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06.11.2010 | 16h21
Monteiro Lobato merece ser censurado?
A absurda tentativa de banir um livro infantil de Monteiro Lobato das escolas sob a acusação de racismo
             Época
  Época          
                                        Como qualquer fábula, as de  Monteiro Lobato (1882-1948) apresentam seres encantados, bichos falantes  e situações inverossímeis. Foram escritas para despertar na criança o  gosto pela leitura e fecundar a imaginação. Desde a década de 1920, as  histórias do criador do Sítio do Picapau Amarelo têm sido adotadas nas  escolas públicas de todo o país. Agora, o Conselho Nacional de Educação  acolheu uma acusação de racismo contra uma dessas fábulas e pode bani-la  das salas de aula por, de acordo com essa acusação, não “se coadunar  com as políticas públicas para uma educação antirracista”. Ficar sem  Monteiro Lobato é evidentemente ruim para as crianças – mas proibi-lo é  pior ainda para o Brasil.
Quem levantou a questão foi Antonio Gomes da Costa Neto, servidor da  Secretaria de Educação do Distrito Federal e mestrando na Universidade  de Brasília (UnB) na área de relações internacionais. Ele fez uma  denúncia à Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial  afirmando que o livro Caçadas de Pedrinho tem passagens que incitam o  preconceito contra os negros. O caso foi encaminhado ao Conselho  Nacional de Educação (CNE), do Ministério da Educação. Uma das passagens  citadas por Costa Neto é a descrição da cena em que Tia Nastácia,  personagem negra, sobe numa árvore “que nem uma macaca de carvão”.  Outra, quando a boneca Emília, ao advertir sobre a gravidade de uma  guerra das onças contra os moradores do Sítio do Picapau Amarelo, diz:  “Não vai escapar ninguém – nem Tia Nastácia, que tem carne preta” (leia  os trechos abaixo).
Para o ministro da Secretaria de Igualdade Racial, Eloi Ferreira de  Araújo, o conteúdo de Lobato deve ser considerado “racista” e  “perverso”. Ainda que não leve uma criança a desenvolver comportamentos  racistas, diz Araújo, ele fere a autoestima dos negros. “Para nós, que  temos orgulho em ter a pele negra e o cabelo crespo, é duro ler que uma  negra subiu (numa árvore) que nem uma macaca”, diz. Mesmo assim, Araújo  afirma ser contra o veto à obra de Lobato. “Podemos negar 380 anos de  escravidão? Não. Por isso, o debate é saudável”, diz. “Ao mesmo tempo  que as crianças conhecem a obra, percebem que a sociedade caminha em  passos expressivos, combatendo o racismo e a discriminação.”
A impossibilidade de negar a história é um dos motivos que fazem a  professora Nelly Novaes Coelho considerar a ideia do veto à obra de  Lobato uma “tolice”. Estudiosa de autores dedicados ao público  infantojuvenil, ela diz que literatura tem como uma de suas funções  explorar a realidade. “A história brasileira tem a escravidão por base.  Isso levou a um preconceito muito fundo e não se pode passar a borracha  nisso nem colocar dentro de um armário e fechá-lo.”
O Ministério da Educação anunciou que vai pedir ao CNE que reveja o  parecer. Reduzir a obra de Monteiro Lobato ao que ela possa conter de  racista – e, por isso, proibi-la – é incorrer em vários erros. O  primeiro (e mais evidente) é supor que os jovens leitores são  desprovidos de qualquer senso crítico e levarão ao pé da letra o que foi  escrito, como se o efeito das palavras sobre seu caráter fosse  definitivo. “Estão subestimando as crianças”, diz o psicanalista Mario  Corso, autor de Fadas no divã. “Se ela se tornar mesmo racista, não será  por causa da literatura, mas por causa dos pais ou do ambiente.”
Um segundo erro é rotular uma obra de arte e deixar escapar a complexa  relação de seu autor com as ideias de seu tempo. Alguns dos maiores  escritores do século XX, como o poeta americano Ezra Pound ou o  romancista francês Louis-Ferdinand Céline, foram simpatizantes das  ideias mais abjetas a respeito da superioridade racial europeia. Nem por  isso suas obras deixam de ter um valor literário inestimável, seja ao  inovar na forma, seja ao perscrutar a mente do homem moderno.
Ao contrário do preconceito flagrante em Céline ou Pound, o racismo de  Lobato é bastante discutível. Em várias ocasiões, ele valorizou a  preciosa contribuição dos negros à cultura brasileira. O conto Negrinha é  uma denúncia contra a elite que, nos anos 1920, ainda estava saudosa da  escravidão. Sua obra mais polêmica, O presidente negro, um romance  normalmente descrito como “eugenista” por descrever um mundo em que uma  raça supera a outra, também oferece leituras alternativas. “Ele pode ser  lido como uma grande metáfora das consequências da desculturação de um  grupo étnico”, escreveu Marisa Lajolo, professora do Departamento de  Teoria Literária da Unicamp. “Narra o desenlace do conflito racial nos  Estados Unidos, que acaba tendo uma solução tão final quanto o foi a  solução nazista para a questão judaica: a aniquilação dos negros, por  meio de sua esterilização em massa.” Como revela a análise de Lajolo, as  obras de arte não existem isoladamente. Cabe aos leitores  interpretá-las de modo crítico e atribuir-lhes sentido.
Por isso, o maior erro da campanha contra o livro de Lobato é importar  para a realidade brasileira a visão tosca e simplista dos defensores do  “politicamente correto” nos Estados Unidos. Lá, o alvo predileto tem  sido Mark Twain, pseudônimo de Samuel Langhorne Clemens, autor de  obras-primas como Tom Sawyer e As aventuras de Huckleberry Finn. Este  último é um retrato vívido – e nem sempre lisonjeiro – da cultura do sul  dos Estados Unidos pré-Guerra Civil. Huck Finn, como é conhecido, foi  escrito no começo dos anos 1880 e publicado em 1884. Narra as peripécias  do garoto Huck, viajando pelo Rio Mississippi e pelos Estados do sul. A  obra deu nova voz à literatura americana: o narrador personifica o  espírito criativo, aventureiro, independente e humanista, mesmo diante  da crueldade da escravidão. Pela primeira vez, o autor usou linguagem  coloquial na literatura americana, com gírias e palavras específicas das  comunidades ao longo do Mississippi.
Essa obra-prima alimenta uma controvérsia há duas décadas. Um grupo de  acadêmicos e pedagogos acusa o livro de racismo. Para eles, o herói,  Huck, humilha com frequência o escravo Jim, um personagem caricato, a  quem Huck se refere usando a palavra “nigger” (um termo em inglês  considerado uma forma racista e criminosa de se referir aos negros,  intolerável para os ouvidos de qualquer americano contemporâneo). “Twain  foi incapaz de pairar acima dos estereótipos de negros que os leitores  brancos de sua era esperavam e apreciavam”, diz Stephen Railton,  professor de literatura da Universidade de Virgínia. “Ele recorreu à  comédia e ao chiste para fornecer humor à custa de Jim, o que confirmou,  em vez de desafiar, o racismo típico do final do século XIX.”
Outros estudiosos da obra de Twain pensam o contrário: o livro oferece  um olhar arrasador sobre as atitudes arraigadas da sociedade americana,  particularmente sobre o racismo. É uma crítica às convenções sociais e à  escravidão sob o manto de singelo livro infantil. “Huck Finn é um  ataque contra o racismo justamente por humanizar o personagem de Jim, um  escravo, e com isso expor as falácias dos racistas e da escravidão”,  diz Shelley Fisher Fishkin, professora da Universidade Stanford e da  Universidade do Texas. “O termo nigger nem sequer era usado de forma  pejorativa na Inglaterra vitoriana e tampouco nos Estados Unidos até os  anos 1940.” Os jovens estudantes, porém, ficaram fora do debate. Segundo  a Associação de Bibliotecas Americanas, entre 1990 e 1999, Huck Finn  foi o clássico que mais escolas pediram para retirar da bibliografia  básica.
No Brasil, Lobato é atacado desde a década de 1940, quando seus livros  eram classificados como propaganda comunista. “Diziam que, com o sítio,  ele queria criar o Estado Stalinista”, diz Ilan Brenman, pesquisador da  obra de Monteiro Lobato. Segundo ele, Lobato foi acusado até de deformar  o caráter das crianças. Condenado a seis meses de prisão durante a  ditadura de Getúlio Vargas, Lobato foi perseguido pelo então procurador  da Província de São Paulo, Clóvis Cruel de Morais, que pediu ao Estado  que apreendesse todos os exemplares da obra Peter Pan. “Alegou-se que a  texto incutia um sentimento de inferioridade nas crianças brasileiras  porque falava bem da Inglaterra”, diz Brenman. Emília era vista como uma  ameaça à família brasileira, por subverter a hierarquia numa sociedade  patriarcal, em que um menor jamais podia contestar os adultos. A  desaforada Emília era a imagem da rebeldia. “Se não tomarmos cuidado,  Emília corre o risco de se tornar uma Barbie bem-comportada, de  aparência impecável, ou, simplesmente, de ser calada para sempre”, diz  Brenman.
No parecer apresentado ao Conselho Nacional da Educação, pela Secretaria  da Educação do Distrito Federal, como justificativa para o veto a  Caçadas de Pedrinho, a professora Nilma Lino Gomes, da Faculdade de  Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), afirma que a  obra faz “menção revestida de estereotipia ao negro e ao universo  africano, que se repete em vários trechos”. Nilma diz que não teve como  objetivo vetar a obra de Monteiro Lobato. “Reconhecemos a importância de  um clássico e da obra em questão. Não queremos impor nenhum tipo de  patrulha, mas precisamos ser coerentes com os avanços da nossa  legislação no tocante às relações raciais e à educação”, afirma.
Para Marcia Camargos, coautora da biografia ilustrada Monteiro Lobato –  Furacão na Botocúndia, o livro Caçadas de Pedrinho serve justamente como  oportunidade para as crianças terem acesso a esse debate. “Entender  aquele contexto social é uma forma de evitar erros no presente e no  futuro”, diz ela. “Monteiro Lobato acreditava que a criança é um ser  autônomo, com capacidade de discernir, e procurava estimular o senso  crítico.”
De acordo com Mauro Palermo, diretor da Globo Livros, a editora que  publica a obra de Lobato, ele sempre instigou a reflexão em seus textos.  “Isso vale tanto para sua obra infantil quanto para a adulta”, diz  Palermo. “Em vez de proibir qualquer uma de suas obras, parece-me melhor  estimular uma leitura crítica por parte das crianças, aproveitando a  oportunidade para mostrar como nascem e se constroem preconceitos. Se  queremos contribuir para a formação de cidadãos críticos, não devemos  fugir de questões polêmicas. Devemos enfrentá-las.” Num de seus  aforismos mais citados, Lobato afirma que “um país se faz com homens e  livros”. Durante toda a vida, escreveu livros para formar homens.  Certamente, não se reconheceria em um país que pretende formar seus  futuros cidadãos vetando o acesso a livros.
                                                
      Edson Luis   em 07.11.2010
  Edson Luis   em 07.11.2010                 É assim !
Devemos sim, mostra como nascem e se constroem preconceitos.
Precisamos  ser coerentes com os avanços  da nossa legislatura em relações raciais e à educação.        
          Halina   em 06.11.2010
  Halina   em 06.11.2010                 Ainda afirmam que estamos em uma "Democracia". Que não há  censura na imprensa, etc. Mais um pouco e vão queimar livros em praça  pública e condenar à fogueira os que têm uma visão diferente da imposta,   os que têm  opinião própria. Se não  pensam como querem os demais são  "politicamente incorretos".        
          Lopes   em 06.11.2010
  Lopes   em 06.11.2010                 Parabéns à Gazetaweb pela reportagem.
Comungo da opinião do diretor da Globo livros, Mauro Palermo. O livro  não deve ser banido, mas aproveitado para que as crianças desenvolvam o  senso crítico, ao analizar a época em q foi escrito e as mudanças  ocorridas até hoje.         
          Milena Ferreira   em 06.11.2010
  Milena Ferreira   em 06.11.2010                 Sem comentários! Tantas outras coisas para serem questionadas e  discutidas e me saem com essa! Essa meninada precisa é ser estimulada a  ler. Coloquem os livros nas mãos delas e não o contrário. E vão buscar  soluções para a precaria educação pública brasileira.        
          
 



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