sábado, 22 de março de 2008
Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na cerimônia de colação de grau da 1ª turma de formandos da Universidade da Cidadania
http://www.info.planalto.gov.br/exec/inf_discursos.cfm
Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na cerimônia de colação de grau da 1ª turma de formandos da Universidade da Cidadania Zumbi dos Palmares
São Paulo – SP, 13 de março de 2008
Só quero lembrar ao nosso companheiro, governador José Serra, que ele homenageou três meninas – uma menina de quase 60 anos que se formou – que são funcionárias do estado de São Paulo. Só quero te lembrar que agora elas vão te pedir aumento porque melhoraram e vão querer... Essa é a vantagem das pessoas estudarem. O Serra citou o nome de vocês, e vocês não esqueçam nunca.
Mas eu quero cumprimentar o governador José Serra,
Quero cumprimentar os ministros aqui presentes,
Quero cumprimentar a minha companheira Marisa,
Quero cumprimentar o governador de Roraima, que está aqui presente,
Cumprimentar os deputados federais,
Cumprimentar o nosso querido companheiro José Vicente, reitor da Unipalmares,
Cumprimentar os paraninfos Geraldo Alckmin e Benedita da Silva,
Cumprimentar o Jorge Elias Aoni, representante do Conselho Regional de Administração,
Cumprimentar todos os homenageados,
Cumprimentar as nossas queridas e queridos formandos, e de coração, agradecer por ter sido escolhido patrono desta gloriosa primeira turma de formandos da Unipalmares,
Quero cumprimentar a presidente da UNE,
Mas, sobretudo, eu quero cumprimentar os pais de vocês.
Quero dizer, meu caro José Vicente, que eu trabalhei a semana inteira em um discurso para hoje à noite. Imaginava que iria falar por volta de 8h30, 9h da noite. Nem quando eu era oposição eu fazia discurso à meia-noite e meia. Eu estou percebendo que nós chegamos numa hora em que fazer um discurso lido, de 40 minutos, é acordar com o ronco de alguns companheiros e companheiras. Eu queria pedir licença aos pais e aos formandos para contar dois casos. Dois casos que, certamente, marcam a vida de milhões de meninas e meninos deste País que, ao terminar o ensino fundamental, ao terminar o 2º grau e prestar vestibular para estudar em uma universidade, se deparam com dois graves problemas.
Primeiro, a competitividade para entrar em uma escola pública federal é sempre muito difícil. São muitos alunos e poucas vagas. Segundo, para entrar em uma universidade particular, são muitas vagas e pouco dinheiro para pagar os cursos neste País. Eu penso que nós vamos reverter isso porque, se Deus quiser, ao terminar o nosso mandato em 2010 – espero que o presidente que vier depois faça o dobro do que nós fizemos – nós vamos inaugurar, nada mais, nada menos do que 10 universidades federais novas e vamos inaugurar, no mínimo, 48 extensões universitárias por todo o território nacional, além de 214 escolas técnicas profissionais, que pretendemos entregar ao povo brasileiro até 2010. E Deus queira que quem vier depois de mim, não faça 214, faça 428 e o que vier depois, faça um pouco mais.
Eu queria homenagear vocês na figura de duas alunas desta turma, duas jovens negras, orgulhosas de sua origem, que não aceitaram o preconceito como justificativa para o confisco dos seus direitos. Sua vitória é uma resposta a todos que tentam convencer a juventude pobre de que a esperança foi privatizada, mercantilizada, e ficou cara demais para existir em suas vidas.
A primeira história é da Elaine Duarte Damião de Moura. Ela é a primeira prova de que quando a gente quer, quando a família vive em harmonia, quando o pai e a mãe desejam, as coisas acontecem. Elaine tem 23 anos, e quando conta sua história de vida ela mesma se entusiasma, ri e comemora ao mesmo tempo, com razão. Parece que foi ontem, ainda. Sua mãe, dona Marilene, dizia à filha prostrada no quarto, resolvida a desistir da faculdade: “Elaine, a gente come sopa de pedra, mas você vai para a faculdade.” Sopa de pedra, a família não chegou a experimentar, mas Elaine engoliu a angústia seca das muitas manhãs em que viu o irmão menor chorando de fome logo cedo. “Pão”, ele pedia pão, diz ela, com a voz embargada. Nem pensar. Não havia pão no café da manhã na casa do vigia desempregado, Valdemar, e de dona Marilene.
Valdemar catava papelão na rua, mas nas ruas da periferia de Cotia, na grande São Paulo, onde moram, não havia papelão suficiente para o pão e a mensalidade da faculdade da filha. A mãe voltava a dizer: “A gente come sopa de pedra”. Os amigos e alguns primos de Elaine, que enveredaram por outros caminhos, garantiam que tudo aquilo era uma grande bobagem. Elaine ouvia os pessimistas, calada. Diziam eles: “Isso não vai dar em nada. Você acaba o estudo, e daí? Vai ficar na mesma, como nós”. Então, a roda começou a girar na vida de Elaine, num ritmo que ela tenta reproduzir, embaralhando palavras e sensações.
No segundo ano da faculdade, o banco Itaú abriu um concurso para estagiários, uma dúzia de vagas, 176 inscritos. Elaine se inscreveu. No dia 5 de abril de 2005 veio o resultado, e ela gritava: “Passei, passei”, conta, comemorando e vivenciando o tempo tão curto e de tantas mudanças. No dia 11 de janeiro deste ano, a antiga estagiária foi contratada, com carteira assinada pelo Banco. Nesse meio tempo, casou-se. Na faculdade aprendeu algo que já sabia, mas da qual não tinha consciência. As duas coisas não se confundem, como ela mesma explica. Diz ela: “Eu sabia que era negra, claro, mas não sabia o significado de ser negro. Na faculdade convivi com pessoas que tinham uma percepção maior da história e, ainda por cima, tive aula sobre a identidade afro. Isso muda tudo, porque se transforma em consciência e auto-estima. “O orgulho se ser negra eu conquistei na faculdade”, diz ela sorridente. Elaine não tem dúvida de que este é o caminho para evitar que tantos jovens sejam capturados pelo mundo das drogas e do crime, como ainda acontece na periferia onde mora. “Exemplos práticos como o meu são recentes, diz ela, mas aos poucos vou virar uma referência e o caminho vai ficar claro. Escola, oportunidade e consciência”. Elaine fala emprestando à voz a mesma firmeza da mãe, que dizia: “a gente come sopa de pedra, mas a gente vai”. Meus parabéns, querida Elaine. Parabéns.
A outra história é da nossa Andressa Amaral Santos. O pai de Andressa, senhor Nelson, é funileiro quando tem trabalho. Dona Solange, a mãe, é diarista e faz faxina no bloco da Cohab em Carapicuíba, onde a família tem cinco filhos, e onde os cinco filhos sempre moraram. Aos sete anos, Andressa já vendia frutas na vizinhança para ajudar na casa. A primeira boneca, ganhou quando já tinha mais de 15 anos de idade. Mas a história mais bonita é a dela mesmo. Andressa foi atendente em casa de pão de queijo e morou na favela do Jaguaré, morou com a tia para ficar mais perto da escola e economizar o dinheiro da passagem. Ela ri da infância atribulada em uma casa onde havia um par de tênis, único, que ia duas vezes por dia à escola. De manhã, nos pés da caçula, que voltava correndo para entregar o sapato para Andressa ir à tarde. Matriculada, por necessidade, no período da tarde. Difícil é recordar as noites frias de Carapicuíba, quando dona Solange a recebia na volta da faculdade, apenas com um copo de água na mão e lágrimas nos olhos. Era tudo o que tinha na casa. Mas no dia seguinte, senhor Nelson e a esposa reuniam os filhos à mesa vazia para reafirmar a decisão da noite anterior. Diziam os pais: “você continua Andressa. A gente passa fome, mas no dinheiro da condução e o da mensalidade ninguém mexe”. Andressa tem orgulho de lembrar dos pais, senhor Nelson e dona Solange, lutando sozinhos para criar a família em um pequeno apartamento na periferia de São Paulo. Só Deus sabe a dor que passaram na travessia de tantas noites de incerteza. Mas, de manhã, eles nunca fraquejavam porque, no fundo, tinham uma esperança de que a solução para a família e para o Brasil é a escola.
A formatura de hoje é o fecho de ouro que dá razão à persistência do senhor Nelson e da dona Solange, porque Andressa é uma vitoriosa. A filha, agora, é funcionária contratada do Bradesco. Tornou-se uma mulher altiva e independente, que nunca aceitou ser chamada de moreninha nos ambientes de trabalho. “Moreninha, não”, diz ela. “Sou negra, com orgulho”, avisa aos distraídos. Foi assim que ganhou o apelido carinhoso de “pérola negra”. No Natal de 2007, Andressa resolveu dar um presente a si mesma e a toda a família. Não o primeiro, mas um para redimir a ausência de tantos outros no passado. Ela comprou um carro zero, mas logo foi avisando, com a chave na mão: “o próximo passo é fazer pós-graduação no exterior”.
Eu estou falando isso, Andressa, e é bom que o ministro da Educação me escute, que os companheiros da Capes escutem, porque a chance de fazer um curso no exterior não é tão difícil quando a pessoa tem a vontade que você tem.
Senhor Nelson e dona Solange agora são outras pessoas. Mantêm a fé e estão cheios de confiança. Na verdade, passaram a sonhar tanto quanto a filha e até voltaram a estudar, animados com o acerto de sua própria receita para o futuro dos filhos e do Brasil.
Meus amigos e minhas amigas,
Eu fiz questão de ler essas duas cartas citando duas meninas, a Elaine e a Andressa, sabendo que possivelmente seja a vida de outras meninas e de outros meninos. Eu espero que a imprensa que cobriu este evento consiga retratar nos jornais e nos documentários a beleza e a cara destes jovens, destas meninas e destes meninos, que receberam o seu canudo. Muitas vezes, o povo não consegue nem conquistar a auto-estima, porque algumas pessoas não querem deixar. Quando mostram o negro na televisão, normalmente, é sendo preso pela polícia. Agora, eu espero que mostrem a cara destes jovens se formando, que contem a história dos pais para formar estas crianças, que a gente vai poder passar a idéia para a sociedade de que o mundo não é apenas o mundo da criminalidade, que aparece na televisão. Existem outras coisas importantes que o negro faz, que o pobre faz neste País e que muitas vezes não têm o espaço necessário. Se mostrarem o sucesso de vocês, nós vamos mexer com a auto-estima de outras crianças, na idade de vocês, que não tiveram possivelmente o carinho que vocês tiveram dentro de casa. O que aconteceu com vocês só pode acontecer se a família estiver unida, se tiver uma mãe ou um pai que mantenha a rédeas da casa. Se a família estiver desagregada é humanamente impossível, é quase um ato de heroísmo um jovem vencer na vida se a família não estiver unida, porque todos nós, bem ou mal, somos a cara do que os nossos pais são, não apenas no físico, mas no comportamento.
É por isso que eu digo sempre, governador José Serra, que no Brasil, durante muito tempo nós discutimos os problemas econômicos e a gente não pensava e não imaginava que a desagregação da estrutura da família era tão grave quanto a questão econômica neste País. Eu digo isso porque fui criado, com oito irmãos, por uma mãe analfabeta. E todos conseguiram se transformar em cidadãos porque tinham na mãe o espelho, porque tinham na mãe o respeito.
Eu penso que o que vocês estão fazendo aqui, na Unipalmares, é um exemplo extraordinário. Nós não queremos dividir universidade de negro e universidade de branco, nós não queremos cota, 30 para um, 40 para outro. O que nós precisamos é construir um País em que todos, sem distinção de cor e sem distinção de origem social, tenham a mesma oportunidade de sentar nos bancos das universidades deste País. Quando isso acontecer, não haverá disputa de cotas.
Eu era chamado de radical, meu caro Paulo Renato, na década de 80, porque eu dizia que o Brasil seria o Brasil dos nossos sonhos no dia em que a empregada da faxineira estivesse sentada, no mesmo banco da escola, ao lado do filho da sua patroa. Aí, sim, nós estaremos criando uma nação justa, uma nação solidária, em que as pessoas não sejam discriminadas nem pelo berço e nem tampouco pelo sobrenome, e muitos menos pela cor ou pelo credo religioso. O que vocês estão fazendo aqui na Unipalmares é um exemplo extraordinário, meu caro ministro Fernando Haddad, da Educação, meu caro governador José Serra, meu caro prefeito Kassab, que nós precisamos refletir: onde é que a gente entra, sem atrapalhar o que eles já fizeram, para ajudá-los a fazer muito mais.
Só o fato de saber que uma grande parte de vocês está trabalhando nos bancos, a gente tem que acreditar que o Brasil começa a mudar, porque a gente não via um negro num banco há muito tempo, a não ser que fosse para depositar dinheiro para o seu patrão. A gente não via um negro dentista, a gente não via um negro médico, poucos negros advogados. Eu me lembro do esforço que eu fiz para encontrar um negro para levar para a Suprema Corte deste País.
Essa é uma coisa que vai ter que mudar, e vocês viram aqui, pelo pronunciamento do Governador, do Prefeito, dos ministros. Eu acho que vocês, no fundo, no fundo, com esta formatura, estão nos dando uma lição de vida e muito mais do que isso, estão dando uma lição de vida aos outros que ainda não chegaram ao nível que vocês chegaram, de que não vale a pena desistir nunca e vale a pena acreditar.
Aos pais da Elaine e da Andressa que, certamente, são os pais dos outros, eu queria dizer para vocês que nós temos milhões de pais e mães como vocês, que colocaram os filhos no mundo e que darão a vida para que os filhos de vocês tenham o que vocês não tiveram. Eles alcançaram, eles têm o diploma, têm uma profissão, têm um emprego. Agora, não percam a bondade da alma, ajudem os irmãos de vocês a conseguir o que vocês conquistaram, e ajudem os pais de vocês a sentirem cada dia mais a alegria de ter vencido na vida.
Não existe espaço para desistir, na vida. Eu digo sempre o seguinte: se desistir valesse a pena, eu não seria presidente da República. Eu perdi três eleições consecutivas, teimei e cheguei à Presidência da República. Portanto, neste País, se a gente persistir, a gente vence. Eu queria terminar dizendo a todos vocês, formandos, que valeu a pena viver até o dia de hoje para assistir este acontecimento. Eu acho que não tem, na história da América Latina, com exceção de Cuba, não tem no Brasil um momento histórico em que a gente tenha tantas pérolas negras e tantos diamantes negros formados numa mesma noite.
Que Deus os abençoe por toda vida, e que Deus abençoe os seus pais.
($211A)
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