terça-feira, 5 de abril de 2016

Perfil - LUIS GAMA, O rábula libertador

Perfil - O rábula libertador
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2015 . Ano 12 . Edição 85 - 20/01/2016
Responsável pela libertação de mais de 500 negros, abolicionista Luís Gama recebe Carteira da OAB post mortem e pode entrar para o Livro dos Heróis Brasileiros
Solon Dias
Enfim, 133 anos depois, o ativista político e abolicionista Luís Gonzaga Pinto da Gama é reconhecido oficialmente como um dos principais personagens da luta pela libertação dos negros no Brasil. Em novembro deste ano, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) concedeu a ele a Carteira da Ordem, post mortem.
O Congresso Nacional, por sua vez, está prestes a lhe conferir inscrição no Livro dos Heróis Brasileiros (guardado a sete chaves, mas acessível ao público, no Panteão Tancredo Neves, em Brasília). E o Estado, sem qualquer constrangimento, poderá considerá‑lo oficialmente patrono do abolicionismo.
Pouco conhecido dos brasileiros até boa parte do século XX, Luís Gama é considerado um intelectual importante no cenário político brasileiro de sua época. Escritor autodidata, ele integrou o Movimento Romântico e tem como obra máxima as Primeiras Trovas Burlescas do Getulino, que lhe conferiu notoriedade. Patrono da cadeira nº 15 da Academia Paulista de Letras, poeta e jornalista, foi um dos mais combativos abolicionistas de nossa história. Exímio orador, atuou como advogado pro bono (atividade gratuita e voluntária para o bem).
O ESCRAVO
Luís Gama nasceu em Salvador (BA), no dia 21 de junho de 1830, e faleceu em São Paulo, em 24 de agosto de 1882, aos 52 anos. Era filho da ativista negra Luísa Mahin, que agitou a capital da província baiana com sua participação nas rebeliões de cativos. Embora não haja comprovação, alguns historiadores registram o envolvimento de Luísa Mahin na famosa Revolta dos Malês, conflito que mobilizou escravos de origem africana da noite de 24 para 25 de janeiro de 1835, em Salvador. O pai era um fidalgo português branco que o vendeu como escravo aos 10 anos de idade para pagar uma dívida de jogo, mas nunca teve seu nome revelado pelo advogado.
Luís Gama aprendeu a ler aos 17 anos e logo se tornou poeta, militante republicano e abolicionista. Como advogado pro bono, tirou mais de 500 negros do cativeiro. Foi o primeiro escritor a assumir sua negritude na obra poética. Teve um mentor para se tornar advogado: o professor Furtado de Mendonça, chefe da Biblioteca da Faculdade de Direito de São Paulo, a primeira de perfil popular, que lhe facilitava o acesso, constantemente negado pela direção da instituição por ser negro.

Escravos e filhos de escravos em fazenda de café: mancha histórica de
um Brasil Império que sonhava com a República
A professora Ligia Fonseca Ferreira, da Universidade Federal de São Paulo e pesquisadora do Instituto de Estudos da própria Unifesp, conta um pouco da trajetória e da obra de Luís Gama. Ele conquistou judicialmente sua liberdade e passou a atuar na defesa dos cativos.
Aos 29 anos, aparece como escritor consagrado e torna‑se um dos maiores abolicionistas do país, ao lado de outros três nomes famosos da luta pelo fim da escravidão: José do Patrocínio, André Rebouças e José Ferreira de Menezes, este último filho de escravos, dono do mais poderoso e popular jornal diário do Rio de Janeiro, a Gazeta da Tarde, único periódico abolicionista da época, adquirido por Patrocínio em 1881.
Luís Gama foi um dos raros intelectuais negros no Brasil escravocrata do século XIX, o único a ter passado pela experiência do cativeiro. Pautou sua vida na defesa da liberdade e da República. Ativo opositor da Monarquia, morreu seis anos antes de ver este sonho realizado.
ATUAÇÃO
Estudos da professora Ligia Fonseca Ferreira, mestre em Análise Semiolinguística do Discurso pela Universidade de Paris, doutora em Estudos Portugueses e Brasileiros pela Sorbonne (com tese sobre a vida e a obra de Luís Gama) e pós‑doutoranda no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB‑USP), esclarecem as razões pelas quais o abolicionista passou praticamente despercebido na historiografia brasileira desde sua morte.
Segundo a pesquisadora, o país sempre teve uma história contada pelas classes dominantes, por pessoas que já ocupavam uma posição privilegiada na sociedade. “O Luís Gama, não vamos nos esquecer, era um negro, ex‑escravo, que acabou tendo atuação só agora trazida à tona”. Mas isso, afirma a professora, destoa do lugar de onde era narrada a nossa História.“É uma maneira de interrogar de que lugar ela é contada.”
A atuação do escritor e ativista como advogado assume ares ainda mais extraordinários quando colocado diante de um Brasil monárquico, escravista, pobre e carente de centros de estudos ou instituições acadêmicas dignas do nome. Apenas no começo do século XIX, com a vinda da Família Real Portuguesa, o Brasil passou a contar com seus dois primeiros cursos jurídicos – em São Paulo e Olinda (PE). Até então, o bacharelado em Direito dava‑se na Metrópole, sobretudo na Universidade de Coimbra, e poucos tinham condições financeiras para desempenhar as funções advocatícias.
Autodidatas como Luís Gama, tanto nas capitais quanto nas distantes comarcas do interior, tornavam‑se habilitados para a postulação da advocacia por meio do estudo das Ordenações Manuelinas e Filipinas, ainda vigentes na Colônia. Uma vez conquistada a autorização, era expedida, a pedido do pretendente, uma provisão, que tornava habilitado o rábula a representar em Juízo. O sistema foi recepcionado pela OAB, quando criada, em 1930, vigendo até as décadas de 1960-1970, quando foi extinto.
O abolicionista continua anônimo, pois até hoje não é muito comentado sequer nas biografias do Brasil,tampouco nos livros de História. Até mesmo nas obras mais recentes, não há referências a seu nome. Especialistas na atuação e na obra de Luís Gama não se espantam com o fenômeno, mas lamentam o esquecimento de figura tão importante para a História do país.
Lígia Fonseca lembra que o filho de Luísa Mahin, libertador de escravos, poeta, advogado e dono de uma linguagem peculiar em suas obras literárias, começou o movimento pelo fim da escravidão 20 anos antes da Abolição, no contexto paulista, a partir de 1868. Naquele período, ele foi seguido por advogados e pela Loja América, instituição maçônica à qual pertencia. São Paulo era uma grande província negreira, tendo ganhado destaque com o café e outras culturas, como Minas Gerais e Rio de Janeiro. “No germe do republicanismo, Luís Gama foi líder de primeira hora”, lembra a pesquisadora.
SUPERAÇÃO
Reconhecer Luís Gama como abolicionista equivale a reconhecê‑lo como alguém da geração de 1870 que pensou o Brasil no âmbito de uma reforma institucional profunda e que afetou a escravidão de mais de 350 anos e a República.
“Tanto que uma coisa estava tão associada à outra que em um ano e meio tivemos o declínio da Monarquia”, conta Lígia Fonseca. Autora de duas obras sobre o personagem histórico (Primeiras Trovas Burlescas de Luís Gama e outros poemas – Martins Fontes, 2000; e Com a palavra Luís Gama ‑ Poemas, artigos, cartas, máximas – Imprensa Oficial, 2011, reunião de artigos com comentários jurídicos), Ligia Fonseca defende mais intensidade nas pesquisas sobre a vida do ex‑escravo que não se contentou com o êxito na luta em favor de seres humanos livres na África tornados cativos no Brasil. Ela ressalta que a importância de Luís Gama vai além de uma história de superação.
IEA/USP

Ligia Fonseca Ferreira, professora e
pesquisadora do Instituto de Estudos
da Unifesp
Mesmo considerando importante e justo o reconhecimento dos valores deixados por Gama, Lígia alerta para a importância de não se “congelar os heróis”. “A gente não deve se contentar com uma biografia espetacular. Mais espetacular do que Luís Gama é sua atuação como advogado, seu ativismo, suas ideias, muito sofisticadas, que ele expõe a respeito do Direito, do estado de direito, da condição e da pessoa do escravo, a quem ele se referia como “pessoas livres ilegalmente escravizadas”.
RACISMO
Jurista e mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Humberto Adami Santos Júnior compartilha das mesmas reflexões de Lígia Fonseca. Graduado em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), em 1980, e mestre em Direito pela UERJ, em 1997, ele fala entusiasmado quando o assunto é o abolicionista. “É preciso conhecer a história de lutas de Luís Gama contra a discriminação para saber de seu verdadeiro heroísmo”. Ele acha que isso deve ser estendido a qualquer pessoa, herói ou não.
Tudo está ligado ao racismo, diz Humberto Adami. “Luís Gama teve negado acesso à faculdade apenas porque era preto. O que mudou de lá até aqui?”. Ele considera justa a homenagem com a inscrição do nome do escritor no Livro dos Heróis Brasileiros e sua titulação a Patrono do Abolicionismo, mas lembra que, mesmo tendo evoluído, naquela época, para a condição de alforriado, sua raça era uma barreira que persiste no Brasil atual.
Ainda assim, Humberto Adami lembra uma passagem curiosa envolvendo o jurista paulista Fábio Konder Comparato, quando este foi orador especial na cerimônia de entrega da Medalha Ruy Barbosa, em 2005. “Vocês pensam que essa medalha é entregue aos agraciados por serem advogados? Advogado era o Luís Gama”, disse o jurista, na ocasião.
A honraria que o Congresso Nacional oferecerá não é nova, pois o Programa Direito e Relações Raciais (PDRR) da Universidade Federal da Bahia (UFBA) cunhou a medalha Luís Gama para “homenagear pessoas e instituições que se destacam pela luta de enfrentamento ao racismo e a construção de uma sociedade sem desigualdades e violências”.
O Instituto dos Advogados do Brasil (IAB) seguiu exemplo e resolveu dar sua contribuição em homenagens concedendo a Medalha Luís Gama, apresentada na Sessão Plenária de comemoração do 166º aniversário da organização, em agosto de 2009, com um detalhe: Oscar Niemeyer foi o escolhido para fazer a arte da honraria.
Humberto Adami reconhece que essas homenagens, de certa forma, representam uma reparação. Mas é preciso, ironiza, fazer uma reparação também na escola pública do país, que até hoje não cumpre a Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, onde, ao alterar a Lei 9.394, de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, inclui no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro‑Brasileira.
PEQUENO GESTO
Humberto Adami considera essencial o exemplo de Luís Gama para eliminar a imagem fixada pela historiografia brasileira de que os negros não lutaram por sua liberdade. Essa correção, para ele, vai mudar muito a autoestima do povo brasileiro. A concessão da Carteira da Ordem dos Advogados do Brasil, diz, representa um pequeno gesto da OAB. “É preciso abrir a capa do racismo e fazer uma porção de buracos nela”.
O jurista aponta alguns dos buracos que podem ser abertos. O Brasil tem obrigação de ratificar diversas convenções da ONU e de entidades a ela ligadas, como a OEA e a Unesco, e várias declarações como a de Durban (África do Sul), de 8 de setembro de 2001, que elaborou a Declaração e Programa de Ação adotados na III Conferência Mundial de combate ao racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata.
Valter Campanato/ABr
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Humberto Adami Santos Jr., jurista
e mestre em Direito pela UERJ
Outro fosso seria, segundo ele, o envolvimento do Estado brasileiro na luta contra a discriminação, pois “nenhum governo sequer formulou um pedido de desculpas ao povo de matriz africana por conta do genocídio e do crime de lesa humanidade praticados na forma de sequestros de cidadãos livres”.
Obras que contam a história oficial sugerem, ainda que de forma precária, prejuízos econômicos que se pode inferir à população escravizada no Brasil. Mas Humberto Adami aponta para o outro lado da moeda: os ganhos extraordinários, em dinheiro, pelo Estado e pelas elites que o controlavam por conta do rapto, sequestro e escravização de homens, mulheres, jovens e crianças livres em terras africanas. Ele acredita, contudo, que uma boa maneira de iniciar um processo reparador seria a efetivação de políticas públicas e a ajuda que o Estado poderia dar à população negra, estimulando‑a a compreender e exigir seus direitos.
A SÍNTESE
Contemporâneo de Luís Gama, o escritor Raul Pompeia, autor de O Ateneu, sintetizou o que representava Luís Gama para a sociedade em que vivia. Em uma das mais célebres homenagens que alguém pode prestar a outro, Pompeia expressou sua admiração pelo advogado libertador de escravos com a erudição que lhe era peculiar:
“(...) não sei que grandeza admirava naquele advogado, a receber constantemente em casa um mundo de gente faminta de liberdade, uns escravos humildes, esfarrapados, implorando libertação, como quem pede esmola; outros mostrando as mãos inflamadas e sangrentas das pancadas que lhes dera um bárbaro senhor; outros... inúmeros. E Luís Gama os recebia a todos com a sua aspereza afável e atraente; e a todos satisfazia, praticando as mais angélicas ações, por entre uma saraivada de grossas pilhérias de velho sargento. Toda essa clientela miserável saía satisfeita, levando este uma consolação, aquele uma promessa, outro a liberdade, alguns um conselho fortificante. E Luís Gama fazia tudo: libertava, consolava, dava conselhos, demandava, sacrificava‑se, lutava, exauria‑se no próprio ardor, como uma candeia iluminando à custa da própria vida as trevas do desespero daquele povo de infelizes, sem auferir uma sobra de lucro... E, por essa filosofia, empenhava‑se de corpo e alma, fazia‑se matar pelo bom...Pobre, muito pobre, deixava para os outros tudo o que lhe vinha das mãos de algum cliente mais abastado.”

Um comentário:

Anônimo disse...

Vi que o senhor disse que na horripilante paródia da sub-celebridade Kéfera não rolou blackface. Queria entender como que não houve quando ela está parodiando uma mulher negra e transformando o trabalho sério da Rihanna em uma brincadeira de mau gosto. Kéfera já fez blackface antes, isso não é novidade.

O senhor que me desculpe, mas está passando pano pra vlogueira famosa?