"aos  ricos, o favor da lei, aos pobres, o rigor da lei"
 JOSÉ RAINHA JÚNIOR – Líder do MST
 O Brasil tem um dos maiores índices de desigualdade social do mundo. Enquanto uma minoria concentra boa parte da renda e das  riquezas do país, uma maioria fica a míngua, marginalizada, sem emprego, sem  dignidade, sem perspectivas para o futuro, para essa maioria a palavra "esperança" é apenas mais um dos sonhos que os políticos tentam oferecer na época  das eleições.
 Boa parte desses representantes do povo, eleitos democraticamente para oferecer soluções no sentido proporcionar  garantias mínimas de uma existência digna aos cidadãos, não fazem a sua parte,  pois, na maioria das vezes entorpecidos pelos encantos do poder esquecem do  povo que os elegeu e passam a atuar unicamente no sentido de se manterem no  poder.
 No que concerne a se manter no poder, a experiência tem demonstrado que uma das formas mais eficazes de continuar no poder é  cultivar o povo na miséria, perpetuando um ciclo de clientelismo que torna os  excluídos pela sociedade cada vez mais dependentes dos governantes. Essa forma de  exercer o poder político nos faz recordar aquela canção do Caetano Veloso que  dizia: "enquanto os homens exercem seus podres poderes morrer e matar de  fome, e de raiva e de sede são tantas vezes gestos naturais".
 Nesse contexto, em razão da precária situação econômica de uma considerável parcela da população brasileira, alguns  comportamentos tidos como criminosos ou contravencionais devem ser excluídos do  ordenamento jurídico em razão do seu conteúdo retrógrado e injusto. As contravenções penais de vadiagem e mendicância  são dois desses comportamentos.
 Esses dois tipos penais não são recentes tendo em vista  que eram previstos no Código Criminal do Império de 1930.
 O artigo 295 do Código Criminal do Império descrevia o crime de vadiagem como aquele cometido nas  hipóteses em que "não tomar qualquer pessoa uma ocupação honesta e útil de que possa subsistir,  depois de advertida pelo juiz de paz, não tendo renda suficiente".
 O artigo 296 previa que praticava mendicância aquele que andasse mendigando:
 "1- Nos lugares em que existem estabelecimentos públicos para os mendigos,  ou havendo pessoa que se ofereça a sustentá-los.
 2- Quando os que  mendigarem estiverem em termos de trabalhar, ainda que nos lugares não haja os  ditos estabelecimentos.
 3- Quando fingirem  chagas ou outras enfermidades.
 4- Quando mesmo  inválidos mendigarem em reunião de quatro ou mais, não sendo pai e filhos, e não  se incluindo também no número dos quatro as mulheres que acompanharem seus maridos e os moços que guiarem os cegos."
 Atualmente as contravenções em discussão são inafiançáveis (art. 323, II do Código de Processo Penal) e estão  previstas nos artigos 59 e 60 da Lei das Contravenções Penais, conforme reprodução abaixo:
  Vadiagem
  "Art. 59 - Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de  subsistência, ou prover a própria subsistência mediante ocupação ilícita:
 Pena - prisão  simples, de 15 (quinze) dias a 3 (três) meses.
 Parágrafo único - A aquisição superveniente de renda, que assegure ao condenado meios  bastantes de subsistência, extingue a pena."
  Mendicância
  "Art. 60 - Mendigar, por ociosidade ou cupidez:
 Pena - prisão  simples, de 15 (quinze) dias a 3 (três) meses.
 Parágrafo único - Aumenta-se a pena de um sexto a um terço, se a contravenção é praticada:
 a) de modo vexatório, ameaçador ou fraudulento;
 b) mediante simulação  de moléstia ou deformidade;
 c) em companhia de  alienado ou de menor de 18 (dezoito) anos."
 Ao realizar pesquisas sobre decisões dos Tribunais a respeito do tema foi encontrada uma interessante decisão do Tribunal de  Alçada Criminal do Estado de São Paulo que declara a inadmissibilidade da  condenação do réu tendo em vista a ausência de prova da ociosidade habitual e do desemprego crescente que assola o País. Isso demonstra como na prática é difícil provar que o sujeito é habitualmente ocioso e a dificuldade de  se conseguir um emprego no Brasil.
  VADIAGEM - Agente flagrado jogando  "tampinhas" - Impossibilidade de conseguir ocupação devido ao crescente desemprego no  País - Caracterização - Impossibilidade:
  96 - Inadmissível a condenação de réu que, após comprometer-se a buscar ocupação lícita, é flagrado jogando "tampinhas", pois além da ausência de prova da ociosidade habitual, e de reconhecer-se que com o desemprego crescente  no País, revela-se problemático exigir-se de alguém que busque o trabalho.
  (Apelação nº 713.887/8, Julgado em 01/09/1.992, 4ª Câmara, Relator: - Walter Theodósio,  RJDTACRIM 15/185)
  É interessante também reproduzir o conceito de vadiagem inserido em uma sentença do juiz Moacir Danilo Rodrigues da 5a  Vara Criminal de Porto Alegre que, apesar de ter sido pronunciada em 27 de  setembro de 1979, é tão recente quanto qualquer outra, tendo em vista que  descreve quem são os únicos atingidos por esta injusta contravenção penal.
 Conforme o juiz, a vadiagem é "uma  norma legal draconiana, injusta e parcial" destinada "apenas ao pobre, ao miserável, ao farrapo humano, curtido vencido pela vida. O pau-de-arara  do Nordeste, o bóia-fria do Sul. O filho do pobre que pobre é, sujeito está  à penalização. O filho do rico, que rico é, não precisa trabalhar, porque  tem renda paterna para lhe assegurar os meios de subsistência. Depois se diz  que a lei é igual para todos! Máxima sonora na boca de um orador, frase  mística para apaixonados e sonhadores acadêmicos de Direito. Realidade dura e  crua para quem enfrenta, diariamente, filas e mais filas na busca de um emprego. Constatação cruel para quem, diplomado, incursiona pelos caminhos da  justiça e sente que os pratos da balança não têm o mesmo peso."
 O juiz afirma ainda que "na escala de valores utilizada para valorar as pessoas, quem toma um trago de cana, num  bolicho da Volunta, às 22 horas e não tem documento, nem um cartão de crédito, é vadio. Quem se encharca de uísque escocês numa boate da Zona Sul e ao  sair, na madrugada, dirige (?) um belo carro, com a carteira recheada de "cheques especiais", é um burguês. Este, se é pego ao cometer uma infração de trânsito, constatada a embriaguez, paga a fiança e se livra solto.  Aquele, se não tem emprego é preso por vadiagem. Não tem  fiança (e mesmo que houvesse, não teria dinheiro para pagá-la) e fica preso."
 No sentido de revogar essas absurdas normas previstas nos artigos 59 e 60 da Lei das Contravenções Penais encontramos o projeto de  lei nº 5.799/01 de autoria do deputado federal Marcos Rolim.
 O deputado justifica o projeto de lei afirmando que "parece evidente  que a simples pretensão de punir aqueles que a sociedade já condenou à exclusão social, à fome e ao desespero revela uma crueldade talvez insuperável em nosso ordenamento jurídico", de forma que os artigos 59 e 60 expressam "a insensibilidade social das elites dominantes". Segundo  o deputado o Brasil "possui milhões de seres humanos vivendo à margem da própria idéia de direito" e conforme "critérios mais conservadores, são pelo menos, 32 milhões os brasileiros que habitam  esse mundo de esquecimento, violência e desespero. Cada um deles, a rigor,  pode ser enquadrado nas condutas que a maldade legislativa do século passado  tipificou nesses dois artigos".
 Pelo exposto podemos concluir que a revogação dos artigos em discussão é absolutamente necessária. Um país que tem como valor fundamental a dignidade da pessoa humana (art. 1o, III da Constituição Federal) e que tem milhões de cidadãos sofrendo os efeitos marginalizantes do desemprego não pode punir uma pessoa por vadiagem tendo em vista a impossibilidade de se saber se o sujeito se entrega  habitualmente a ociosidade porque não tem interesse em trabalhar ou se é mais uma das  vítimas do desemprego proporcionado por este sistema capitalista selvagem em que vivemos. No mesmo sentido não é justo punir alguém por mendigar, pois os altos índices de desemprego impelem muitas pessoas a mendicância e  também porque caso o sujeito esteja realizando esse ato no estado de  necessidade não há contravenção em razão da existência de uma causa de exclusão de ilicitude (art. 24 do Código Penal).
                  
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