoio do
Greenpeace e da Tulane University Law Clinic. Poucos meses depois, com a
pressão exercida pela SJCJE e seus aliados, o órgão ambiental, em decisão sem
precedentes, rejeitou o pedido de licença formulado pela Shintech, com base em
argumentos técnicos, sem considerar, entretanto, as questões apontadas sob a
ótica da justiça ambiental. Dias depois, a companhia anunciou que havia
desistido de seus planos em Convent, transferindo seu campo de atuação rio
acima, próximo a Baton Rouge.
2. DOUTRINA NACIONAL
A consultoria jurídica (legal
assistance) prestada por uma eficiente equipe de advogados foi considerada
pelo DSCEJ, conforme se extrai de sua publicação, o quarto fator mais
importante e decisivo na obtenção de tal vitória, precedido por cidadãos
ativistas liderando as comunidades, acesso a informações e capacitação para
compreendê-las e suporte técnico e educacional.
O West Harlem Environmental
ACTion (WE ACT)24 foi fundado em 1988 na comunidade de Harlem e
trata-se de associação sem fins lucrativos, dedicada a melhorar a qualidade de
vida e a implementar a justiça ambiental para as suas comunidades, aluando e
monitorando o meio ambiente em toda a área norte de Manhattan. Tem criado
diversas parcerias com grupos de cidadãos, jovens, habitantes locais e
ambientalistas, com governos federais, estaduais e locais e com instituições
médicas e educacionais, e incentivado os moradores a se tornarem uma força
ativa na determinação e implementação da visão de como o meio ambiente pode e
deveria ser.
Ademais,
desenvolve vários programas, tais como: i) Earth Crew Youth Leadership Program:
treinamento de jovens para formação de lideranças, por meio de educação
ambiental e prestação de serviços à comunidade; ii) Environmental Worker
Training Program: recrutamento e treinamento de adultos desempregados para o
desenvolvimento de habilidades básicas de construção e recuperação ambiental;
iii) Community Health Leadership Training Program: treinamento de líderes
comunitários em questões de saúde ambiental, financiado pelo Órgão Ambiental
Federal e pelo National Instituto of Environmental Health Sciences.
Segundo
cartilha por ela produzida, a maior parte da frota de ônibus movidos a diesel
em Nova Iorque circula pela comunidade do West Harlem, poluindo o ar e as Cruas
e aumentando, com isso, as ameaças de enfisema, bronquite, asma, ataques do
coração, câncer de pulmão e morte prematura. Em face disso, a We Act propõe a
conversão de toda a frota de ônibus e instalações pertinentes em veículos
movidos á gás natural a fim de se reduzir a emissão de partículas, fumaça e
gases tóxicos nocivos à saúde e proporcionar, com isso, um ambiente mais
saudável à comunidade. Mesmo assim, as autoridades de trânsito locais continuam
investindo muito mais nos ônibus comuns. Ainda nesse campo, protesta pela
concentração das garagens dos ônibus no Harlem (seis das sete existentes na
cidade de Nova Iorque), situação que, além de não garantir melhores serviços ou
empregos para os moradores, piora casualidade do ar e aumenta seus problemas de
saúde.
Além
disso, a entidade também denuncia que: Manhattan jamais se adequou •às normas
federais que tratam sobre emissões de partículas, sendo que a região norte é
cercada por três grandes rodovias, uma indústria de tratamento de esgoto; duas
estações da marinha de coleta e transferência de resíduos sólidos, rotas de
icaminhões e pela linha ferroviária a diesel da Companhia de Transporte
Ferroviário; moradores das cidades mais poluídas têm taxa de mortalidade 15%
superior à
(24) 271
West 125- Street, Suite 211, New York, NY 10027; fone (212) 961-1000; fax (212)
961-1015; e-mail .
REVISTA DE
DIREITO AMBIENTAL – 27
daqueles que vivem nas áreas mais
limpas; a emissão de partículas poluentes causa no mínimo 60.000 mortes
prematuras no país a cada ano; mais de 4.000 mortes prematuras podem ser
relacionadas, a cada ano, à emissão de partículas nocivas à saúde na área da
cidade de Nova Iorque; nessa cidade, hospitalizações por asma e taxas de
mortalidade são as maiores do país e habitantes do Harlem morrem a uma taxa 5
vezes superior a da cidade toda; estes mesmos habitantes aspiram partículas
perigosas em níveis 200% superiores aos considerados aceitáveis pelo Órgão
Federal Ambiental competente.
Estes
três grupos são exemplos de como a justiça ambiental, embora ainda em escalas
desproporcionais à sua importância, vem ganhando espaço no mundo, nas
comunidades, nas universidades e instituições ligadas à área e também na mídia.
10.
Exemplos de êxito do movimento
Um caso que
ficou notório nos EUA foi o do Município de Anacostia, nos arredores de
Washington, habitada principalmente por negros, em que grande parte da
população sofreu os efeitos dos materiais tóxicos armazenados em um depósito da
Marinha. O Movimento da Justiça Ambiental, nesse caso, fez com que o depósito
fosse removido e que, em seu lugar, o famoso “Frederic Douglas25 Gardens”
fosse erguido, como símbolo da luta da comunidade negra por melhores condições
de vida e da qualidade do meio ambiente em que vivem.
Quanto
à Política Nacional Norte-Americana, um Ato do Poder Executivo de 1994 - o
Federal Açtion to Adress Environmental Justice in Minority Populations and
Low-Income Populations, determinou que todos os órgãos federais competentes
para questões envolvendo meio ambiente e saúde pública passassem a integrar em
suas políticas a justiça ambiental, além de garantir o acesso a informações e a
participação democrática. Isso conduziu à criação do National Environmental
Justice Advisory Council (Nejac), destinado a assegurar que a Agência Federal
Ambiental também ficasse atenta às reivindicações do movimento.
O
encontro mundial realizado em Durban, na África do Sul, sobre Discriminação
Racial, em 2001, produziu documento pelo qual os Estados são convidados a tomar
medidas não discriminatórias capazes de garantir um meio ambiente seguro e
saudável para os indivíduos vítimas de racismo, discriminação racial, xenofobia
e outras formas de intolerância, especialmente para: i) melhorar o acesso a
informações referentes à saúde e ao meio ambiente; ii) que as decisões
políticas ambientais tomem em conta essas relevantes questões; iii) estimular a
difusão de tecnologias e práticas bem-sucedidas na melhoria da saúde humana e
do meio ambiente; iv) adoção das medidas mitigadoras apropriadas à limpeza,
(25) Frederic Douglas, em seu tempo,
é referência fundamental no movimento abolicionista nos EUA, tendo dedicado a
vida à causa da liberdade, depois de haver conquistado a sua própria.
2. DOUTRINA
NACIONAL
reutilização e
recuperação de áreas e, se cabível, a realocação das comunidades afetadas,
mediante prévia consulta.
No Brasil, o
recente Dec. 3.952, de 04.10.2001, dispõe sobre o Conselho Nacional de Combate
à Discriminação, integrante do Ministério da Justiça e ao qual compete propor,
acompanhar e avaliar as políticas públicas afirmativas de promoção da igualdade
e da proteção dos direitos de indivíduos e grupos sociais e étnicos afetados
por discriminação racial e outras formas de intolerância. A regulamentação
desse conselho representa, por certo, grande avanço na legislação brasileira que
trata da matéria e desperta especial interesse em nossos povos indígenas.
Depende, portanto, principalmente da atuação de movimentos sociais e
associações não governamentais, nas reuniões realizadas na forma do art. 4.°
desse decreto, que sejam alcançados os objetivos éticos e sociais que, de
início, fundamentaram sua criação.
Mais
especialmente, o Estado do Rio do Janeiro demonstrou grande avanço, nas
histórias legislativa e administrativa do País, a partir da criação em 2001 do
Centro de Referência de Justiça Ambiental (Cereja),26 órgão
colegiado vinculado à Secretaria Extraordinária de Justiça do Estado do Rio de
Janeiro,27 que baliza a sua atuação no importantíssimo movimento até
aqui estudado. Por meio de reuniões periódicas, abertas ao público e para
manifestação especialmente por intermédio das diversas entidades ambientalistas
e sociais que integram seu quadro na qualidade de membros, durante as quais são
analisadas questões relativas à justiça ambiental e buscadas soluções para
problemas diversos das comunidades envolvidas, o Cereja já demonstra os
primeiros resultados positivos de sua atuação.
11. O Aterro de Gramacho
Em nosso País, há também
graves exemplos de injustiça ambiental e de como existe trabalho para advogados
eticamente interessados em atuar na área.
Em
Duque de Caxias, Estado do Rio de Janeiro, onde a comunidade de descendentes de
africanos chega a 80% do total da população, o Aterro de Gramacho vem
suportando, desde a época do Império, o lançamento de todo o lixo produzido na
área metropolitana do Município do Rio de Janeiro (Grande Rio) e, mais
recentemente, de mais 6 Municípios vizinhos no Estado.
É hoje o maior Aterro Sanitário da
América Latina e processa diariamente mais de 7 mil toneladas de resíduos. A
esse respeito, há inclusive no Museu do
(26) Rua Presidente Pedreira n. 78, Ingá, Niterói, RJ,
CEP 24210-170; tel./fax (21) 2719-3676; e-mail
ou ; grupo de discussão
on Une .
(27) Há dúvidas, no entanto, no tocante à
constitucionalidade de tal órgão funcionando junto a Secretaria Extraordinária,
diante da Constituição estadual do Rio de Janeiro. O tema, entretanto, será
debatido em outra oportunidade.
REVISTA
DE DIREITO AMBIENTAL - 27
Lixo uma
tela chamada “O negro do lixo”, representando os negros que há tempos atrás
conduziam o lixo da população abastada até seu destino final, próximo das
comunidades negras e carentes que ali habitavam.
Conforme
se constatou em estudos realizados na área, a capacidade do Aterro de Gramacho
para continuar recebendo lixo nas absurdas proporções atuais persistirá por no
máximo mais três ou quatro anos.
Entre
as razões para seu saturamento, está o comportamento do tipo de solo existente
no local, que se constitui em área de manguezal, onde o lixo sufocou a
vegetação, fazendo secar os braços de rio mas mantendo o leito de argila
orgânica. Disso resultaram os deslizamentos internos, que impuseram a redução
da estimativa de vida do aterro, onde o lixo acumulado não poderá ultrapassar
a altura de 32 metros.
Passado esse
limite, o que será feito com a incalculável quantidade de resíduos sólidos que
são diariamente produzidos nesse Município? Para a indignação de todos, não
existe por parte do Governo, em quaisquer de seus níveis, da sociedade, do
Ministério Público, dos órgãos de fiscalização ou dos profissionais ligados à
área, a exemplo dos advogados ambientalistas, nenhuma decisão definitiva
quanto a respostas para essa pergunta, quanto à busca urgente por alternativas
para esse amontoado de lixo e substâncias tóxicas que vêm se acumulando ao
longo de muitos anos.
Segundo o Grupo
Queiroz Galvão, que desde 1996 vem operando esse aterro, já existem programas,
dentro do Projeto de Despoluição da Baía de Guanabara, de recuperação do manguezal
que margeia parte da Baía de Guanabara, por meio do replantio e monitoramento
ambiental, e de tratamento do líquido (chorume) e do gás (biogás) provenientes
da decomposição do lixo. Fica a pergunta: seria isso suficiente, em face da
gravidade da situação?
Importante
mencionar, além disso, a triste e desesperadora realidade das inúmeras famílias
que vivem desse aterro, à espera dos imensos e carregadíssimos caminhões que
até ali se dirigem; chocante, de fato, o contraste entre o movimento das garças
e dos braços dos catadores, em acirrada disputa por restos da sociedade -
paradoxalmente, a mesma sociedade que a estes oprime e os marginaliza e fechas
os olhos para essa realidade.
Estudos também
demonstraram que ainda existem alternativas economicamente viáveis, desde que
implementadas agora, com antecedência e planejamento, mediante a
realização dos competentes processos de licitação e de licenciamento ambiental,
observadas as exigências e requisitos da legislação aplicável à espécie e
analisadas com vagar e cuidado as melhores possibilidades e alternativas
locacionais e tecnológicas, sob as éticas social, ambiental, legal, tributária
e econômica, garantindo-se, com isso, o encontro da melhor solução para tão
grave problema. Caso isso fosse feito, estaria representando uma economia por
demais significativa para ser simplesmente ignorada, além de garantindo a
salubridade e o equilíbrio do meio ambiente e a segurança, a saúde e a
qualidade de vida de milhares de pessoas.
2. DOUTRINA NACIONAL
O caso
do emissário submarino em Ipanema, logo após a posse do atual Governador do
Estado do Rio de Janeiro, que culminou com o vazamento dos dutos e a gravíssima
poluição da orla marítima de Ipanema, causando notáveis prejuízos à saúde da
população e à economia da indústria hoteleira e turística e, portanto, à
arrecadação habitual dos cofres públicos mediante o pagamento de tributos, é
clássico exemplo de como medidas de urgência são muito mais custosas econômica
e socialmente, tanto para o Governo como para a comunidade prejudicada, e
dificilmente produzem com precisão os resultados pretendidos. O procedimento de
emergência utilizado nesse caso foi muito mais caro à Administração Pública e,
por conseguinte, à sociedade, do que se o problema houvesse sido verificado em
tempo e equacionada sua solução, por meio de simples e adequados programas de
manutenção.
12. Conclusões
A situação no Aterro de
Gramacho impõe sérias reflexões acerca do papel dos advogados no combate ao
racismo ambiental e na luta organizada por justiça ambiental. Os juristas,
portanto, podem e devem atuar, ao mesmo tempo, em defesa das comunidades mais
atingidas e na liderança do processo de denúncia e de busca de soluções para
esse e outros problemas de mesma natureza. Nesse sentido, imperioso o
desencadeamento sólido e urgente, por lideranças representativas das
comunidades, organizadas sob a orientação e assessoria da classe dos advogados
ambientalistas e apoiadas nas entidades que os congregam, como a Associação
Brasileira dos Advogados Ambientalistas - Abaa, de um Movimento Nacional por
Justiça Ambiental, que institucionalize o combate ao racismo ambiental,
dando-lhe feições mais concretas e tangíveis.
A pressão sobre
os Poderes Executivo e Legislativo, na medida das competências outorgadas a
cada ente da Federação, e a provocação do Ministério Público, para apuração e
julgamento de ilícitos civis, administrativos e criminais praticados contra o
meio ambiente e a comunidade, também são fundamentais e, nessa seara, a
assessoria jurídica é indispensável. Em paralelo, há que denunciar práticas
discriminatórias junto à opinião pública e aos órgãos ambientais competentes, a
exemplo do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e do Centro de
Referência de Justiça Ambiental (Cereja), mobilizando e chamando à participação
os membros da sociedade. Além disso, é preciso incentivar estudos e divulgar
informações sobre saúde e segurança, com o fim de formar comunidades
ambientalmente educadas e conscientes de seus direitos, assim como buscar apoio
institucional e econômico de outros entes dispostos a participar do processo.
A atuação dos
advogados, porém, sem dúvida terá ainda maior importância, e isso se aplica ao
caso do Aterro de Gramacho, na defesa judicial dos direitos das comunidades,
uma vez atingidas por injustiças ambientais e práticas discriminatórias, à reparação
histórica e justa por danos causados à sua saúde, Segurança e bem-estar, e
ao meio em que vivem, na forma de investimentos na
REVISTA DE DIREITO
AMBIENTAL - 27
recuperação ambiental das
áreas degradadas. Esse direito, aliás, junto com o atendimento médico adequado a
problemas de saúde decorrentes de poluição, está previsto no 9.° Princípio de
Justiça Ambiental.
De
fato, a provocação do Poder Judiciário e do Ministério Público, na apuração,
julgamento e punição de crimes e ilícitos civis ou administrativos, ambientais
e de racismo é uma das mais eficazes formas de proporcionar às parcelas
marginalizadas da população, porque conferido constitucionalmente a todas as
pessoas de modo igualitário o pleno exercício do direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, assim considerado essencial à sadia qualidade de
vida.
Bibliografia
ACSELRAD, Henri. Justiça ambiental - Novas articulações entre
meio ambiente e democracia. Série Sindicalismo e Justiça Ambiental.
Movimento Sindical e Defesa do Meio Ambiente: o debate internacional, editada
em cooperação pelo Projeto Meio Ambiente e Democracia, do Ibase - Instituto
Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, pelo Instituto de Pesquisa e
Planejamento Urbano da UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro -
IPPUR/UFRJ, com apoio da Central Única do Trabalhadores do Rio de Janeiro -
CUT/RJ, por meio de sua Comissão de Meio Ambiente. Rio de Janeiro, 2000.
Vol.III.
ADAMI SANTOS JR., Humberto. Responsabilidade das instituições
financeiras frente ao dano ambiental de projetos por elas financiados.
Dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro - UERJ como parte integrante dos requisitos para obtenção do
título de Mestre em Direito da Cidade e Urbanismo.
ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito
ambiental. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2001.
BULLARD,
Robert D. “A anatomia do racismo ambiental e o Movimento por Justiça
Ambiental”. Confronting environmental racism -
Voicesfrom the grassroots. Boston, Mass: South End
Press, 1996, extraído da Série Sindicalismo e Justiça Ambiental. Movimento
Sindical e Defesa do Meio Ambiente: o debate internacional, editada em
cooperação pelo Projeto Meio Ambiente e Democracia, do Ibase - Instituto
Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, pelo Instituto de Pesquisa e
Planejamento Urbano da UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro -
IPPUR/UFRJ, com apoio da Central Única do Trabalhadores do Rio, de Janeiro - CUT/RJ,
por meio de sua Comissão de Meio Ambiente. Rio de Janeiro, 2000. Vol. III.
MEADOWS, Donella. Beypnd the limits: confronting global collapse,
envisioning a sustainable future.
White River Junction, Vermont, EUA: Chelsea Green, 1992.
MONDARDO, Dilsa. Ética
holística aplicada ao direito. 18. ed.
Florianópolis: OAB/SC, 2001.
NALINI, José Roberto. Ética
ambiental. Campinas: Millenium, 2001.
Nenhum comentário:
Postar um comentário