INJÚRIA RACIAL »                  Comerciante cospe no rosto de copeira, xinga-a  de "negra safada" e acaba preso         Família diz que ele tem problemas  psiquiátricos                           
         
Mara Puljiz
Publicação: 30/04/2010 08:39
Uma cuspida na cara seguida de  xingamento de “negra safada”. Assim foi agredida a copeira Hilda (nome  fictício), 41 anos. A senhora de cabelos crespos e pele negra estava  sentada em um dos bancos do ônibus da empresa Viva Brasília, que fazia a  linha L2 Norte/Rodoviária do Plano Piloto, quando ouviu a humilhação do  homem de pele branca. O episódio ocorreu por volta das 11h de ontem. O  comerciante André Luiz Soares Nasser, 35 anos, foi preso em flagrante  pela Polícia Militar, após um passageiro indignado ter segurado o  agressor, impedindo-o de descer do coletivo. O caso foi parar na 5ª  Delegacia de Polícia (Setor Bancário Norte) e na ouvidoria da Secretaria  Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da  República (Seppir). André Nasser foi indiciado pelo crime de injúria  racial qualificada (veja o que diz a lei) e lesão corporal. Se  condenado, pode pegar até quatro anos de prisão. A família alegou na  delegacia que ele sofre de problemas psiquiátricos.
 
Moradora de Sobradinho II,  Hilda seguia rumo ao trabalho, na Esplanada dos Ministérios, quando foi  surpreendida pelo comerciante. Segundo ela, André entrou no ônibus, na  altura da 610 Norte, sem pagar passagem e sentou-se alguns bancos à  frente, do lado esquerdo do ônibus (ela estava do lado direito). “Do  nada, ele virou de lado, olhou para a minha cara e cuspiu em mim me  chamando de negra safada”, contou. No fundo do ônibus, um passageiro  negro reagiu à ofensa e foi recebido a socos pelo comerciante. “Meu  sentimento foi de raiva. Era como se minha própria mãe estivesse ali  sentada e ouvisse aquele absurdo”, disse o passageiro, que segurou  sozinho o comerciante da 610 até a Rodoviária, onde o acusado foi preso.  No momento, além do motorista e do cobrador, havia quatro passageiros  no ônibus.
Apoio
O caso mobilizou  representantes do Conselho de Defesa dos Direitos dos Negros (CDDN) , da  Secretaria de Justiça do DF, bem como da Presidência da República, que  compareceram à delegacia para prestar apoio à vítima. Segundo a Seppir,  casos como o de Hilda não são incomuns. Em todo o país, são mais de sete  mil denúncias de racismo por mês. No DF, chegam pelo menos 20 registros  dessa natureza, mensalmente, na ouvidoria da Seppir. Para o ouvidor da  secretaria, Humberto Adami Santos Júnior, trata-se de um crime. “Isso  acontece todos os dias, mas o importante é essa reação das pessoas, de  registrarem a ocorrência”, disse. Segundo ele, ainda existe resistência  das autoridades policiais em registrar esse tipo de agressão, como o  racismo. “No fim das contas, poucos casos são levados a juízes e, mesmo  na esfera judicial, o processo acaba não sendo levado adiante”,  reclamou.
O delegado-chefe da 5ª DP, Laércio Rosseto, entendeu  que André Nasser feriu a honra da copeira, mas não teve a intenção de  menosprezar a raça negra. “A tolerância é zero para crimes dessa  natureza. Ele utilizou elementos subjetivos para ofender a honra dela. A  intenção não foi de cometer um crime contra a raça negra(1)”,  explicou. Para Humberto Santos, o enquadramento foi apropriado. “O  importante é que houve uma atitude da vítima em denunciar e, na prática,  o indiciamento foi satisfatório, porque, de qualquer forma, serve de  exemplo para que casos desse tipo não se repitam”, destacou. Ao deixar a  delegacia, Hilda estava com os olhos vermelhos de tanto chorar. “Me  senti humilhada. Até agora, não acredito que isso aconteceu comigo. Foi  uma agressão moral”, disse, com a voz embargada. Morador da Asa Norte,  André Nasser foi encaminhado ontem mesmo para o Departamento de Polícia  Especializada, ao lado do Parque da Cidade.
1 -  Abolição
A escravidão dos negros no Brasil teve início com a produção  da canavieira, no século XVI, após várias tentativas frustradas de  escravizar os índios, que eram protegidos pelos jesuítas. Naquela época,  era necessário trabalho humano para realizar a empreitada e os  africanos foram decisivos na evolução do país. Foram escravos até 13 de  maio de 1888, quando houve a abolição pela Lei Áurea (nº Lei 3.353).
Do  nada, ele virou de lado, olhou para a minha cara e cuspiu em mim, me  chamando de negra safada”
"Me senti  humilhada. Até agora, não acredito que isso aconteceu comigo. Foi uma  agressão moral"
Hilda, 41 anos, copeira
Palavra  de especialista
A consciência negra vem se expandindo. No  passado, só era esperada a atitude de um ativista negro, mas hoje em dia  a comunidade tem percebido a crueldade do racismo e está disposta a  denunciar. No Brasil, o racismo não é camuflado. Posso dizer que no país  o racismo é cínico, porque muitas vezes as pessoas estão convencidas de  que não são racistas, mas, na prática, existe uma contradição do que  elas dizem do que elas fazem. As pessoas também tratam a questão como se  ela fosse menos importante. Uma forma cínica, por exemplo, é a tal  “piada do negão”. O negro tem sido objeto desse humor, que só  desqualifica e empobrece.
Nelson Inocêncio,  coordenador do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros da Universidade de  Brasília (Neab/UnB)
Memória
Condenado  por racismo
3 de setembro de 2009
A 2ª Turma Criminal do  Tribunal de Justiça do DF condenou, por unanimidade, Marcelo Valle  Silveira Mello, 24 anos, por crime de racismo na internet. A Justiça  determinou pena de um ano e dois meses de reclusão em regime aberto. Em  junho e julho de 2005, Mello teria usado palavras como “burros”,  “macacos”, “vagabundos”, “subdesenvolvidos” e “sujos”, em uma possível  referência à raça negra. A defesa do jovem alegou que ele fazia  tratamento psicoterápico e que usava medicamento controlado. Segundos os  advogados, a intenção do rapaz era apenas mostrar seu posicionamento  contra o sistema de cotas raciais adotado para o ingresso na  Universidade de Brasília (UnB). Antes, a primeira instância da Justiça  tinha absolvido o acusado.
O QUE DIZ A LEI
A  injúria racial é cometida quando a ofensa de conteúdo discriminatório é  empregada à pessoa (ou pessoas) determinada. Exemplo: chamar alguém de  negro fedorento, judeu safado, alemão azedo, etc. É crime previsto no  artigo 140, parágrafo 3º do Código Penal Brasileiro. Já o de racismo  está previsto no artigo 20 da Lei nº 7.716/89. É aplicado quando as  ofensas não são direcionadas à pessoa, e sim quando elas menosprezam  determinada raça, cor, etnia, religião ou origem. Exemplo: negar emprego  a uma pessoa por causa da cor da pele ou por ela seguir uma doutrina. O  crime de racismo é imprescritível e inafiançável. No caso de crime de  injúria racial, o réu pode responder em liberdade, desde que ele pague a  fiança. Enquanto no crime de racismo há a lesão do princípio da  dignidade, no de injúria há lesão da honra subjetiva da vítima. A pena  para os dois casos varia de um a três anos de reclusão, além de multa  estipulada pelo juiz.
COMO DENUNCIAR
Denúncias  de racismo podem ser feitas pelo telefone 0800-6441508 ou na ouvidoria  da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da  Presidência da República pelo número 3411-3695
Ministro  quer rigor na punição
A notícia do crime racial deixou  estarrecido o ministro-chefe da Secretaria Especial de Políticas de  Promoção da Igualdade Racial (Seppir), Eloi Ferreira. Em entrevista ao  Correio, o ministro classificou a atitude do comerciante como “uma  agressão hostil” e pediu rigor na punição de André Nasser. “É  inadmissível o que aconteceu. Não ofendeu só o negro, mas ofendeu toda  uma nação”. Para Ferreira, houve crime de racismo contra Hilda,  diferentemente do entendimento do delegado Laércio Rosseto. “Estamos  trabalhando para que o enquadramento correto seja aplicado no âmbito do  Judiciário. Esperamos que na etapa seguinte isso possa ser revertido,  mas de qualquer maneira houve um avanço singelo no que diz respeito ao  crime racial”, avaliou.
Na visão do ministro, um dos maiores  desafios enfrentados pelo negro hoje é a inclusão no mercado de trabalho  e na ocupação de cargos importantes. “Precisamos acelerar as políticas  públicas para consolidar a democracia no nosso país de tal sorte que os  negros e as negras tenham autoestima e sonhem em ocupar os mais altos  cargos.” O ministro também ressaltou que, no Brasil, o racismo não é  mais tolerado pela sociedade. “Estamos vivendo um processo de construção  da igualdade”, destacou.
A maioria dos cerca de 188 milhões de  brasileiros é negra. Segundo a última Pesquisa Nacional por Amostra de  Domicílios (Pnad), divulgada no ano passado pelo Instituto Brasileiro de  Geografia e Estatística (IBGE), embora tenha sido registrada redução de  0,7 ponto percentual no número de pessoas que se declararam negras de  2007 para 2008, essa população representa 6,8% do total. (MP) 
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