A última instância das cotas raciais           
02/03/2010 13:52:27
                           Políticas Sociais: O STF inicia a análise da ação do DEM contra  a UnB
A reserva de vagas para estudantes negros foi adotada  em universidades públicas há ao menos dez anos, mas somente agora o  debate sobre a adoção do sistema de cotas chegará ao Supremo Tribunal  Federal (STF). O ministro Ricardo Lewandowski convocou uma audiência  pública sobre o tema entre os dias 3 e 5 de março. Trata-se do passo  inicial do julgamento de uma ação movida pelo Partido Democratas  (ex-PFL) contra a Universidade de Brasília (UnB), que reserva 20% das  vagas abertas em seu vestibular para estudantes negros,  independentemente da classe social a qual pertençam.
O resultado  do julgamento, apostam especialistas, terá impacto sobre o sistema de  seleção de todas as universidades públicas do País. Também pode acelerar  ou contribuir para a derrocada das iniciativas parlamentares de criar  um amplo sistema de cotas sociais e raciais nas universidades federais,  uma discussão que patina no Congresso desde que as primeiras propostas  do gênero foram adotadas por iniciativa das próprias instituições de  ensino.
Para os defensores da medida, a esperança é que os  ministros do STF tenham o mesmo entendimento que a maioria dos  magistrados da primeira instância e dos tribunais de Justiça, que  consolidaram nos últimos anos uma jurisprudência favorável às cotas em  vários estados brasileiros. É o que revela um estudo recém-concluído  pelo Laboratório de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio  de Janeiro (Uerj). O estudo mostra que, em 2003, quando as universidades  estaduais fluminenses adotaram o sistema de cotas, ao menos 400  mandados de segurança foram impetrados por alunos que perderam a vaga no  ensino superior para alunos cotistas. Destes, 161 foram concedidos  liminarmente pela Justiça. Mas, um a um, acabaram por terra.
Em  novembro do ano passado, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio  de Janeiro manifestou-se pelo mérito da questão: concluiu que as cotas  eram constitucionais. “Com o tempo, todas as liminares foram cassadas e  os estudantes pararam de contestar na Justiça o resultado do vestibular  com base no ingresso dos alunos cotistas”, comenta o advogado Renato  Ferreira, pesquisador da Uerj e responsável pelo estudo. “Este fenômeno  não se restringe ao Rio. Ao adotar as cotas, a Universidade Federal do  Paraná sofreu ao menos 140 ações do gênero. Hoje, os casos são  raríssimos. O mesmo identificamos em Alagoas, na Bahia, em Santa  Catarina, no Rio Grande do Sul. O Judiciário, tido como um poder  conservador, está reconhecendo a legitimidade das políticas  afirmativas.”
Até o fim de 2009, ao menos 93 universidades  adotavam algum tipo de cota. Entre elas, as que usavam algum tipo de  recorte racial chegavam a 67. A advogada Roberta Fragoso Kaufmann,  autora da ação do DEM contra o sistema de cotas da UnB, esclarece que o  partido não questiona a legitimidade da reserva de vagas a alunos  egressos de escolas públicas ou para estudantes de baixa renda. “Não  somos contra as cotas sociais. O que contestamos é a inclusão de  critérios raciais, o que abre um precedente perigoso de criação de leis  no Brasil baseados na diferenciação pela cor da pele.” Pupila de Gilmar  Mendes, Roberta Kaufmann foi orientada pelo próprio presidente do STF no  mestrado sobre a necessidade de políticas afirmativas no Brasil.
As  cotas raciais encontram resistência mesmo entre representantes do  Movimento Negro, como o advogado José Roberto Militão, integrante da  Comissão de Assuntos Antidiscriminatórios da OAB-SP. “O Estado não deve  legislar sobre o conceito de raça, porque, dessa forma, ele reconhece e  outorga uma nova identidade jurídica, baseada na cor da pele, que viola a  dignidade humana”, afirma. “As cotas legitimam a segregação racial. E,  nessa esdrúxula hierarquia racial, os negros são vistos como inferiores,  alvos prioritários da assistência. Isso é degradante, acaba com a  autoestima dos jovens negros.”
Para Fábio Konder Comparato,  professor aposentado da Universidade de São Paulo, o sistema de cotas é  um passo necessário para começar a reparar séculos de exploração e  marginalização da população negra. “Os pretos e pardos representam 70%  da faixa dos 10% mais pobres. Os trabalhadores negros recebem, em média,  a metade do salário dos brancos. Além disso, 58% da população branca  tem acesso ao Ensino Médio, ao passo que a participação dos negros é de  apenas 37%”, comenta. “Isso significa que estamos descumprindo a  Constituição, porque ela prevê a erradicação da pobreza e a redução das  desigualdades. E o Estado tem feito muito pouco para reduzir o abismo  social que separa os negros dos brancos.”
Segundo Comparato, é  absurda a tese de que o sistema de cotas vai provocar ódio racial.  “Justiça é tratar desiguais na medida da desigualdade. É por isso que a  Constituição prevê, por exemplo, proteção às mulheres no mercado de  trabalho. E ninguém diz que é uma Constituição sexista ou que promove a  guerra dos sexos”, afirma. “Ainda se propagandeia essa falácia da  democracia racial no Brasil, simplesmente porque o preconceito, aqui, é  dissimulado, enrustido. Mas os dados que citei são de fontes oficiais.  Isso é real.”
Na avaliação do frei franciscano David Santos,  fundador e presidente da ONG Educafro, que oferece cursos preparatórios  para negros ingressarem na universidade, as cotas são medidas  emergenciais, que devem durar de 10 a 15 anos. “Seu objetivo é o de  despertar a sociedade para que se abra e execute a igualdade material,  saindo da igualdade formal, que é mentirosa e sempre beneficiou um único  segmento da nação”, afirma. “É uma reparação com o nosso passado  escravocrata e com a marginalização dos negros até hoje.”
O  professor José Jorge de Carvalho, do Departamento de Antropologia da  UnB, concorda com a avaliação. “Foi por entender que o racismo é crônico  na sociedade brasileira e em todas as classes sociais que a UnB optou  por oferecer cotas raciais. E, para comprovar o descompasso, basta  observar alguns indicadores. Segundo o censo universitário de 2000,  apenas 12% dos nossos alunos eram pretos ou pardos, apesar de os negros  representarem mais da metade da população brasileira.” Mas por que cotas  raciais, e não sociais? “Nesse mesmo ano identificamos 400 alunos que  recebiam auxílio-moradia da universidade, justamente por serem mais  pobres. Sabe quantos eram negros? Apenas dez”, explica Carvalho.
::  Confira durante a semana entrevistas com defensores e opositores das  cotas raciais
http://www.cartacapital.com.br/app/materia.jsp?a=2&a2=6&i=6144
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