domingo, 5 de abril de 2015

Pesquisa americana indica que o Rio recebeu 2 milhões de escravos africanos

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Pesquisa americana indica que o Rio recebeu 2 milhões de escravos africanos

O número é o dobro do que era estimado: a tese é baseada em banco de dados criado pela Universidade de Emory, em Atlanta

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RIO — Entre 1500 e 1856, a cada cinco pessoas no mundo que foram escravizadas, uma colocou os pés no Rio de Janeiro. Foi na região do Porto, onde hoje estão as avenidas Venezuela e Barão de Tefé, que atracou boa parte dos navios negreiros vindos da África, trazendo, inclusive, corpos de quem não resistiu à viagem. Por muito tempo, imaginou-se que pouco mais de um milhão de escravos desembarcaram na cidade — e mais 2,6 milhões teriam sido levados para outros pontos do litoral brasileiro. Agora, estudiosos afirmam que o número relativo ao Rio é muito maior que o estimado por vários historiadores. A tese é baseada em um minucioso banco de dados criado pela Universidade de Emory, em Atlanta, nos Estados Unidos: o arquivo reúne registros portuários feitos ao longo de três séculos e meio. O trabalho está hospedado no site slavevoyage.org e ganhará, dentro de algumas semanas, tradução para o português pela Casa de Rui Barbosa, em Botafogo. Segundo o novo levantamento, cerca de 2 milhões de escravos chegaram ao Rio.

— O cálculo anterior, adotado por vários historiadores, era de autoria de Maurício Goulart, que publicou “Escravidão africana no Brasil’’, em 1949. Na obra, ele afirma que o Brasil recebeu 3,6 milhões de escravos. A estimativa de desembarque de pouco mais de um milhão no Rio foi baseada em registros feitos na região do Cais do Valongo entre 1758 a 1831. Houve outros pontos de desembarque no estado, e levantamos documentos referentes ao transporte de escravos em oito idiomas, datados de períodos anteriores e posteriores àquele de 73 anos que, até então, era o único considerado por estudiosos. Agora, temos um número mais preciso — diz Manolo Florentino, único brasileiro que participou do projeto. — Na pesquisa da Universidade de Emory, 90% dos dados relativos à Região Sudeste se aplicam ao Rio, principal porta de entrada de navios negreiros no país.

No estudo, foram catalogadas 35 mil viagens, que revelam um fluxo de 10,7 milhões de escravos em todo o mundo. Pesquisadores checaram documentos de vários países, incluindo Estados Unidos e Inglaterra, além do próprio Brasil e de nações do continente africano. Muitas vezes, não havia registro de chegada de um navio negreiro ao Rio, mas sua partida rumo à cidade estava documentada, por exemplo, em Portugal. E, além do Cais do Valongo, Copacabana e Botafogo e outros pontos do Centro serviram como locais de desembarque, mesmo que em escala pequena.

De acordo com a pesquisa, cerca de 4,8 milhões de escravos chegaram ao litoral brasileiro. Outro número que chama a atenção, divulgado pela primeira vez, é o de total de vidas perdidas nos deslocamentos entre continentes — pelo levantamento da Universidade de Emory, cerca de 300 mil escravos morreram a caminho do Rio.

 

— Os números da pesquisa podem ser ainda maiores. Estamos preparando uma atualização para os próximos anos — afirma o historiador David Eltis, coordenador do trabalho.

Interessados podem acessar o site do projeto e, por meio de recortes históricos, pesquisar os períodos mais intensos do tráfico de escravos. Nos três primeiros séculos da colonização portuguesa, por exemplo, a Bahia recebeu 15% a mais de escravos que o Centro-Sul (na época, o Sudeste estava inserido nessa região). O panorama mudou depois de 1763, quando o Rio se tornou sede do governo geral.

O historiador Marcus Dezimone, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), explica que o apogeu da produção de ouro na capitania de Minas Gerais, em meados do século XVIII, fez o Rio se tornar um lugar estratégico para receber escravos da África e enviá-los às minas:

— Tínhamos uma ideia da época em que o Rio ultrapassava a Bahia em número de escravos, mas a pesquisa da universidade americana é importante porque apresenta clareza sobre esse perído. A partir da segunda metade do século XVIII, o número de escravos recém-chegados da África cresce no Rio e se estabiliza na Bahia. Nenhum lugar do Brasil servia tão bem à recepção de escravos como a cidade.

Os países que mais enviaram escravos ao Rio foram Congo e Angola — no século XVIII, chegaram 720 mil. Depois de 1780, com o declínio da atividade mineradora no Brasil, boa parte deles foi levada para o Vale do Paraíba, no interior do estado, onde, mais tarde, teve início uma grande expansão das lavouras de café.

A pesquisa também traz um importante esclarecimento sobre a escravidão no século XIX: o Rio importou mais escravos do que Cuba para o trabalho nas lavouras de café. Entre 1831 a 1840, a estimativa é que desembarcaram por aqui 239 mil, contra 186 mil na ilha. O escritor e pesquisador Tâmis Parron, autor de “A política da escravidão no Império do Brasil’’, elogia o trabalho e destaca que, antes, esse fluxo só era dimensionado por questões geográficas.

— As análises sempre penderam para o Rio pela posição da cidade em relação ao continente africano. Era mais barato para o traficante de escravos chegar ao porto carioca do que ir para Cuba — diz Parron.

‘LEI PARA INGLÊS VER’

Outro período que carecia de informações mais detalhadas sobre a chegada de escravos ao Rio era o pós-1831 — ano de criação da Lei Feijó, que proibia o tráfico negreiro no Brasil. Pesquisando o site, constata-se que, num primeiro momento, a iniciativa deu resultado. Em 1831, chegaram 900 escravos à cidade, contra 31 mil um ano antes. No entanto, a partir de 1832, voltou a um ritmo galopante. Com a pressão britânica pelo fim da exploração humana, surgiu a expressão ‘‘lei para inglês ver’’. Entre 1835 e 1850, aproximadamente 564 mil escravos chegaram ao Rio ilegalmente, de acordo com a Universidade de Emory.

Ao mesmo tempo em que o Rio ganha um importante banco de dados para entender melhor seu passado, a cidade vive a expectativa de ver o Cais do Valongo transformado em Patrimônio Cultural da Humanidade. O antropólogo Milton Guran coordena uma equipe multidisciplinar que, em setembro, enviará para a Unesco um dossiê para a candidatura.

— No ano em se completam 450 da fundação da cidade, damos um passo na reconciliação com nossas raízes. O Rio nasceu indígena e ganhou batismo português, mas sua base étnica é composta pela negritude, que foi fundamental para nossa formação cultural.

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