terça-feira, 19 de agosto de 2014

Decisão do STF: Sobre o pedido de reserva de vagas para negros emconcursos de órgãos legislativos e judiciários

Este artigo adensa a discussão 
sobre as cotas no Judiciário e 
Legislativo, e comprova o acerto
E oportunidade da iniciativa
Histórica do IARA.
Humberto Adami

O Plenário do STF (Supremo Tribunal Federal) dedicou-se, esta semana, a julgar ações diretas de inconstitucionalidade tendo por objeto leis que há muitos anos tinham sua eficácia suspensa por medidas cautelares concedidas pela própria Corte, o que resultou menos em fixação de novas teses, e mais em limpeza de pauta. Por outro lado, não finalizou o julgamento de recurso extraordinário com repercussão geral, que versava sobre matéria afeta à composição dos Tribunais de Contas estaduais, em virtude de empate na votação, a ser resolvido oportunamente, com a colheita do voto do Min. Gilmar Mendes, ausente à sessão.
Movimento mais interessante veio das decisões monocráticas, que se debruçaram sobre assuntos jurídica e socialmente polêmicos. Assim o foi com a decisão que manteve os efeitos de medida cautelar proferida pelo Tribunal de Contas da União, determinando a indisponibilidade de bens de dirigentes diversos da Petrobras, no curso das apurações referentes à aquisição de refinaria em Pasadena (MS 33.092, Rel. Min. Gilmar Mendes); ou, então, da que suspendeu medida liminar, de primeira instância, que determinara a retirada de matéria divulgada por jornalista em blog hospedado no site de revista de grande circulação nacional (Rcl 18.290, Rel. Min. Luiz Fux).
Dentre essas, comporta comentários – seja pela relevância da matéria de fundo, seja pela repercussão midiática que alcançou, com compreensão equivocada de seu teor – a decisão proferida em ação que visava a estender a obrigatoriedade de reserva para negros de 20% das vagas existentes em concursos públicos de órgãos e entidades da Administração direta e indireta federal aos concursos realizados por órgãos legislativos e judiciários (MS 33.072, Rel. Min. Cármen Lúcia).
O IARA (Instituto de Advocacia Racial e Ambiental) impetrou, perante o STF, em conjunto com outros impetrantes, pessoas físicas, MS (mandado de segurança) no qual pretendia que se assegurasse a referida reserva de vagas em concursos de Legislativo e Judiciário genericamente, bem como de modo específico em relação a concurso em andamento para preenchimento de cargos do TCU (Tribunal de Contas da União). Alegou, para tanto, que a Lei 12.990/2.014, que estabelece a obrigatoriedade da reserva em concursos no âmbito da Administração federal, deixou, de um lado, de observar o “princípio da proporcionalidade de gênero entre os seus beneficiários” e, de outro, de promover “a inclusão de afrodescendentes negros (pardos e pretos) nos Poderes Judiciário e Legislativo”, de modo que teriam sido ofendidas a Constituição da República e o Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2.010, especialmente art. 39, caput e parágrafos 2º e 4º), ao faltarem as autoridades competentes com o dever de adotarem medidas de “justiça social, ação afirmativa e reparação do processo de escravidão moderna e de antirracismo, notadamente pela omissão na elaboração de atos normativos que adequassem os órgãos públicos” aos ditames constitucionais e legais invocados. No polo passivo, foram apontados como autoridades coatoras os Presidentes da República, do STF, das Casas do Congresso Nacional e do TCU, além do PGR (Procurador-Geral da República) e do Defensor Público-Geral federal, tendo sido todos chamados a prestarem informações, previamente à decisão prolatada pela Relatora.
De início, a Min. Cármen Lúcia destacou a legitimidade ativa do IARA para impetração de MS coletivo, na qualidade de associação que pleiteia a defesa de direitos de seus associados, em nome e por iniciativa próprios, independentemente de autorização daqueles, tratando-se de hipótese de substituição processual prevista em norma constitucional (art. 5º, LXX, b, da Constituição, conforme entendimento consagrado em jurisprudência consolidada do STF, da qual a Ministra citou, a título de exemplo, o MS 22.132, Rel. Min. Carlos Velloso).
Entendeu a Relatora, contudo, que, a despeito da legitimidade para a impetração em tese, não estariam presentes condições que autorizariam o uso do MS coletivo para a finalidade pretendida pelo IARA, tendo apontado três razões para tanto. Em primeiro lugar, observou a Min. Cármen Lúcia que o MS voltava-se claramente contra supostas falhas da Lei 12.990/2.014, que teria deixado de observar proporcionalidade de gênero e de promover ação afirmativa em relação a concursos públicos de órgãos legislativos e judiciários. Com respaldo em lições doutrinárias e farta jurisprudência, salientou, a esse propósito, que “a indicação expressa da norma como ato coator demonstra a impossibilidade jurídica de prosseguimento da presente ação, porque, nos termos da legislação vigente, o mandado de segurança não é via adequada pela qual se possa questionar lei em tese, o que, de resto, é objeto de verbete específico deste Supremo Tribunal (Súmula 266 – não cabe mandado de segurança contra lei em tese)”.
Em segundo lugar, a Ministra observou que o que se buscaria por intermédio desse MS coletivo, em verdade, seria “a declaração de inconstitucionalidade por omissão da Lei n. 12.990/2014, por inobservância do pretenso direito dos Impetrantes de terem reservadas 20% (vinte por cento) das vagas disputadas em concursos públicos realizados no Poder Judiciário e no Legislativo e do princípio da proporcionalidade de gênero”. Nesse particular, ressaltou que a Constituição contempla ação específica para essa finalidade – em referência à ação direta de inconstitucionalidade por omissão – para a qual há legitimados específicos (art. 103), dentre os quais não figura entidade como a associação em questão.
Destacou, por fim, que não haveria direito subjetivo próprio dos associados a ser defendido em juízo, “podendo-se cogitar tão somente de interesse na adoção das medidas pleiteadas”, o que, no entanto, não seria passível de questionamento por meio de mandado de segurança, que pressupõe a existência de direito líquido e certo próprio – do impetrante, em MS individual, ou dos substituídos, em MS coletivo. No caso em tela, remetendo a informações prestadas pelo PGR e pela Presidente da República, entendeu que, de um lado, não haveria que se falar em violação ao Estatuto da Igualdade Racial, dado que este “não reserva vinte por cento das vagas em concurso público aos negros, mas apenas a implementação de medidas visando à promoção da igualdade nas contratações do setor público, com a transferência do juízo de sua adequação aos órgãos competentes”; de outro lado, considerou que a Lei 12.990/2.014 sequer poderia ter disposto sobre concursos nos órgãos legislativos e Judiciários, tendo em verdade sido rejeitada, por inconstitucional, emenda parlamentar proposta ao então projeto que resultara na lei, de iniciativa da Presidente da República, diante da “competência privativa” dos demais Poderes da República, “para dispor sobre seus cargos”.
Por essas razões, com base em dispositivo do Regimento Interno do STF que autoriza o Relator a, entre outras providências, negar seguimento a pedido “manifestamente inadmissível, improcedente ou contrário à jurisprudência dominante ou a Súmula do Tribunal” (art. 21, parágrafo 1º), a Min. Cármen Lúcia negou seguimento ao MS impetrado pelo IARA, restando assim prejudicada a medida liminar pleiteada pela associação.
Órgãos da imprensa, de um modo geral, noticiaram, equivocadamente, que a decisão em questão teria “negado” ou “rejeitado” pedido de “cotas” para negros nos concursos a serem realizados no âmbito dos Poderes Legislativo e Judiciário, como se houvesse sido proferido juízo de valor sobre o pedido formulado. A bem da verdade, não foi isso o que ocorreu. Em momento nenhum se efetuou, na decisão, juízo sobre a legitimidade da reserva de vagas à luz do ordenamento vigente. A decisão prolatada pela Min. Cármen Lúcia no MS 33.072 não se pronunciou sobre a questão de fundo subjacente à demanda, tendo se restringido a afirmar a inadequação da via eleita (mandado de segurança) para o questionamento da matéria e, no mérito, a reconhecer que a obrigatoriedade de reserva de vagas prevista na Lei 12.990/2.014 restringe-se à Administração federal, por limitações inerentes às regras do processo legislativo e decorrentes do princípio de separação dos poderes, tal como encartado na Constituição.
De fato, o Estatuto da Igualdade Racial estabelece, em seu art. 39, que “o poder público promoverá ações que assegurem a igualdade de oportunidades no mercado de trabalho para a população negra, inclusive mediante a implementação de medidas visando à promoção da igualdade nas contratações do setor público e o incentivo à adoção de medidas similares nas empresas e organizações privadas”. No que se refere às medidas a serem adotadas no setor público, o parágrafo 2º do mesmo dispositivo prevê que “as ações visando a promover a igualdade de oportunidades na esfera da administração pública far-se-ão por meio de normas estabelecidas ou a serem estabelecidas em legislação específica e em seus regulamentos”. Tem-se, pois, que a adoção de medidas, nesses termos, depende de prévia normatização específica.
É nesse contexto que se insere a Lei 12.290/2.014, que “reserva aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União”. Referida lei não poderia cuidar de fazê-lo senão no âmbito da Administração direta e indireta federal, na medida em que resultou de projeto de lei de iniciativa da Presidente da República (PL 6.738/2.013). Consequentemente, não poderia dispor sobre formas de seleção de servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, sob pena de ofensa à separação de poderes (CRFB, arts. 2º e 60, parágrafo 4º, III).
Como medida da independência que lhes é assegurada constitucionalmente, cada ramo do poder possui capacidade de auto-organização, que se traduz, entre outros aspectos, na autonomia para dispor sobre seus próprios quadros, dentro, é certo, das balizas estabelecidas na Constituição da República para a criação e extinção de cargos e empregos públicos. É assim que é de iniciativa privativa do Presidente da República a lei que disponha sobre “criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração” (art. 61, parágrafo 1º, II, a), competindo-lhe privativamente, ainda, mediante decreto, dispor sobre “extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos” (art. 84, VI, b); que compete privativamente à Câmara dos Deputados (art. 51, IV) e ao Senado Federal (art. 52, XIII) “dispor sobre sua organização, funcionamento, polícia, criação, transformação ou extinção dos cargos, empregos e funções de seus serviços, e a iniciativa de lei para fixação da respectiva remuneração, observados os parâmetros estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias”; ou, ainda, no âmbito do Poder Judiciário, que se estabelecem competências dos Tribunais relativamente ao provimento dos cargos de juiz e de seus servidores (art. 96, I, “c” e “e”), ou a iniciativa para propor ao legislativo respectivo “a criação e a extinção de cargos e a remuneração dos seus serviços auxiliares e dos juízos que lhes forem vinculados, bem como a fixação do subsídio de seus membros e dos juízes, inclusive dos tribunais inferiores, onde houver” (art. 96, II, b).
Essa limitação, decorrente do princípio da separação de poderes, foi reconhecida ainda quando em trâmite o PL 6.738/2.013, que viria a resultar na Lei 12.990/2.014. O projeto, como dito, era de iniciativa da Presidente da República; no âmbito da Câmara dos Deputados, onde iniciou seu trâmite, foi apresentada emenda parlamentar (EMP 6/2.013), destinada a acrescer expressamente ao art. 1º que a reserva aos negros de 20% das vagas oferecidas nos concursos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos, para além dos órgãos e entidades mencionados da Administração direta e indireta federal, se aplicaria igualmente aos concursos dos “Poderes Legislativo e Judiciário da União”. Referida emenda, contudo, não subsistiu ao parecer da CCJC (Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania) da própria Câmara, que apontou sua inconstitucionalidade, por vício de iniciativa, destacando que, “com relação aos cargos do Poder Legislativo, apenas a Mesa Diretora pode propor projeto dispondo sobre o regime jurídico do seu pessoal e sobre os seus cargos” e que, “com relação aos cargos do Poder Judiciário, apenas àquele Poder cabe dispor sobre os seus cargos”.
Inadequação da via eleita para a discussão pretendida e reconhecimento da limitação do alcance da regra estabelecida na Lei 12.990/2.014. O que se decidiu no MS 33.072 foi isso, e nada mais. No mérito, então, como ficaria a questão?
A questão de fundo – adoção de critério étnico-racial para reserva de vagas, em determinadas situações, como política de ação afirmativa – não é nova para o STF, ao contrário. Em mais de uma oportunidade, o Plenário da Corte já se manifestou por sua compatibilidade com o ordenamento constitucional. É o que se deu nos julgamentos em que se concluiu pela constitucionalidade de medidas adotadas por Universidades públicas, consistentes na reserva de vagas para acesso ao ensino superior (RE 597.285, relativamente ao “sistema de cotas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul”, estabelecido com base em critérios étnico-raciais aliados à origem escolar dos candidatos, e ADPF 186, sobre “programa de cotas raciais para ingresso na Universidade de Brasília”, ambos de relatoria do Min. Ricardo Lewandowski, julgados em abril e maio de 2.012). Se os resultados desses julgamentos não são garantia automática de que a medida venha a ser considerada válida para toda e qualquer finalidade que se apresente, dado que pode haver variantes nas circunstâncias fáticas ou jurídicas de cada caso a ser analisado que conduzam a resultado eventualmente diverso, por outro lado servem como indicador daquilo que, em essência, se tem entendido por legítimo, à luz do ordenamento constitucional vigente.
Cabe indagar, portanto, quais os contornos específicos da situação que ora se apresenta, mediante uma série de perguntas a serem respondidas sucessivamente. Haveria condições – de fato e de direito – para a adoção de medidas consistentes na obrigatoriedade de reservas de vagas por critérios étnico-raciais nos concursos públicos para ingresso nos quadros de órgãos legislativos e judiciários? A não adoção de medidas dessa natureza, pelos órgãos competentes para tanto, pode ser interpretada como uma omissão? Em havendo omissão, seria esta passível de questionamento pela via judicial? Sendo admissível o questionamento judicial, qual seria o alcance da decisão que constatasse uma tal omissão?
Nenhuma dessas questões foi enfrentada no MS 33.072. Resta saber, portanto, se, na eventualidade de a discussão pretendida pela IARA ser apresentada por via que se considere adequada, estariam configuradas condições fáticas e jurídicas que conduziriam à conclusão de que os órgãos legislativos e judiciários estariam incorrendo em omissão por não terem implementado, até o momento, medidas voltadas a promover a igualdade de oportunidades no acesso a seus quadros, por critérios étnico-raciais. Mais do que isso, restaria saber se estaria o STF autorizado – ou mesmo disposto – a ir além do simples reconhecimento da eventual mora normativa, nesse caso.
    ShareThis
Christianne Boulos é doutora em Direito do Estado pela USP (Universidade de São Paulo), com a tese "Controle preventivo jurisdicional de constitucionalidade: critérios para sua adoção no Brasil". No mestrado, também pela USP, defendeu a dissertação "Colisão de direitos fundamentais". Produz textos não jurídicos no blog Cronicando.

Nenhum comentário:

Postar um comentário