QUANDO O QUE FAZEMOS PASSA A TER IMPORTÂNCIA NA VIDA DAS PESSOAS, É HORA DE REDOBRAR OS ESFORÇOS. É A SENSAÇÃO QUE TENHO AO VER A MONOGRAFIA ABAIXO, DA MESTRANDA LUDMILA FERNANDES DE FREITAS, DA UFRRJ, SOBRE ALGUNS DOS 92 INQUÉRITOS CIVIS PÚBLICOS E PROCEDIMENTO INSTAURADOS PELO MINISTÉRIO PÚBLICO NO RIO DE JANEIRO A PARTIR DE REPRESENTAÇÃO DE ENTIDADES DO MOVIMENTO NEGRO, PARA EXIGIR A IMPLEMENTAÇÃO DA LEI 10.639, SOBRE A HISTÓRIA DA ÁFRICA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA NA ESCOLA PÚBLICA E PRIVADA. APÓS ISSO, A DENÚNCIA ESPALHOU-SE PARA TODOS OS 5.470 MUNICÍPIOS BRASILEIROS, NOS DEMAIS 26 ESTADOS, CONSTITUINDO VASTO CAMPO DE ESTUDOS PARA A UNIVERSIDADE, PARA ATUAÇÃO DO MOVIMENTO SOCIAL E AUTORIDADES DO ESTADO BRASILEIRO. É A MAIOR OPERAÇÃO JURÍDICA DE IMPLEMENTAÇÃO DAS LEIS 10.639 E 11.645, QUE ALGUNS INCAUTOS CHAMAM DE "CHUVAS DE AÇÕES", E QUE NA VERDADE TIRAM A LEI DO PAPEL. CHAMO DE "ADVOCACIA DE COMBATE". QUANTOS MUNICÍPIOS AINDA ESTÃO POR SEREM PESQUISADOS? HUMBERTO ADAMI
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"O que dizem Ministério Público, movimentos negros, organizações não
governamentais e as escolas acerca da aplicação da Lei de Educação
das Relações Étnico-Raciais e Ensino de História e Cultura Afro-
Brasileira e Africana (Lei 10.639)[1]"
Ludmila Fernandes de Freitas
Mestranda do Programa de Pós Graduação em Sociologia e Antropologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/UFRJ) - Brasil
_____________________________________________________________________
"A Denúncia
No dia 15 de março de 2005, o Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (IARA)[6], e
demais entidades de organizações não-governamentais e representantes dos movimentos negros[7],
ingressaram na sede do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro com uma “representação”[8]
(denúncia) por ausência da implementação da Lei 10.639/03. A representação foi assinada por
pessoas físicas e jurídicas, como: o escritor e professor aposentado Abdias do Nascimento, Edson
dos Santos, à época vereador e atual Ministro da Igualdade Racial e a deputada estadual Jurema
Batista.
A Representação requeria intimação de todos os diretores de escolas públicas e privadas em
todos os municípios do estado do Rio de Janeiro. Também foi requerido Termo de Ajustamento de
Conduta (TAC) para fazer com que as escolas incluíssem nos currículos escolares os conteúdos de
que trata a Lei 10.639/03[9].
Conforme exposto no documento da Representação, os signatários da denúncia encaminhada
ao MP vêem na aplicação desta Lei a possibilidade de “superação do sistema caótico produzido pela
estrutura de ensino racista presente na sociedade brasileira”.
A Lei 10.639/03 trata especificamente de “reescrever a História do Brasil”, conforme me
revelou em entrevista Humberto Adami. Em outras palavras, a Lei 10.639/03 permite por meio das
Diretrizes que a regulamentam reescrever a história do Brasil descrevendo as tensas relações entre
“brancos” e “não brancos”, tratadas durante muito tempo como harmoniosas. Como ressaltam os
representantes de alguns grupos dos movimentos negros essa história foi alijada dos livros e bancos
escolares e produziu nas representações dos brasileiros a imagem de um país harmonioso em suas
relações raciais, por meio da “ideologia da democracia racial brasileira”.
O que se lê nos autos
O procedimento metodológico adotado consistiu, sobretudo na análise das peças que
compõem o processo adminsitrativo (P.A)[10]. Parto da consideração de que os processos formais
são instrumentos-chave da regulamentação das acusações e sistemas que devem ser conhecidos em
si mesmos, ou seja, como “autos” e não como “atos”. Portanto, o que não está nos autos não pode
ser levado em consideração. O processo refere-se assim aquilo que contém. Aqui é pertinente a
discussão feita por Maggie (1992) a respeito “(d)o que vale o processo”. Se por um lado a natureza
das coisas que são ditas no processo refere-se aquilo que o mesmo contém, daí o ditado jurídico “o
que não está nos autos não está no mundo”, por outro lado os princípios que regulam estes discursos
também são princípios ordenadores de discursos da sociedade em geral. De forma que não seria
descabido inverter o ditado para “o que está nos autos está no mundo”.
Assim, ao longo da pesquisa, o processo foi avaliado como parte de um conjunto e não
apenas como peça única de evidência[11]. Em se tratando de uma pesquisa por meio de um tipo de
arquivo, como é o caso de um processo, tratei como relevantes as datas e eventos que
documentassem momentos-chaves da trajetória do objeto aqui analisado. A estruturação dos dados
que dei as informações obtidas junto aos arquivos do P.A trazem a construção de cronologias
espaço-temporais de eventos sócio-históricos. Como sugere Celso Castro (2008), a construção de
cronologias espaço-temporais podem facilitar as percepções de padrões e relações nos documentos
de arquivo. Dessa forma, o desdobramento no tempo e no espaço do processo em si bem como dos
indivíduos e movimentos sociais que dele fazem parte foram fundamentais para documentar
momentos-chaves da trajetória do “objeto”. Consoante a isto, “Não se deve perder de vista que a
pesquisa em fontes arquivísticas é um processo dinâmico no qual o pesquisador está continuamente
reconsiderando os dados que vai obtendo” (Castro, 2008:56).
Olívia Cunha (2005:12) observa que o arquivo, é um campo igualmente marcado pelos
encontros e relações diversas de conhecimento. Sendo assim, são imprescindíveis a realização de
entrevistas com promotores de justiça responsáveis pelos casos. Na análise das entrevistas pretendo
compreender as formas de aproximação e de afastamento das narrativas relativas a um novo projeto
de nação que vem sendo desenhado a partir da implementação da Lei 10.639/03.
Em 4 de abril de 2005 a Procuradora Geral da República do Rio de Janeiro, na época Maria
Cristina Manella Cordeiro, expediu ofício ao Secretário da Educação Básica (na época, Francisco
das Chagas Fernandes) sobre instauração do P.A para apurar o possível descumprimento da Lei
10.639/03 e solicitou a manifestação do mesmo quanto ao caso.
Três meses após, em 5 de julho de 2005, o secretário de educação encaminhou a
manifestação por intermédio da nota técnica informando que a solicitação foi encaminhada à
SECAD/MEC. Argumentava o então secretário de Educação Básica que fizeram assim “em razão
da Estrutura Regimental deste Ministério da Educação”. Ainda como justificativa, dizia o secretário
de Educação Básica que a Secretaria (SECAD/MEC)
tem por finalidade desenvolver, em âmbito nacional, programas e ações
que contribuam para a diminuição das desigualdades em educação e o
aprimoramento da qualidade educacional, bem com propor e incentivar ações de
apoio educacional para crianças e adolescentes em situações de discriminação e
vulnerabilidade social.
Sugeriu-se, portanto, que a SECAD/MEC fosse ouvida.
A SECAD/MEC respondeu ao Secretário de Educação Básica ponderando sobre a
necessidade de se esclarecer se o âmbito do questionamento do Ministério Público Federal para a
adoção de providências à implementação da Lei 10.639/03 referia-se ao Rio de Janeiro ou ao país.
Concluindo o secretário da SECAD/MEC Ricardo Henriques disse que: “para efeito desse parecer
inferimos tratar-se do descumprimento da Lei nos estabelecimentos de ensino público e privado
localizados no Estado do Rio de Janeiro.”
Também a SECAD/MEC discordou em relação à ausência de providências por ela tomadas
no sentido de fazer cumprir a Lei 10.639/03. Destacou as ações empreendidas e em curso para a
implementação da Lei 10.639/03 em nível federal e definiu-se assim como tendo responsabilidade
pela implementação desta através de ações como formação de profissionais de educação, promoção
de oficinas, materiais didáticos, dentre outros e não no sentido de gestão curricular nas escolas.
Segundo a SECAD seu papel é de:
Formular e implementar políticas públicas de diversidade e inclusão
educacional para os afro-brasileiros, contemplando as relações de gênero. Sua
missão é atuar em parceria com estados, municípios e sociedade civil organizada e
implementação e consolidação de políticas públicas em educação para a
valorização da diversidade étnico-racial, o combate ao racismo e a promoção da
equidade de gênero.
A SECAD disse ainda que poderia verificar e diagnosticar a realidade do Rio de Janeiro no
que se refere a implementação da Lei 10.639/03 junto à Secretaria de Estado da Educação do Rio de
Janeiro e promover “visitas técnicas” para dialogar com os responsáveis e identificar possíveis
dificuldades na implementação da Lei 10.639/03. Outro ponto que segundo a SECAD/MEC
precisava ser esclarecido era o sentido de descumprimento da Lei 10.639/03 (falta professor, falta
de livros específicos e etc?).
Em 9 de agosto de 2005 o Ministério Público Federal entendeu que cabe a ele mesmo a
apuração dos fatos em questão no âmbito das escolas do sistema federal de ensino. Quanto aos
demais estabelecimentos a atribuição para atuação é do Ministério Público do Estado. Assim,
expediu-se ofício ao Ministério Público do Estado e ao MEC a fim de que este informasse a relação
das escolas do sistema federal de ensino no estado do Rio de Janeiro.
Transcorridos seis meses do pedido feito pela Procuradoria da República (PR) ao
representante do MEC quanto à listagem das instituições de ensino federais no estado do Rio de
Janeiro somente foram informados os contatos das seguintes instituições: Colégio Pedro II, Centro
Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ) e Colégio de Aplicação
da UFRJ (CAp UFRJ). Foram justamente estas as primeiras instituições oficiadas em 24 de abril de
2006 com solicitação de informações acerca da “implementação do ensino da referida matéria” no
âmbito das respectivas instituições de ensino federais.
Em 5 de dezembro de 2006, a Procuradora Márcia Morgado Miranda, instaurou o Inquérito
Civil Público (ICP) “com a finalidade de apurar o possível descumprimento, pelos estabelecimentos
mantidos pela União Federal no Rio de Janeiro, das disposições da Lei 10.639/03”.
Dentre as diversas justificativas para a instauração do ICP estão as seguintes:
CONSIDERANDO que a dignidade da pessoa humana não pode ser
considerada apenas sob o aspecto individual, sendo fundamental, outrossim, a luta
pelo respeito à dignidade de todos os grupos e minorias étnicas que compõem
o panorama cultural da nação (grifo meu).
(ICP PR/RJ Nº 26/26, p.1)
CONSIDERANDO que, consoante o art. 215, da Constituição Federal,
compete ao Estado garantir a promoção e o acesso à cultura nacional, devendo ser
implementadas ações pertinentes no sentido de conduzir à valorização da
diversidade étnica (grifo meu).
(ICP PR/RJ Nº 26/26, p.2)
CONSIDERANDO que foi constatado, através de ofícios expedidos, que,
a princípio, as instituições federais até então diligenciadas não vêm contemplando
adequadamente as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, tendo estas
sido parcial ou integralmente negligenciadas.
(ICP PR/RJ Nº 26/26, p.4)
O que se lê nas narrativas
O promotor Marcelo Lessa Bastos (2ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva do Núcleo de
Campos) foi o primeiro promotor do Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro a manifestar-se
a respeito do pedido de abertura de ICP[12] contido na Representação e aceitá-lo com vistas a
“apurar possível descumprimento da Lei 10639/03”[13]. O comunicado foi remetido ao noticiante
da Representação, Humberto Adami no dia 25 de abril de 2005 e o pronunciamento da decisão
veiculado no diário oficial da prefeitura de Campos dos Goytacazes de 23 de junho de 2006[14].
Em 15 de outubro de 2008 foi realizada uma audiência pública na sede do MP de Campos.
Estiveram presentes Humberto Adami, uma representante da Secretaria de Educação e Cultura, o
prefeito de São Francisco de Itabapoana e o Procurador do Município. Nesta audiência, conforme
sugerido pelo noticiante da denúncia Humberto Adami, foram assinados Termos de Ajustamento de
Conduta (TAC) com dois municípios do estado do Rio de Janeiro (São Francisco de Itabapoana e
São Fidélis) e com as escolas privadas de São Fidélis.
Na entrevista que realizei com o promotor Marcelo Lessa Bastos em 25 de maio de 2009, ele
destacou o que considera ser uma “dificuldade” na implementação da Lei 10.639/03:
A implementação da lei cria uma certa dificuldade porque ela não obriga
a criação de uma cadeira. Ela é meio que programática. Parece que é meio
que “pra inglês ver”, meio que “carta de intenções”. Ela parece que é meio assim,
pra agradar, mas também sem querer se preocupar muito, se aprofundar... ela não
manda criar uma cadeira. Ela diz que deve ser incluído dentro da grade curricular,
das matérias de história, salvo engano, educação artística e tal, aspectos que digam
respeito a cultura afro. Mas como é que você vai aferir isso? Está dentro da
autonomia do professor. Eu lembro que eu coloquei isso para o Dr. Humberto. Eu
não posso entrar em sala de aula e dizer para o professor o que ele deve fazer.
Então o que eu posso checar é se na grade, no conteúdo programático das
disciplinas, tem lá o tópico previsto.
No decorrer da entrevista, o promotor deu seu parecer a respeito de promotores que
arquivaram o ICP por considerarem a lei 10.639/03 inconstitucional:
É inegável que nós temos uma conexão muito grande com os africanos, afinal nós
importávamos eles na condição de escravos no início da nossa colonização. E
também é mais do que razoável que se renda uma homenagem a tudo que nós
fizemos por esse povo [...] Incluir um ponto na disciplina história para falar da
cultura africana no Brasil, a mim não parece inconstitucional. Pelo contrário, a
mim parece razoável.
O Promotor de Justiça Titular da 2ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva do Núcleo
Friburgo[15], Daniel Faretto Barbosa foi o primeiro promotor a manifestar-se contrário ao pedido
de providências a respeito da implementação da Lei 10.639/03. A “promoção de arquivamento” data
de 29 de março de 2007. Poucos dias depois, em 2 de abril de 2007, este mesmo promotor
recomendou ao então secretário de educação do estado do Rio de Janeiro, Nelson Maculan Filho,
que não cumprisse a Lei 10.639/03, “ante a sua manifesta inconstitucionalidade”[16].
Segundo o promotor, as diligências não prosseguiram pelos seguintes motivos[17]:
Primeiramente, é de duvidosa constitucionalidade impor-se o ensino de
determinada matéria, específica – determinando-se inclusive o conteúdo da
disciplina – às escolas não federais, tendo-se em vista o que dispõe o art. 209, I, c/c
o 206, II da Constituição da República.
Sob o aspecto formal, é de se frisar que cabe a lei traçar normas gerais da
educação nacional – conforme dispõe o referido art. 209, I, da Constituição – e não
disciplinar com minúcias as disciplinas a serem ministradas, com os
respectivos conteúdos programáticos, como o faz a lei 10.639/03.
Mais adiante, o promotor coloca que
Análise mais responsável do art. 26- A da lei de diretrizes e bases da educação,
inserido pela referida Lei 10.639/03, revela que o dispositivo contém uma
discriminação às avessas, algo que parece ter virado modismo nos atuais governos
populistas e irresponsáveis do país. É que a pretexto de valorizar a participação dos
negros na formação política do Brasil, a lei acaba por discriminar essa participação,
a ponto de impor que ela seja estudada separadamente do resto da história do país.
(...)
Ora, quando se estuda a história do Brasil, estuda-se inexoravelmente a
contribuição dos negros na formação da nossa sociedade. Afinal, nos primeiros
capítulos dos livros de história, fala-se, necessariamente, da principal mão-de-obra
utilizada na colônia portuguesa além-mar, qual seja, a mão-de-obra escrava dos
negros trazidos da África.
No desenvolvimento da colônia, estuda-se indissoluvelmente a relevante
participação do escravo africano nas colônias e em outras atividades que se
destacaram na economia colonial.
Resposta semelhante foi dada por uma renomada escola federal do Rio de Janeiro a
procuradora na República no Rio de Janeiro: “Embora sem aplicar formalmente a lei, não deixamos,
entretanto, de cumpri-la, pois ao longo de sua já longa história, a contribuição do negro na formação
de nossa sociedade jamais foi negligenciada.”
Segundo Daniel Favaretto, a Lei 10.639/03
parece fazer parte de um novo contexto de medidas, que, partindo da
premissa equivocada de que o Brasil é um país bicolor – e não ricamente
miscigenado, como ocorre -, estabelece distinções desproporcionais em relação aos
negros, quando o critério de discriminação não é a cor, mas a pobreza de negros,
brancos e pardos.
Cumprir a lei versus formar identidades
Embora ambos os promotores reconheçam a importância da presença dos negros na formação
da sociedade brasileira, os rumos diferenciados que tomaram os ICPs nos dois casos (no primeiro,
assinatura de TAC pelas escolas e no segundo, promoção de aquivamento do ICP) expressam
formulações diferenciadas a respeito dos projetos de nação.
Enquanto o promotor de Campos Marcelo Lessa vê na Lei 10.639/03 a possibilidade de
rendermos uma “homenagem” ao “povo africano”, o promotor de Friburgo Daniel Favaretto vê a lei
como uma “discriminação às avessas” ao impor uma participação discriminada, separada, dos
negros na história do país como se eles não fizessem parte dela. O promotor também arriscou uma
possível conseqüência da implementação dessa Lei, que segundo ele, divide a história do Brasil em
uma “história de negros” e uma “história de brancos”, seja o “surgimento do ódio racial
generalizado, hoje inexistente no país”.
As justificativas deste promotor para não apuração do dispositivo legal no município de
Nova Friburgo e conseqüente “promoção de arquivamento” do ICP estão fortemente relacionadas a
uma matriz cultural que concebe a nação brasileira a partir do “encontro” de três grupos: o branco, o
índio e o negro. O promotor de Campos parece partir no mesmo pressuposto, porém concebe a
cultura africana como uma “cultura dos negros brasileiros” que deve ser “homenageada” por meio
da cultura africana no Brasil.
O incômodo descrito pelo promotor de Friburgo com relação a esta proposta de “nação
multicultural” contida nas diretrizes da Lei 10.639/03 e a importância do “reconhecimento” e
valorização da cultura africana no Brasil, como salientou o promotor de Campos, ilustram o conflito
decorrente da concorrência de diferentes interpretações acerca das relações raciais no Brasil e
conseqüentemente, de diferentes projetos de nação.
A discussão sobre a implementação da Lei 10.639/03 está relacionada a duas diferentes
concepções de nação brasileira. Não há posições unívocas entre promotores de justiça, escolas e
representantes de movimentos sociais a respeito de sua aplicabilidade. Por um lado, formula-se a
existência de uma “diversidade cultural”, destacando-se as especificidades de uma “cultura negra”
no Brasil. De outro, permanece uma visão mais “clássica” do Brasil como uma nação concebida a
partir da “mistura”.
O que pude verificar analisando as peças do processo administrativo é que ademais, dos
diferentes fatores que os movimentos sociais apontam como “descumprimento” e “inoperância” da
Lei 10.639/03 (descaso das instituições, desinformação, preconceito ou falta de formação de
professores, por exemplo) a discussão sobre a aplicabilidade da Lei 10.639/03 está relacionada a
diferentes concepções de nação brasileira. Há um descompasso entre o que as escolas consideram
ser a implementação da Lei 10.639/03 e o que a SECAD e o advogado Humberto Adami, como
noticiante da Representação, consideram ser a forma “correta” de aplicação.
A Lei 10.639/03 é compreendida por uma das instituições federais de ensino
oficiadas, e até mesmo pela Procuradoria Geral da República (PGR), como uma
“disciplina autônoma” (“História da África”), quando o Parágrafo 2° do artigo 26-
A diz que “Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão
ministrados no âmbito de todo currículo escolar, em especial, nas áreas Educação
Artística e de Literatura e Histórias Brasileiras”. Estamos, portanto, diante de
diferentes compreensões e interpretações em relação ao modo sobre como as
escolas devem proceder à implementação da Lei 10.639/03. Além disso, há uma
grande discussão em torno de quem deve ser responsabilizado pelo
“descumprimento” da Lei.
No dia 27 de abril de 2009, a procuradora Márcia Morgado Miranda, responsável pelo
procedimento administrativo, solicitou a Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão, Gilda
Pereira de Carvalho, autorização para prorrogação do prazo do Inquérito Civil Público por mais um
ano, para que sejam concluídas as diligências restantes.[18]
Referências Bibliográficas
[6]O IARA, criado em 2003 atua nas áreas de Direito Racial e Ambiental, destacando suas ações e debates sobre a
responsabilidade social/ambiental e o racismo com foco na promoção e defesa dos direitos da população afro-brasileira,
tanto no espaço urbano (relações raciais em educação, mercado de trabalho e ações afirmativas), bem como sobre as
comunidades remanescentes de quilombo, comunidades negras rurais e também apoiando juridicamente clandestinos
africanos. Humberto Adami dos Santos Júnior é presidente do IARA e Adami Advogados.
[7] Dentre estas estão representantes de entidades do movimento negro e organizações não-governamentais: Instituto de
Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO), Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (CEAP), Casa
de Cultura da Mulher Negra, Central Única das Favelas do Rio de Janeiro (CUFA), Movimento Negro Unificado
(MNU), CRIOLA, Federação Nacional dos Advogados (FeNAdv) e Educação e Cidadania de Afrodescendentes e
Carentes ( EDUCAFRO).
[8] Como ressalta Maggie (1992), a primeira característica dos processos criminais brasileiros é a sua instauração a
partir da denúncia. Ela é fundamental para a lógica dos processos.
[9]Em 18 de março de 2005 foi instaurado no Ministério Público Federal do Rio de Janeiro o P.A de tutela coletiva
n°1.30.012.000134/2005-10 a fim de apurar o possível descumprimento da Lei 10.639/03.
[10] O chamado “processo administrativo” é a via pela qual a constituição brasileira tem
consagrado
LEIA A TESE NA ÍNTEGRA EM
Bela pesquisa de mestrado de Ludimila, cujo objeto de pesquisa foi extremamente atual e altamente pertinente. Adami e as organizações negras que apoiaram o IARA merecem todo o reconhecimento da sociedade brasileira, e esta pesquisa é uma das facetas deste reconhecimento. Parabéns a todos.
ResponderExcluirSandra Martins - Cojira-Rio