"Sim, é necessária uma nova Abolição" Por Milena Almeida e Angélica Basthi em 15/12/2009
"Cabe lembrar que `nova Abolição´ é um lema que, apesar de ter sido elaborado na década de 1920, não está totalmente obsoleto. Os afro-descendentes ainda se encontram em posição de desvantagem em relação às pessoas brancas no Brasil." (Petrônio Domingues)
Em 27 de outubro, o        professor-doutor Muniz Sodré publicou um artigo no site        Observatório da Imprensa cujo título era        "É necessária uma nova Abolição?". No        artigo, Sodré        critica o tratamento tendencioso da grande imprensa na cobertura sobre        Ações afirmativas – mais especificamente as cotas universitárias – e        questiona a opção dos "jornalões" em favorecer a publicação de conteúdo        contrário ao sistema.
Ocorre que, no dia 03 de novembro, Demétrio        Magnoli, colunista de veículos conceituados como a revista Época e o        jornal Folha de S. Paulo, publicou uma "resposta" desrespeitosa intitulada        "Matem os escravistas" onde ataca Sodré        com ironia. Com um discurso enviesado, Magnoli deprecia os argumentos de        Sodré e o árduo trabalho que vem sendo construído pelo movimento negro        brasileiro na luta contra o racismo ao longo da história do Brasil. Numa        suposta tentativa de criticar o "método" utilizado por Sodré, Magnoli        menospreza a "consistência interna" do texto de Muniz, segundo ele,        causado pelo seu posicionamento ideológico, e classifica o discurso de        Sodré como "violência verbal".
Melhores        argumentos
É no mínimo espantoso reconhecer que        alguém que ostenta um título acadêmico como o Sr. Demétrio Magnoli nega        para si mesmo e para a opinião pública a existência de injustiças        originadas pelo racismo enraizado na estrutura da sociedade brasileira.        Reza a máxima que o título acadêmico deveria garantir maior capacidade de        análise dos fatos sociais.
É igualmente espantosa a cegueira que o        Sr. Demétrio representa – e hoje é seu principal porta-voz – ao negar        sistematicamente a existência do desequilíbrio no caráter dos artigos e no        conteúdo das reportagens publicadas nos veículos da grande imprensa        brasileira.
Em sua "resposta", o Sr. Demétrio desafia Sodré a        provar este suposto desequilíbrio. Magnoli ignora o fato de que        determinados veículos da grande mídia propõem uma agenda-setting        unilateral e, com isso, contribuem para o desaparecimento do princípio da        imparcialidade na imprensa, tão caro à sociedade brasileira. É impossível        acreditar hoje em dia que os veículos de comunicação são unanimemente        éticos e imparciais. Um dos grandes problemas desta premissa é encobrir o        fato de que algumas opiniões editoriais invadem o campo das matérias e        reportagens, que deveriam ser imparciais. Ao invés destes veículos de        comunicação terem como foco o serviço de utilidade pública, acabam se        transformando em juízes e algozes da realidade que nos cerca.
Se        antes de escrever vorazmente contra as ações afirmativas – e duvidar da        veracidade e do compromisso ético de acadêmicos dignos de todo respeito        como Muniz Sodré –, o Sr. Magnoli deveria ter recorrido às pesquisas        acadêmicas que estão sendo realizadas neste momento. Talvez assim ele        apresentasse melhores argumentos para duvidar da existência de um        posicionamento parcial de alguns setores da grande imprensa no        Brasil.
Trata-se ou não de        desequilíbrio?
Os pesquisadores João Feres e        Veronica Daflon, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro        (IUPERJ), por exemplo, realizaram recentemente uma análise dos textos        publicados pela revista Veja sobre as ações afirmativas entre 2001 e 2009.        Foram analisados 66 textos e artigos sobre o tema de janeiro de 2001 a        junho de 2009, sendo 39% colunas assinadas e 38% reportagens.
Deste        total, 77% continham avaliações negativas sobre as ações afirmativas        raciais e apenas 14% favoráveis. Se tivesse feito essa consulto, o Sr.        Demétrio descobriria, por exemplo, que deste universo, 19 reportagens são        contrárias às ações afirmativas e apenas três são favoráveis. Em relação        às colunas na revista Veja no período, 20 foram contrárias e apenas quatro        favoráveis. Trata-se ou não desequilíbrio?
Feres e Daflon        identificaram que a partir de 2005, quando as políticas de cotas estão        consolidadas no ensino superior público do país, as raras manifestações        favoráveis às ações afirmativas simplesmente desapareceram da revista        Veja.
Feres e Daflon analisaram ainda os títulos e suas mensagens        explícitas na revista neste período. Um dos exemplos são os títulos "O        grande salto para trás" e "Cotas para quê?", ambos publicados em 2005. Ou        ainda a reportagem em 2007 sobre o caso de um professor da Universidade de        Brasília acusado de racismo, cujo título era "A primeira        vítima".
Todos os títulos já evidenciavam a parcialidade nua e crua        da revista Veja. O artigo do colunista Diogo Mainardi, cujo título era "O        quilombo do mundo", demonstra a sua dita "criatividade" a serviço da        intolerância como "o Brasil macaqueou o sistema de cotas raciais dos        Estados Unidos" ou sobre "a chance para acabar de vez com o quilombolismo        retardatário que se entrincheirou no matagal ideológico das universidades        brasileiras". Trata-se ou não de desequilíbrio?
Nomenclatura de assuntos        investigados
Vamos agora aos "jornalões". Um estudo        realizado pelo pesquisador Kássio Motta para o Instituto de Artes e        Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (UFF) analisa o caso        do jornal O Globo no período de março de 2002 a julho de 2004. De acordo        com o levantamento, no total foram publicados 55% de textos negativos e        15% de textos positivos sobre as cotas. Neste contexto estão 34% de        matérias negativas contra 6% positivas, e 66% de editoriais e artigos        negativos contra 34% positivos. Outra vez questionamos: trata-se ou não de        um desequilíbrio?
Outra pesquisa, desta vez encomendada pelo CEERT        ao Observatório Brasileiro de Mídia, observou os jornais Folha, Estado e        Globo, dos quais se extraiu 972 textos publicados entre 1º de janeiro de        2001 e 31 de dezembro de 2008, além de 121 textos veiculados pelos        semanários Veja, Época e IstoÉ, totalizando, portanto, 1.093 escritos –        incluindo reportagens, editoriais, artigos e colunas.
Os assuntos        investigados foram agrupados a partir da seguinte nomenclatura: cotas nas        universidades; ação afirmativa; quilombolas; estatuto da igualdade racial;        diversidade racial (incluindo racismo, discriminação racial, etc.) e        religiões de matriz africana.
Leitura        indispensável
Fechando o foco nos textos de        jornais, cinco tópicos merecem especial atenção:
1) desagregando-se        o tema das cotas nas universidades, os textos opinativos somaram, no caso        da Folha, cerca de 28% do total de ocorrências, sendo evidente a        freqüência mais alta das reportagens em comparação com as        opiniões;
2) examinando-se os textos opinativos da Folha sobre        cotas nas universidades, 46,7% posicionaram-se abertamente contrários,        número elevado, mas não configuram a totalidade das opiniões;
3) o        Globo sobressai em relação aos seus concorrentes no que se refere a uma        orientação anticotas mais organizada e institucionalizada, tendo sido o        único jornal em que os textos opinativos foram mais freqüentes do que as        reportagens – 53,1% e 28,1% respectivamente, quando o assunto é cotas nas        universidades;
4) as pesquisas ocupam apenas 5% dos textos e são        aludidas quase que exclusivamente nas reportagens (83%), aparecendo muito        raramente nos textos opinativos (8,3%);
5) a parcialidade da mídia        impressa suscita preocupação inclusive nos seus próprios mecanismos        internos de fiscalização, o que pode ser ilustrado por uma manifestação        emblemática do ombudsman da Folha publicada em meados de        2006.
Portanto, quando Sodré questiona sobre uma nova Abolição, não        se trata de um "pressuposto factual falso", como diz o Sr. Demétrio.        Provavelmente, este Sr. desconhece toda leitura indispensável para        construir um argumento com seriedade, tais como o livro A nova Abolição        (2008), do historiador Petrônio Domingues. Na obra, é possível aprender        que a expressão foi citada pela primeira vez no dia 13 de maio de 1924,        como manchete principal do primeiro número do jornal O Clarim da Alvorada,        importante veículo da história da imprensa negra no período.
A luta pelos direitos        fundamentais
Já naquela ocasião a defesa de uma        nova Abolição propunha uma transformação radical na sociedade brasileira        para garantir a justiça e a igualdade racial. Quase 90 anos depois, essa        expressão mantém sua mensagem viva. O Brasil continua com o desafio de        garantir a justiça e a igualdade de direito para todos.
Vale        lembrar também que Muniz Sodré está amparado por uma clarividência        histórica acompanhando por extensa lista de pensadores, pesquisadores e        intelectuais como Kabenguele Munanga, Abdias Nascimento, Sueli Carneiro e        tantos outros.
É por isso que nós, afro-descendentes, integrantes        do movimento negro, profissionais de imprensa, intelectuais e acadêmicos        declaramos publicamente que Muniz Sodré desfruta do nosso total apoio        neste posicionamento em favor da pluralidade de opiniões e reportagens nos        "jornalões" e demais veículos de comunicação sobre as ações afirmativas,        em especial, sobre as cotas nas universidades públicas. Lembrando que        resta ainda uma longa caminhada até atingirmos a plenitude do princípio da        igualdade no Brasil. Jamais haverá igualdade onde as pessoas se encontram        em condições desiguais na luta pelos seus direitos        fundamentais.
**************
[Este artigo é endossado por        Julio Tavares, doutor em Antropologia - University of Texas at Austin;        Roberto Martins, ex-presidente IPEA no governo FHC; Carlos Alberto        Medeiros, jornalista, mestre em ciências jurídicas e sociais e coordenador        CEPPIR-RJ; Amauri Mendes Pereira, professor sociologia da UEZO-RJ; Frei        Davi Santos, OFM e diretor executivo Educafro; Diva Moreira, cientista        política; Alexandre Nascimento, professor FAETEC/RJ; Jonicael Cedraz        Oliveira, professor UFBA; Fabiana Lima, doutoranda UFBA; Claudia Miranda ,        doutora em educação UERJ; Uelington Farias Alves, jornalista e escritor;        Daise Rosas Natividade, psicóloga e doutoranda da UFRJ; Humberto Adami,        Ouvidor-Geral Seppir; Luis Fernando Martins da Silva, advogado e professor        de Direito e membro IAB; Maria da Consolação Lucinda, doutoranda        Antropologia Social Museu Nacional/UFRJ; Augusto Bapt, músico; Marcos        Romão, cientista social e diretor da Rádio Mamaterra, Hamburgo; Marcelo        Barbosa, mestrando em educação UERJ; Vera Daisy Barcellos, jornalista/ RS;        Zilda Martins, mestranda comunicação e cultura ECO/UFRJ; Ana Cristina        Macedo de Souza, mestranda políticas públicas FGV-RJ/EBAPE; Carlos Nobre,        professor PUC/RJ; Nilo Sergio S. Gomes, jornalista; Jacques Edgard        François; Flavio Gomes; Jorge da Silva; Claudia Fabiana Cardoso; Carlos        Douglas Martins P. Filho; CEPPIR –RJ; CEERT; COMDEDINE; EDUCAFRO; ABRAÇO;        Cojira-Rio; Cojira-DF; Cojira-BA; Cojira-AL; Cojira-PB; Núcleo de        Jornalistas Afro-Brasileiros do Rio Grande do Sul; Movimento Novos Rumos;        Fórum Paraibano Promoção Igualdade Racial; Agência        Afro-Latina-Euro-Americana de Informação (ALAI); Associação Brasileira de        Pesquisadores/as pela Justiça Social (ABRAPPS); Comitê de Luta pela        Igualdade Racial e Democratização da Comunicação do FNDC-BA; Fórum        Mulheres Negras DF; Movimento Negro Unificado DF; Centro de Cultura e        Estudos Étnicos Anajô; Coletivo Entidades Negras (CEN); ACEC - Associação        Cultural Embaixada das Caricatas; IPCN - Instituto de Pesquisa das        Culturas Negras]
Publicado no Observatório da Imprensa em 15.12.2009       
Nenhum comentário:
Postar um comentário