A discussão jurídica dos quilombos no STF*
O Min. Cezar Peluso, antes de assumir a Presidência do STF, lançou
relatório na ADIN 3239, em que o antigo PFL, atual DEM, questiona a
constitucionalidade do Decreto nº 4.887/2003, que regulamenta o processo de
aquisição e titulação das terras dos remanescentes de quilombos, tal como previsto
no art. 68 do ADCT. Permanece vinculado, pois, ao processo, que deve entrar em
pauta nos próximos dias.
O decreto foi impugnado pelos seguintes motivos: a) invade esfera
reservada à lei; b) cria nova modalidade de desapropriação; c) resume a
identificação dos remanescentes das comunidades apenas ao critério de autoatribuição;
d) sujeita a delimitação das terras a serem tituladas aos “indicativos
fornecidos pelos próprios interessados”.
O STF encontra-se, para tanto, diante de diversos questionamentos a
resolver.
Primeiro, o decreto somente foi expedido em 2003 ( é verdade que houve
um anterior, em 2001, mas com requisitos mais rigorosos), passados quinze anos
da edição do art. 68 do ADCT. O julgamento ocorre, portanto, sete anos da edição e
mais de vinte anos da promulgação da Constituição. Eventual invalidação ou
mesmo modulação temporal por inconstitucionalidade implicaria um razoável
retrocesso em relação a direitos garantidos constitucionalmente. E o próprio STF já
reiterou que a regra constitucional não “pode converter-se em promessa
constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas
expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o
cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de
infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental”.1 E isto
para qualquer dos Poderes do Estado, portanto.
Segundo, reconhecer o alegado caráter de “decreto autônomo” ou mesmo
de impossibilidade, por meio de decreto, regular a aquisição de terras pelas
comunidades implica evidente esvaziamento da eficácia do art. 68 do ADCT que
prevê apenas que “aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam
ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado
emitir-lhes os títulos respectivos”. Norma que dispensa regulação por meio de lei
* Publicado na revista Consultor Jurídico
1 Dentre outros: AgRg RE 393715/RS, Rel. Min. Celso de Mello, 2ª Turma, julg. 12/12/2006, DJ 02-02-2007,
p. 140.
específica, à falta inclusive da locução “na forma da lei”, o que, aliado ao art. 5º,
§1º, da Constituição, em se tratando de direito fundamental, evidencia sua
“aplicação imediata”.
Terceiro, porque, neste intervalo de tempo, a antropologia consolidou
estudos, definições e parâmetros para caracterização das comunidades
quilombolas, com larga discussão metodológica e científica, pelo menos desde
1994, a pedido do Ministério Público para esclarecimentos a respeito da situação.
Desfez as ideias pré-concebidas de isolamento territorial, de resíduos
arqueológicos e de populações homogêneas, o que foi corroborada, no mesmo
sentido, pela atual historiografia. A pretensão de aplicação do conceito de
quilombo, expedida pelo Conselho Ultramarino de 1740, significa,
simultaneamente, “frigorificar” um conceito de comunidade e, pois, de cultura
estática e invariável, e, ao mesmo tempo, utilizar-se de um instrumento claramente
repressivo do sistema colonial para interpretar um artigo definidor de direitos
constitucionais. Antes, pelo contrário, é justamente a descolonização do conceito de
“quilombo” que se faz necessária enfatizar e defender.
Quarto, porque a auto-definição ou auto-identificação é considerada, pelos
tratados internacionais, como o “critério fundamental para definir os grupos aos
quais se aplicam as disposições” da Convenção. Não é o único critério e tampouco
o Decreto 4.887/2003 assim prevê, mas é evidente que se trata de um elemento
altamente questionador tanto do etnocentrismo quanto do racismo da sociedade.
Mas que isto: é a constatação de que a invisibilização de tais comunidades foi
ativamente produzida como inexistência e, pois, como irrelevância. Uma
“sociologia das emergências” se faz necessária para contrabalançar a “sociologia
das ausências”.
Quinto, porque, em se tratando de processos que vem ocorrendo durante
largo período de tempo e envolvendo terras em que se concentra boa parte da
biodiversidade do país ( tal como também é o caso das terras indígenas), é evidente
a pressão do agronegócio, das mineradoras e dos grandes empreendimentos para
descaracterização das comunidades como “arcaicas”, “tradicionais” e “primitivas”
e, pois, contrárias tanto ao “desenvolvimento” da nação, mas também congeladas
em etapas anteriores de produção. Aqui, em sentido diverso, o que importa
destacar é a defesa da sócio-diversidade, da biodiversidade e das distintas formas
de manejo e de propriedade dentro do território nacional.
Sexto, porque, em se tratando de comunidades, a propriedade não tem sido
nem a forma pública, estatal, nem aquela tradicional, ou seja, a privada, de feitio
civilista dos códigos. Especialmente no caso do Judiciário brasileiro, isto é um
enorme desafio, quando se tem em conta que: a) boa parte dos casos de posse ou
mesmo de terras indígenas são decididos com a mera exibição do título de
propriedade ( esquecendo a distinção entre ambos os institutos), com evidente
prevalência desta última sobre a primeira; b) as comunidades utilizam um mesmo
espaço territorial de forma coletiva, nem sempre com fronteiras individuais
claramente destacáveis, o que vai contra toda uma formação jurídica privatista; c)
tem-se destacado pouco a função socioambiental da propriedade ( art. 186,CF), o
que implica preservação ambiental, respeito a relações de trabalho ( não-utilização
de trabalho escravo, portanto) e aproveitamento adequado e racional; d) a visão
jurídica tradicional tem associado “terra” a “mercadoria”.
Sétimo, porque recoloca-se a discussão da imensa concentração fundiária do
país, cujo caráter étnico de discriminação ficara oculto, porque a abolição deu por
“encerrado”o “problema do negro”, excluindo-os dos textos legais e
constitucionais qualquer referência a “quilombos”, que só reaparecem cem anos
depois, na Constituição de 1988. A Lei de Terras, de 1850, ao estabelecer como
única possibilidade de aquisição a compra, ignorou as distintas posses e regulações
existentes entre as comunidades tradicionais. Apropriação de terras e racismo,
pois, continuaram a ser legados pendentes do período da independência.
Oitavo, porque a situação de omissão já foi apontada por diversos relatórios
internacionais do sistema de proteção de direitos humanos: a) o Comitê de Direitos
econômicos, sociais e culturais, em 2003, manifestou preocupação com
“discriminação arraigada” contra afro-brasileiros, povos indígenas e grupos de
ciganos e quilombos e com o despejo forçado dos quilombos por empresas
mineradoras e outras empresas comerciais2; b) o Comitê para eliminação de todas
as formas de discriminação racial ( CERD), em 2004, salientava que “poucas áreas
de quilombos tinham sido oficialmente reconhecidas” e “um número ainda
menor” recebera o título de propriedade dos territórios ocupados, recomendando a
“aceleração do processo de identificação das comunidades quilombolas e das
terras, bem como da distribuição dos respectivos títulos”3; c) o Conselho
Econômico e Social, apresentando informe do Relator especial para a moradia
adequada, em 2004, considerava a necessidade “urgente para o Governo no
sentido de adotar medidas e legislação nacional para garantir proteção contra
despejos forçados e assegurar que qualquer despejo seja executado em
conformidade com as obrigações internacionais”, ao mesmo que reconhecia que o
art. 68 do ADCT constituía um “simbólico ponto de partida para rever históricas
2 http://www2.ohchr.org/english/bodies/cescr/docs/publications/CESCR-Compilacion(1989-2004).pdf p.56-
58, itens 20 e 36.
3 http://www.unhchr.ch/tbs/doc.nsf/0/f23afefaffdb960cc1256e59005f05cc/$FILE/G0441073.pdf itens 12 e
16.
discriminações contra descendentes de escravos”, recomendando a adoção, para as
comunidades quilombolas, das orientações constantes da Recomendação XXIX. 4
Nono, porque os relatórios internacionais destacam a falta de capacitação
adequada "em matéria de direitos humanos", em particular com respeito aos
"direitos consagrados" em tratados internacionais, especialmente "na judicatura e
entre os agentes públicos" (item 19 e recomendação 42 do relatório do Comitê
DESC5, recomendação 18 do relatório CERD6 e itens 61 e 80, "i" do relatório da
moradia adequada.7
Neste sentido, por exemplo, a Corte Interamericana de Direitos Humanos,
analisando situações de terras indígenas e de outras populações tradicionais, ao
interpretar o art. 21 da Convenção Americana de Direitos ( “Pacto San Jose da
Costa Rica), reconheceu que tal norma acarretava: a) proteção do direito de
propriedade em sentido que inclui o direito dos membros das comunidades
indígenas e tradicionais dentro do modelo de propriedade comunal8; b) o
reconhecimento da especial relação de tais povos com a terra como base
fundamental de sua cultura, vida espiritual, integridade e sobrevivência
econômica9, não meramente uma “questão de posse e produção”; c) a ocupação
tradicional por tais comunidades deve ser suficiente para obter do Estado o
reconhecimento de sua propriedade; d) o Estado deve delimitar, demarcar e
outorgar título coletivo do território de tais povos, em conformidade,
eventualmente, com seu direito consuetudinário e através de consultas prévias,
efetivas e plenamente informadas10; e) o Estado deve abster-se de realizar atos que
podem dar lugar a que outros afetem a existência, valor, uso ou gozo do território
a que tem direito os integrantes de tais comunidades; f) quando a propriedade
comunal e a propriedade privada individual entrem em contradição aparente ou
real, a Convenção Americana e a jurisprudência da Corte proporcionam pauta
para estabelecer restrições admissíveis ao gozo e exercício de tais direitos, devendo
o Estado avaliar, à luz de tais parâmetros, se é “necessária uma restrição a estes
direitos de propriedade privada para preservar a subsistência física e cultural” das
comunidades.11
4 http://www.unfpa.org/derechos/documents/relator_vivienda_brasil_04.pdf itens 70, 75, 88 e 80.b.
5 http://www2.ohchr.org/english/bodies/cescr/docs/publications/CESCR- Compilacion(1989-2004).pdf
6h ttp://www.unhchr.ch/tbs/doc.nsf/0/f23afefaffdb960cc1256e59005f05cc/$FILE/G0441073.pdf
7 http://www.unfpa.org/derechos/documents/relator_vivienda_brasil_04.pdf
8 Caso Comunidad Mayagna ( Sumo) Awas Tigni vs Nicarágua, 31 de agosto de 2001, parágrafos 148 e 149.
Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_79_esp.pdf.
9 Caso Comunidad Yakye Axa vs Paraguay, 17 de junio de 2005, párrafos 123 a 156. Disponível em: http://
www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_125_esp.pdf
10 Caso del Pueblo Saramaka vs. Surinam. 28 de noviembre de 2007. Disponível em:
http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_172_esp.pdf puntos resolutivos, número 5.
11 Idem, párrafos 127, 128 y 158.
Da mesma forma, a Convenção nº 169- OIT reconhece uma série de direitos
aos povos indígenas e “tribais”, nos termos da definição de seu artigo 1º, em que,
considerando as especificidades históricas e sociais e a relação especial com o
território, são plenamente aplicáveis às comunidades quilombolas. Ambos os
tratados internacionais foram firmados pelo Brasil, regularmente internalizados e,
pois, dotados, pelo menos, do caráter supra-legal, nos termos da jurisprudência
mais recente do STF, o que significa, portanto, a potencialidade de paralisar
qualquer norma interna que disponha em sentido diverso.12
Recorde-se, ainda, que a Corte Interamericana entendeu que: a) apesar de a
legislação interna do Suriname não reconhecer o direito à propriedade comum das
comunidades negras nem ter ratificado a Convenção 169-OIT, o fato de ter
assinado o Pacto internacional dos direitos civis e políticos era suficiente para
obrigar ao cumprimento da obrigação de proteção de tais comunidades;13 b) a
responsabilidade internacional dos Estados pode decorrer de atos ou omissões de
quaisquer dos poderes, independentemente de sua hierarquia e mesmo que o fato
violador provenha de norma constitucional;14 c) o Poder Judiciário deve ter em
conta não só o tratado, mas também a interpretação que dele tem feito a Corte.15
Isto coloca a necessidade de repensar a relação entre as normas definidoras
de direitos presentes na Constituição e nos tratados internacionais de direitos
humanos. Neste sentido, se faz necessário um “diálogo das fontes”, de forma a que
“a Constituição não exclui a aplicação dos tratados, e nem estes excluem a
aplicação dela, mas ambas as normas ( Constituição e tratados) se unem para servir
de obstáculo à produção normativa doméstica infraconstitucional que viole os
preceitos da Constituição ou dos tratados de direitos humanos em que a República
Federativa do Brasil é parte.”16
É que os tratados internacionais de direitos humanos preveem, no geral,
uma cláusula de prevalência da norma que seja mais favorável à proteção do ser
12 RE 466.343, Rel. Min. Cezar Peluso.
13 Idem, párrafo 93 y 94.
14 Caso La Última tentación de Cristo (Olmedo Bustos y otros) vs. Chile, de 05/02/2001, em que ficou
assentado que o Chile deveria “adequar suas normas constitucionais e legais aos standards de liberdade de
expressão consagrados na Convenção Americana” (parágrafo 91.2). Disponível em: http://spij.minjus.gob.pe/
informacion/coyuntura/Sentencias_CIDH/TrabajadoresCongreso/VOTO%20RAZONADO-GARCIA%20-
TRABAJADORES%20CESADOS%20DEL%20CONGRESO.pdf
15 Caso Almonacid Arellano y otros vs. Chile. 26/09/2006, em que ficou assentado que, quando um Estado
ratifica um tratado internacional, como uma Convenção, “seus juízes, como parte do aparato do Estado,
também estão a ela submetidos” e, portanto, “o Poder Judicial deve ter em conta não só o tratado, mas
também a interpretação que do mesmo tenha realizado a Corte Interamericana, intérprete última da
Convenção Americana” (párrafo 124). Disponível em:
http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_154_esp.pdf
16 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Tratados internacionais de direitos humanos e direito interno. São
Paulo: Saraiva, 2010, p. 214.
humano.17 Veja-se, por exemplo, o art. 29, “b”, da Convenção Americana dos
Direitos Humanos, os artigos 5. 2 e 46 do Pacto Internacional dos direitos civis e
políticos, os artigos 5.2 e 24 do Pacto Internacional dos direitos econômicos, sociais
e culturais, o art. 1.3 da Convenção internacional sobre a eliminação de todas as
formas de discriminação racial, os artigos 1º e 16.2 da Convenção internacional
contra a tortura e outros tratamentos humanos, cruéis e degradantes, os artigos 13
e 14 da Convenção de Belém do Pará. Em outros termos, a aplicação da norma que
17 O STF, recentemente, aceitou o “diálogo das fontes” e a máxima eficácia dos tratados internacionais:
E M E N T A: "HABEAS CORPUS" - PRISÃO CIVIL - DEPOSITÁRIO JUDICIAL -
REVOGAÇÃO DA SÚMULA 619/STF - A QUESTÃO DA INFIDELIDADE DEPOSITÁRIA -
CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (ARTIGO 7º, n. 7) - NATUREZA
CONSTITUCIONAL OU CARÁTER DE SUPRALEGALIDADE DOS TRATADOS INTERNACIONAIS
DE DIREITOS HUMANOS? - PEDIDO DEFERIDO. ILEGITIMIDADE JURÍDICA DA DECRETAÇÃO
DA PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL, AINDA QUE SE CUIDE DE DEPOSITÁRIO
JUDICIAL. - Não mais subsiste, no sistema normativo brasileiro, a prisão civil por infidelidade depositária,
independentemente da modalidade de depósito, trate-se de depósito voluntário (convencional) ou cuide-se de
depósito necessário, como o é o depósito judicial. Precedentes. Revogação da Súmula 619/STF. TRATADOS
INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS: AS SUAS RELAÇÕES COM O DIREITO INTERNO
BRASILEIRO E A QUESTÃO DE SUA POSIÇÃO HIERÁRQUICA. - A Convenção Americana sobre
Direitos Humanos (Art. 7º, n. 7). Caráter subordinante dos tratados internacionais em matéria de direitos
humanos e o sistema de proteção dos direitos básicos da pessoa humana. - Relações entre o direito interno
brasileiro e as convenções internacionais de direitos humanos (CF, art. 5º e §§ 2º e 3º). Precedentes. - Posição
hierárquica dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento positivo interno do Brasil:
natureza constitucional ou caráter de supralegalidade? - Entendimento do Relator, Min. CELSO DE MELLO,
que atribui hierarquia constitucional às convenções internacionais em matéria de direitos humanos. A
INTERPRETAÇÃO JUDICIAL COMO INSTRUMENTO DE MUTAÇÃO INFORMAL DA
CONSTITUIÇÃO. - A questão dos processos informais de mutação constitucional e o papel do Poder
Judiciário: a interpretação judicial como instrumento juridicamente idôneo de mudança informal da
Constituição. A legitimidade da adequação, mediante interpretação do Poder Judiciário, da própria
Constituição da República, se e quando imperioso compatibilizá-la, mediante exegese atualizadora, com as
novas exigências, necessidades e transformações resultantes dos processos sociais, econômicos e políticos que
caracterizam, em seus múltiplos e complexos aspectos, a sociedade contemporânea. HERMENÊUTICA E
DIREITOS HUMANOS: A NORMA MAIS FAVORÁVEL COMO CRITÉRIO QUE DEVE REGER A
INTERPRETAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO. - Os magistrados e Tribunais, no exercício de sua atividade
interpretativa, especialmente no âmbito dos tratados internacionais de direitos humanos, devem observar um
princípio hermenêutico básico (tal como aquele proclamado no Artigo 29 da Convenção Americana de
Direitos Humanos), consistente em atribuir primazia à norma que se revele mais favorável à pessoa humana,
em ordem a dispensar-lhe a mais ampla proteção jurídica. - O Poder Judiciário, nesse processo hermenêutico
que prestigia o critério da norma mais favorável (que tanto pode ser aquela prevista no tratado internacional
como a que se acha positivada no próprio direito interno do Estado), deverá extrair a máxima eficácia das
declarações internacionais e das proclamações constitucionais de direitos, como forma de viabilizar o acesso
dos indivíduos e dos grupos sociais, notadamente os mais vulneráveis, a sistemas institucionalizados de
proteção aos direitos fundamentais da pessoa humana, sob pena de a liberdade, a tolerância e o respeito à
alteridade humana tornarem-se palavras vãs. - Aplicação, ao caso, do Artigo 7º, n. 7, c/c o Artigo 29, ambos
da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica): um caso típico de
primazia da regra mais favorável à proteção efetiva do ser humano.” HC 96772, Relator(a): Min. CELSO DE
MELLO, Segunda Turma, julgado em 09/06/2009, DJe-157 DIVULG 20-08-2009 PUBLIC 21-08-2009
EMENT VOL-02370-04 PP-00811 RT v. 98, n. 889, 2009, p. 173-183)
seja mais favorável, mais protetora ou mais benéfica às vítimas e, pois,
beneficiárias dos tratados de direitos humanos.
A alegação de eventual falta de previsão constitucional para tanto ( poderse-
ia alegar princípios implícitos fundados no art. 4º, II, da Constituição) veio a ser
minimizada recentemente. É que o Decreto legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008,
internalizou a “Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência”, nos
termos do art. 5º, § 3º, da Constituição, ou seja, com status de equivalência de
“emenda constitucional”. E esta Convenção, agora incorporada com os mesmos
efeitos da emenda constitucional prevê, em seu art. 4, item 4, que: a) nenhum
dispositivo da Convenção “afetará quaisquer disposições mais propícias à
realização dos direitos das pessoas com deficiência, as quais podem estar contidas
na legislação do Estado parte ou no direito internacional em vigor para esse
Estado”; b) não haverá derrogação ou revogação de quaisquer direitos humanos e
liberdades fundamentais, “ sob a alegação de que a presente Convenção não
reconhece tais direitos e liberdade ou que os reconhece em menor grau”.
Se os direitos humanos são indivisíveis, como sustenta a doutrina, e a
previsão tem equivalência de emenda constitucional, é possível continuar
aceitando que tais regras de “primazia de norma mais favorável” somente se
aplicam às disposições envolvendo pessoas com deficiência e não aos demais
direitos constitucionalmente assegurados e também reconhecidos em tratados
internacionais de direitos humanos?
No julgamento da Extradição 1.085 ( o caso “Cesare Battisti”), o min. Peluso
afirmou que “é princípio capital da teoria e prática dos tratados” de que “não tem
nexo nem senso conceber que sejam celebrados para não ser cumpridos por
nenhum dos Estados contraentes”.18 Referia-se, é verdade, a um tratado de
extradição entre Brasil e Itália. Mas poderia ser um tratado envolvendo eliminação
da discriminação racial, direitos de povos indígenas, eliminação de discriminação
contra a mulher, comunidades tradicionais. Pensará o STF da mesma forma, agora
quando envolve a aplicação da Convenção nº 169-OIT e da Convenção Americana,
para as comunidades quilombolas?
César Augusto Baldi é mestre em Direito ( ULBRA/RS), doutorando
Universidad Pablo Olavide ( Espanha), servidor do TRF-4ª Região desde 1989 e
organizador de “Direitos humanos na sociedade cosmopolita” ( ed. Renovar, 2004).
18 Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginador/paginador.jsp?docTP=AC&docID=610034 p. 171.
http://ccr6.pgr.mpf.gov.br/documentos-e-publicacoes/docs_artigos/A_dicussao_juridica_dos_quilombos_no_STF.pdf
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