O Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil, disponível na internet em http://www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br, é resultado de um projeto desenvolvido em conjunto pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e pela Fase - Solidariedade e Educação, com o apoio do Departamento de Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador do Ministério da Saúde. Seu objetivo maior é, a partir de um mapeamento inicial, apoiar a luta de inúmeras populações e grupos atingidos em seus territórios por projetos e políticas baseadas numa visão de desenvolvimento insustentável e prejudicial à saúde.
A contaminação de ambientes rurais e residenciais e a intoxicação de trabalhadores e populações por agrotóxicos, assim como as disputas por terras, o desemprego e a insegurança alimentar provocados pela expansão do agronegócio constituem graves exemplos de injustiça ambiental e, como não deixaria de ser, figuram em diversos casos deste mapeamento. Para todos estes casos, o Mapa da Injustiça Ambiental constitui uma importante ferramenta de denúncia e de articulação em busca de soluções.
Em entrevista exclusiva para a AS-PTA, o pesquisador da Fiocruz Marcelo Firpo, coordenador geral do projeto, fala sobre a origem, a evolução e as perspectivas deste trabalho. Confira:
AS-PTA – O que é Injustiça Ambiental?
Marcelo Firpo: O tema da justiça ambiental surge inicialmente nos EUA, sua origem está relacionada à luta contra a discriminação racial e étnica presente nos movimentos pelos direitos civis da sociedade norte-americana nos anos 70 e 80. Inicialmente foi cunhada a expressão racismo ambiental em função da presença de populações negras que viviam em regiões altamente poluídas por indústrias químicas ou próximas a depósitos de lixo. Algum tempo depois o movimento passou também a usar o conceito mais amplo de justiça ambiental, articulando-se com a defesa pelos direitos humanos universais e incorporando outras questões além da discriminação racial e étnica, como classe social – exploração dos trabalhadores – e gênero – subjugação das mulheres. Portanto, a justiça ambiental deve ser vista menos do ponto de vista da judicialização dos conflitos e relações sociais, e mais do ponto de vista ético, político, da democracia e dos direitos humanos. A idéia de justiça ambiental sempre implica em ações solidárias e de resistência envolvendo centralmente populações atingidas nos seus territórios por impactos sociais, ambientais e de saúde, com alianças estratégicas sendo feitas solidariamente com parceiros diversos, como ONGs, pesquisadores, técnicos, promotores públicos, movimentos sociais, dentre outros.
Na América Latina, somente nos anos 90 é que, aos poucos, a relação entre meio ambiente, saúde, direitos humanos e justiça passou a fazer parte da agenda de alguns países com a adoção do conceito de justiça ambiental. Na AL, via de regra, as situações de injustiça ambiental emergem mais intensamente em função, além da elevada desigualdade social e discriminação étnica, de sua inserção histórica na economia internacional a partir da exploração intensiva e simultânea de recursos naturais e da força de trabalho.
No Brasil, a criação da Rede Brasileira de Justiça Ambiental em 2001 (www.justicaambiental.org.br) se deu com o lançamento da declaração de princípios, na qual o conceito de injustiça ambiental foi definido como “o mecanismo pelo qual sociedades desiguais, do ponto de vista econômico e social, destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento às populações de baixa renda, aos grupos sociais discriminados, aos povos étnicos tradicionais, aos bairros operários, às populações marginalizadas e vulneráveis”. Já o conceito de justiça ambiental é entendido por um conjunto de princípios e práticas que asseguram que nenhum grupo social, seja ele étnico, racial, de classe ou gênero, “suporte uma parcela desproporcional das conseqüências ambientais negativas de operações econômicas, decisões de políticas e de programas federais, estaduais, locais, assim como da ausência ou omissão de tais políticas”.
AS-PTA – O que é o Mapa da Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil e o que motivou a sua criação?
M.F.: O Mapa é um sonho antigo e resulta de um projeto desenvolvido em conjunto pela Fiocruz e pela Fase, ONG que sedia a secretaria da Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA). Já havia uma demanda dos movimentos sociais e entidades que formam a RBJA de se fazer um mapeamento como este nos Encontros da Rede. Também vários projetos anteriores já caminhavam nesta direção, como os trabalhos produzidos pelo Ippur/UFRJ, pelo Gesta/UFMG, pelo GT contra o Racismo Ambiental da RBJA, assim como a organização de um banco temático pela Fiocruz e a Fase, dentre outros. Finalmente em 2008 iniciamos o projeto a partir do apoio do Departamento de Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador do Ministério da Saúde. Seu objetivo maior é, a partir de um mapeamento inicial, socializar e apoiar a luta de inúmeras populações e grupos atingidos/as em seus territórios por projetos e políticas baseadas numa visão de desenvolvimento considerada insustentável e prejudicial à saúde por tais populações, bem como movimentos sociais e ambientalistas parceiros. É importante destacar que a noção de saúde inclui também temas como a defesa da cultura e modos de vida tradicionais, a democracia e a violência, já que em inúmeros casos existem ameaças e até assassinatos contra aqueles que lutam por seus direitos.
Como diz nosso site (www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br), o Mapa busca sistematizar e socializar informações disponíveis, dando visibilidade às denúncias apresentadas pelas comunidades e organizações parceiras. Os cerca de 300 casos (novos 40 estão sendo introduzidos neste momento) nos vários estados do país foram selecionados a partir de sua relevância socioambiental e sanitária, seriedade e consistência das informações apresentadas. Com isso, esperamos contribuir para o monitoramento de ações e de projetos que enfrentem situações de injustiças ambientais e problemas de saúde em diferentes territórios e populações das cidades, campos e florestas, sem esquecer as zonas costeiras.
AS-PTA – Como ele foi elaborado? As populações atingidas por processos de injustiça ambiental tiveram participação na sua construção?
M.F.: O Mapa foi construído a partir de fontes de informação provenientes, em grande parte, do acúmulo da Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA), incluindo a experiência de suas entidades, suas discussões e seus Grupos de Trabalho. Dentre eles destacamos o GT Químicos e o GT Combate ao Racismo Ambiental, sendo deste último um levantamento inicial do Mapa do Racismo Ambiental no Brasil. Parcela dos documentos que circulam na RBJA e seus GTs encontram-se disponibilizadas no Banco Temático, ferramenta construída pela FIOCRUZ e FASE acessível na internet que permite a busca e consulta de documentos. Além disso, a construção dos casos incorporou a experiência de vários parceiros, como grupos acadêmicos e entidades que vêm atuando nos movimentos por justiça ambiental no país, incluindo Ministérios Públicos, ONGs, movimentos sociais e a própria mídia. Na fase final, o casos de cada estado do país foram analisados e validados por profissionais e militantes da justiça ambiental que conheciam mais de perto a realidade local.
A maioria das fontes de informação utilizadas, como não poderia deixar de ser num trabalho de justiça ambiental, privilegiam demandas, falas e posições das populações atingidas, mesmo quando produzidas por entidades como ONGs, grupos acadêmicos e instituições em função de sua atuação solidária. Além disso, na divulgação de seus resultados, privilegiamos a apresentação em encontros que representantes de populações e movimentos sociais estejam presentes e se apropriem desta ferramenta, assim como representantes de instituições como Ministérios Públicos e Defensorias Públicas.
O levantamento teve como recorte denúncias existentes desde janeiro de 2006, mesmo que suas origens fossem anteriores a essa data. Os resultados finais, que estão georreferenciados (trabalhamos com o GoogleEarth), contêm informações como o tipo de população atingida, o local do conflito, o tipo de dano à saúde e de agravo ambiental. Também apresentamos um a síntese do conflito e o contexto ampliado do mesmo, com informações sobre os principais responsáveis pelo conflito, as entidades e populações envolvidas na luta por justiça ambiental, os apoios recebidos ou não, as soluções buscadas e/ou encontradas, e finalmente os principais documentos e fontes de pesquisa usadas na pesquisa sobre o caso.
AS-PTA – Qual é a sua abrangência neste momento? Há registros de todo o país? O mapa já pode ser considerado um bom parâmetro para a análise dos principais conflitos ambientais em curso?
M.F.: Foi um critério nosso levantar dados de todos os estados do Brasil, que estão representados no Mapa, com exceção do Distrito Federal. O número de casos varia de cinco a mais de 30, dependendo do estado. Por exemplo, estados com maior população e com maior história de devastação ambiental apresentam mais casos, por isso estados como Roraima e Sergipe possuem um número de casos bem menor que os levantados em estados como Minas Gerais, Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo. Os quase 300 casos sistematizados até o momento não esgotam as inúmeras situações existentes no país, mas refletem uma parcela importante nos quais populações atingidas, movimentos sociais e entidades ambientalistas vêm se posicionando em debates públicos. As informações nele contidas devem ser vistas como dinâmicas e em processo de aperfeiçoamento, na medida em que novas informações e situações possam, na continuidade do projeto, aprimorar, corrigir e complementar o presente resultado. Existem no portal na internet do projeto um Fale Conosco que permite o envio de críticas e sugestões que estão sendo analisadas pela equipe do projeto.
Portanto é importante ressaltar que não consideramos o Mapa “fechado”. Muito pelo contrário, ele é o momento inicial de um novo espaço para denúncias, para o monitoramento de políticas públicas e, ainda, de desafio para que o Estado, em seus diversos níveis, responda às necessidades da cidadania.
AS-PTA – O uso indiscriminado de agrotóxicos constitui um elemento importante gerador de injustiça ambiental? Há muitos casos no mapa envolvendo os agrotóxicos?
M.F.: No Mapa a expansão do agronegócio, em especial de monocultivos como a soja e a produção de árvores para a celulose ou a siderurgia, aparece como um das principais causas de injustiça ambiental no Brasil. Tais atividades geram vários efeitos negativos, como a concentração de terras, renda e poder político dos grandes produtores; o desemprego e a migração campo-cidade com impactos no caos urbano das metrópoles dos países periféricos; o não atendimento às demandas de segurança e soberania alimentar, já que o agronegócio está preocupado em produzir as mercadorias agrícolas mais lucrativas e que muitas vezes não são alimentos (caso dos biocombustíveis) ou são exportados como commodities para os países mais ricos. Além disso, a disputa por terras gera conflitos com as populações tradicionais como indígenas, quilombolas, pescadores e extrativistas, além daqueles com agricultores familiares e os movimentos pela reforma agrária.
O uso intensivo de agrotóxicos e agroquímicos, uma das marcas da “modernização agrícola” no Brasil, é também um grande problema. No Mapa aparecem 43 casos de conflitos em que aparece a palavra agrotóxicos. Nem sempre o problema se dá no campo: a produção de agrotóxicos também está presente em tragédias envolvendo trabalhadores e populações urbanas, como nos casos da contaminação de resíduos de agrotóxicos na Baixada Santista pela multinacional francesa Rhodia, em Paulínia (SP) pela Shell, na chamada Cidade dos Meninos em Duque de Caxias (RJ) em que o próprio governo federal é o réu, ou ainda em desastres como o vazamento de milhares de litros do agrotóxico endossulfam pela empresa Servatis em Resende (RJ), que contaminou o rio Paraíba do Sul e afetou várias cidades e pescadores até a foz do rio no norte do Estado.
AS-PTA – Como se espera que esta ferramenta possa influenciar o poder público a buscar soluções para os conflitos?
M.F.: Como já dito, uma questão importante é a divulgação destes casos de conflitos e injustiças na opinião pública. Um aspecto da vulnerabilização destas populações é a invisibilidade de seus problemas na mídia e nos debates públicos. Raramente eles aparecem na mídia, ou quando aparecem muitas vezes são apresentados de forma discriminatória: as violências praticadas contra tais populações, os atos de resistência e de defesa de direitos são ocultados ou distorcidos, e são realçadas acusações contra o direito de propriedade dos grandes produtores. O lançamento do Mapa nos últimos meses em vários veículos da mídia e em eventos regionais permitiu lançarmos um olhar contra-hegemônico, o que provocou reações, mas também busca de ações mais efetivas por parte das instituições e, por vezes, das próprias empresas. Há uma fetichização no mundo e no Brasil sobre o que chamam gestão ambiental e responsabilidade social corporativa, pois frequentemente tais práticas não dialogam com as populações e desprezam suas reivindicações.
Outro aspecto muito importante para nós é o uso desta ferramenta por parte das populações e dos movimentos sociais para mostrar o “outro lado” que não aparece nos indicadores de crescimento econômico e desenvolvimento. Também esperamos que instituições democráticas ligadas a setores como a saúde ambiental, o meio ambiente, a reforma agrária, a demarcação de terras indígenas e quilombolas, dentre outros, possam incluir os dados do Mapa para construírem agendas e implementarem suas ações.
AS-PTA – Como comunidades ou organizações populares vítimas de injustiças ambientais podem contribuir para o avanço deste trabalho?
M.F.: O Mapa é, antes de tudo, uma ferramenta para a construção da cidadania e da justiça. Uma possibilidade de atuação por parte de comunidade ou organizações, que já vem acontecendo, é a denúncia de novos casos, a correção ou atualização das informações sobre os casos existentes. Isso pode ser feito, como já explicado, no Fale Conosco que está presente no portal do Mapa na internet. Outra novidade que já começou a ser discutida, em articulação com a Rede Brasileira de Justiça Ambiental, é a continuidade da gestão do Mapa em termos de acompanhar os casos, atualizar informações e introduzir novos casos, por entidades e organizações nas várias regiões e estados. Isso permitirá que o Mapa funcione como ferramenta mais próxima da realidade local e suas lutas, ao mesmo tempo que permaneça sua função de divulgação no nível nacional e mesmo internacional. Esta função é estratégica porque populações que podem estar sofrendo os efeitos do agronegócio, da exploração mineral, de lixões ou da construção de hidrelétricas podem aprender e compartilhar estratégias e experiências umas com as outras.