sexta-feira, 9 de setembro de 2016

OPINIÃO Expansão do poder punitivo e o racismo institucional no Brasil

OPINIÃO

Expansão do poder punitivo e o racismo institucional no Brasil


Estão em julgamento no Supremo Tribunal Federal as Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADC) 43 e 44, cujo escopo é impedir a execução da pena não transitada em julgado a partir da sentença de segunda instância, por meio da declaração de constitucionalidade do artigo 283 do CPP. Sobre o tema, já nos manifestamos aqui, apontando os graves impactos da relativização de direitos fundamentais para as populações negras. De forma complementar, demonstraremos a presença do racismo em diversas instâncias da nossa sociedade — para além do sistema punitivo — bem como trabalharemos a ideia de racismo estrutural e seus desdobramentos na constituição social brasileira.
O racismo estrutural pode ser subdividido em três vertentes: individual, praticada de forma individualizada em razão do fenótipo; cultural, ou seja, valorização de uma cultura eurocêntrica em detrimento da de origem africana; e institucional, como estrutura que se desdobra em práticas e leis que se prestam à manutenção das desigualdades. Quanto a esta última, faremos uma abordagem histórica, buscando identificar suas raízes na constituição do capitalismo brasileiro e seu legado a partir do levantamento de dados.
O racismo institucional, em nossa visão, se constitui em toda essa gama de memórias, posturas, atitudes e traumas que acabam por diminuir ou fechar as portas para pessoas negras às oportunidades da vida cotidiana — conscientemente ou não. Há certa preferência, cujo corolário é a ausência de afrodescendentes em determinados espaços, seja no setor público ou privado. Isso acaba por restringir as oportunidades de acesso, como também de ascensão — para todo lugar que se olha, confirma-se o embranquecimento ao analisar os estratos mais altos da pirâmide social: por exemplo, poucos negros generais de brigada no Exército, embaixadores no Itamaraty, diretores de bancos, e até mesmo ministros do STF. O racismo institucional costuma se apresentar como ideologia neutra — escondendo seu perverso conteúdo excludente.
É possível perceber as raízes deste processo na constituição social brasileira: não só foi o Brasil o último dos países a abolir a escravidão negra legalmente, como o que mais recebeu africanos escravizados. Ainda, o processo de substituição do trabalho escravo pelo assalariado se deu de maneira materialmente excludente. A existência de trabalhadores escravizados nas Américas, torturados sistematicamente para produzirem, permitiu a constituição da classe trabalhadora — composta principalmente pelo ex-escravizado formalmente liberto e materialmente limitado.
Se, por um lado, este trabalhador se vê obrigado a vender sua mão-de-obra a preços exíguos para sobreviver, tentar outra forma de vida não será uma opção: desde 1890, o CP proibia o que se chamava crime de vadiagem. A criminalização recairia sobre seu estilo de vida: “vadio” era o praticante da capoeiragem — manifestação cultural histórica da resistência do povo negro. Portanto, os negros despossuídos não tinham escolha senão o trabalho assalariado ou a prisionalização — onde seriam reeducados para o trabalho.
Não bastando, o crime de vadiagem — isto é, encaixar-se no estereótipo da miséria — foi ressignificado na Lei de Contravenções Penais de 1941, com a seguinte definição: “habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que assegure meios bastantes de subsistência, ou que prover a própria subsistência mediante ocupação ilícita”. Isso sem falar de outras criminalizações genéricas, como a mendicância.
Se o negro era, em geral, subempregado no mercado de trabalho informal, a institucionalização nem mesmo considerava suas ocupações como emprego. Por exemplo, uma pergunta constante do formulário do Serviço de Fiscalização e Repressão à Mendicância e Menores Abandonados, de 1942, continha a pergunta “Tem vendido jornais, bilhetes de loteria, engraxado sapatos ou desempenhado alguma ocupação na via pública?” como parte da aferição da "personalidade criminosa". Nessa esteira, a questão do racismo e da escravidão estão retratadas no filme "Menino 23", que vem sendo exibido inclusive em parceria com a Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra no Brasil (CNVENB) do Conselho Federal da OAB.
Esse legado é perceptível nos dados atuais: enquanto mulheres brancas estudam em média 9,7 anos e homens brancos 8,8 anos, as mulheres negras estudam 7,8 anos e os homens negros, 6,8. Na seara de assistência social, 70% dos domicílios que recebiam a Bolsa Família eram chefiados por negros, em 2006. A taxa de desemprego também aflige em maior grau a população negra: em 2009, 5,3% para homens brancos e 9,2% para mulheres brancas, em contraste com os 6,6% e os 12,5% dos homens e mulheres negras, respectivamente. Importante ressaltar a perceptível vulnerabilidade de gênero extraída dos dados.
Ainda hoje, algumas instituições brasileiras carregam em sua simbologia manifestações do racismo institucional. Por exemplo, a Polícia Militar do Rio de Janeiro tem como símbolo um pé de açúcar, um pé de café, duas armas e a coroa imperial: um braço armado em defesa dos grandes proprietários. É, portanto, manifestação caricata da necessidade de manter o contingente populacional sob intenso controle, a fim de evitar a emancipação do povo negro.
De fato, ao observar a letalidade policial, percebe-se que o caráter racista da Polícia Militar permanece: está em curso uma política de genocídio. Das 1.275 vítimas de homicídio em intervenção policial entre 2010-2013, “99,5% eram homens, 79% eram negros e 75% tinham entre 15 e 29 anos de idade”,segundo a Anistia Internacional. Os desdobramentos do racismo institucional se apresentam ao olhar a sociedade e perceber a manutenção das desigualdades. O Mapa da Violência nos mostra que a vitimização negra no país foi de 158,9%, ou seja, morrem, proporcionalmente, 158,9% mais negros que brancos – a taxa de homicídios na população negra é de 27,4 em 100.00, enquanto na branca é de 10,6. Dos 30 mil jovens assassinados por ano, 77% são negros (Anistia Internacional).
Válido também destacar os resultados do estudo “A Criminalidade Negra no Banco dos Réus – Desigualdade no acesso à justiça penal”, cujas conclusões foram: “réus negros tendem a ser mais perseguidos pela vigilância policial, bem como experimentam maiores obstáculos de acesso à justiça criminal e maiores dificuldades de usufruírem do direito de ampla defesa, (...) em decorrência, réus negros tendem a merecer um tratamento penal mais rigoroso, representado pela maior probabilidade de serem punidos comparativamente aos réus brancos.” De fato, as estatísticas comprovam: os negros compõem 67% da população carcerária do país.
Por esta razão, o Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (Iara) se encontra preocupado com os resultados das ADC 43 e 44. Sabemos que a atuação das agências punitivas é, geralmente, direcionada ao público negro — da abordagem policial ao julgamento. Basta lembrar decisão absurda que evidencia todo o racismo institucional: em 2014, a 39ª Vara Criminal da Capital expediu mandado de busca e apreensão coletivo, autorizando a Polícia Civil a entrar em todas as casas das favelas do Parque União e Nova Holanda. Às populações negras e pobres, fica o recado escancarado do Poder Judiciário: seus direitos fundamentais são irrelevantes.
O início do julgamento das ações, cujo resultado influirá majoritariamente sobre as populações negras, foi expressão simbólica desse panorama. Não havia, praticamente, nenhum negro presente na corte. Nem mesmo foram lembrados em grande parte das excelentes sustentações —  apenas vi Técio Lins e Silva indagar "E os negros"?. Nenhuma instituição diretamente representativa dos interesses da população negra foi ouvida — e não por falta de tentativa. O pedido de amicus curiae do Iara foi indeferido, fundamentado em suposta ausência de representatividade. Se um instituto dedicado à causa negra, com participação em dezenas de ações no STF e diversas outras atuações juntamente aos poderes executivos não está apto a representar a população negra adequadamente no tema, quem estaria?
Em virtude das grandes repercussões que podem advir dos resultados desta ação, nos parece que o STF, ao apreciar seu mérito, deveria empreender esforço em conjunto com as instituições da sociedade civil, de modo a levantar uma base de dados completa a respeito do panorama carcerário. Por exemplo, seria cabível requisitar às Defensorias Públicas do todo o Brasil (e outros órgãos como o CNJ) seus dados a respeito da população carcerária e sucesso dos recursos — em especial, daquelas que atuam fora dos grandes centros urbanos. Ainda, a exemplo de outras grandes ações constitucionais, a realização de audiência pública ajudaria a fomentar o debate a respeito do tema.
O Direito se mostrou estrutura mantenedora das relações sociais desiguais. A opressão racial perpassa todos os aspectos da vida social e será reproduzida na arena jurídico-política e nas formas de consciência, de modo que o racismo estrutural encontrará desdobramentos. Como seu produto, o que é construído aparece como natural: a ideologia faz com que o desfecho de um processo histórico apareça como uma condição a priori. “O negro já aviltado e degradado, produto de relações históricas, é formulado como o negro em si mesmo, em sua essência. Os indicadores sociais desfavoráveis aos negros aparecem como atestado de sua inferioridade, e não como a expressão de uma sociedade que os oprime, que os mutila em suas possibilidades. (...) É assim que se atribui ao negro uma predisposição a trabalhos manuais penosos; é assim que a ‘mulata’, em sua coisificação no carnaval, é celebrada como musa; é assim que a incorporação do negro nos porões da sociedade soa como democracia racial”.
Em verdade, a síntese da ideologia racista no Brasil é velada pelo mito da democracia racial, que é a negação do racismo contida nas categorias mentais populares. Para Clóvis Moura, um país que tem na sua estrutura social vestígios do sistema escravista, com ”uma concentração fundiária e de rendas maiores do mundo; no qual a concentração de renda exclui total ou parcialmente 80% da população da possibilidade de usufruir um padrão de vida decente; que tem 30 milhões de menores abandonados, carentes ou criminalizados, não pode ser uma democracia racial”.
De fato, exemplos legislativos não faltam para comprovar o racismo institucional. A Lei de Terras de 1850 transformava a terra em mercadoria, ao mesmo tempo em que estabelecia uma apropriação desigual marcada por critérios étnico-raciais. A Lei Áurea, por sua vez, não foi seguida de políticas voltadas à inclusão desse contingente populacional recém-liberto. Perpassa, também, o estímulo à imigração: o artigo 1º do Decreto 528/1890 previa expressamente a livre entrada de indivíduos aptos a trabalhar, exceto os oriundos da Ásia e da África, que estariam condicionados à autorização do Congresso Nacional.
Essa postura higienista foi positivada na CF/34, que em seu artigo 138, b, incumbiu a União, Estados e Municípios o dever de “estimular a educação eugênica”! Vale lembrar, eugenia é ideologia de branqueamento, a fim de atingir uma “pureza racial”.
Dessa forma, pode-se dizer que o racismo desdobrou-se institucionalmente, através de políticas públicas e legislações, sendo o Estado, portanto, elemento constituinte da estrutura racista atual. Observando-se os Retratos das Desigualdades de Gênero e Raça, pode-se perceber diferença no acesso às políticas públicas. Segundo a PNAD, 40,9% das mulheres negras acima de 40 anos jamais haviam realizado mamografia em suas vidas, frente a 26,4% das brancas. A taxa de mortalidade maternal entre as mulheres negras era 65,1% superior à das mulheres brancas.
Quanto à distribuição de domicílios urbanos em favelas, 66,2% deles são chefiados por pessoas negras, frente aos 33,8% liderados por brancos. A expectativa de vida dos negros, segundo o IPEA, é de 66 anos, contra 76 anos da população branca, e as taxas de desemprego são 50% superiores entre negros. Sobre a renda média da população, talvez o dado mais assustador: em 2009, os negros apresentavam em média somente 55% da renda pelos brancos. Comparando os diferentes estratos sociais, a população negra corresponde a 72% do décimo da população mais pobre do país, enquanto corresponde somente a 24% dos 10% mais ricos. A pesquisa não deixa dúvida, portanto, que até hoje os contingentes negros sejam mais excluídos e prejudicados na sociedade — e ainda há quem fale em “vitimismo”.
Não bastasse, outra pesquisa realizada pelo Instituto Ethos e IBGE/2010 revela que nos quadros funcionais e de supervisão, os negros ocupam, respectivamente, 31,1% e 25,6% dos cargos. Na gerência, são 13,2% e na diretoria, somente 5,3%. A situação da mulher negra é pior: ela fica com 9,3% dos cargos da base e de 0,5% do topo. Em números absolutos, significa que, no universo que as empresas informaram, de 119 diretoras e 1.162 diretores de ambos os sexos, negros e não negros, apenas seis são mulheres negras.
Os dados não deixam dúvida, portanto, quanto às heranças e permanências de um sistema fundado em exclusão racial na sociedade brasileira. Em um contexto de expansão do poder punitivo e relativização de garantias fundamentais, imperioso que a população negra, principal alvo desse sistema racista, seja ouvida. Por sua vez, permitir a execução da pena, a partir da decisão de segunda instância é negligenciar garantia tão cara ao nosso ordenamento como a presunção de inocência e, por extensão, a liberdade. Com essa tese parece concordar o relator, quando em seu voto afirma: “em cenário de profundo desrespeito ao princípio da não culpabilidade, sobretudo quando versada constrição cautelar, descabe antecipar, com contornos definitivos — execução da pena —, a supressão da liberdade. (...) o Supremo vem viabilizando a livre condução do processo persecutório por instâncias inferiores”.
Nada mais atual, portanto, que os versos do grupo Racionais MCs: “A mídia, a justiça, querendo me fuzilar (...) Tumultuou, nunca vi tanto carniceiro/ Me crucificaram, me julgaram no país inteiro/ Pena de morte, se tiver sorte/ Cadeira elétrica se fosse América do Norte/ Opinião pública influenciada/ Era o réu sem direito a mais nada”.
* Este artigo contou com a participação dos acadêmicos Antonio G. da C. Neto, Eduardo R. Adami, Natan A. Duek e Vanilda H. dos Santos.

Escravidão, racismo e capitalismo – Daniel Alfonso
Capitalismo e racismo no Brasil – Pablo Biondi
 é advogado e mestre em Direito. É Diretor do IARA Instituto de Advocacia Racial e Ambiental e ex- Ouvidor da SEPPIR Secretaria Nacional de Políticas de Igualdade Racial, da Presidência da República.  Atualmente preside a Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra no Brasil, do Conselho Federal da OAB. 

Revista Consultor Jurídico, 9 de setembro de 2016, 16h37http://www.conjur.com.br/2016-set-09/humberto-adami-expansao-poder-punitivo-racismo-institucional

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