quinta-feira, 9 de julho de 2009

Pelos mesmos direitos do imigrante

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POLÍTICA DE COTAS Pelos mesmos direitos do imigrante

Roberto de Carvalho (*)

"...que a justiça seja como um rio, que não pára de correr."

Palocci, Mantega, Dulci, Berzoini, Rosseto e Gushiken. Estes são sobrenomes de brilhantes ministros do governo petista, descendentes de italianos e japoneses. Como chegaram ao Palácio do Planalto, símbolo do poder máximo do país, superando os Silva, Oliveira e Santos, sobrenomes mais comuns de famílias pobres no Brasil, em geral, de descendentes de africanos ou portugueses pobres? A resposta é simples: os bisavós dessas estrelas petistas foram beneficiados pelo que chamamos aqui de "cota estrangeira". Isto é, uma política imigratória produzida pelo Estado e fazendeiros entre o fim do século 19 e os anos 40 do século passado, que beneficiou principalmente mais de três milhões de portugueses, italianos, alemães e japoneses que vieram trabalhar na agricultura da Região Sul e Sudeste, atraídos pelas possibilidades de ascensão numa terra nova e promissora. Foi mais de meio século de políticas afirmativas pró-estrangeiros.

Naquela época, nenhum setor da inteligência brasileira objetou que estava sendo dado tudo aos imigrantes e nada aos afrodescendentes que, recém-libertados da escravidão, enchiam as periferias das cidades porque não receberam terras – como prometeram os abolicionistas – nem escola, educação, atendimento médico e outras necessidades básicas da cidadania. Enquanto os europeus e orientais prosperavam no cultivo das melhores terras, os afrodescendentes ocupavam apenas os setores já previamente previstos para eles: o dos trabalhadores braçais mal pagos ou dos ambulantes sem garantia trabalhista nas ruas das cidades brasileiras.

Hoje, por exemplo, causa espécie ao mundo civilizado – e principalmente à grande imprensa – a reação de setores médios intelectualizados em relação à adoção de cotas para negros nas universidades brasileiras. Estes setores – muito deles com sobrenomes estrangeiros – pouco se recordam das polpudas políticas de ação afirmativa internacional do Brasil para os imigrantes entre 1886 e 1940. Neste sentido, é importante demonstrar por que tudo isso ocorreu.

Sem possibilidade de deter o novo sistema capitalista, e prevendo que teria que empregar a antiga mão-de-obra gratuita escrava, os fazendeiros, articulados com o Estado, resolveram investir na importação de trabalhadores estrangeiros para o campo. Naquele momento, setores intelectuais produziam estudos demonstrando a inferioridade do negro em relação aos brancos. Havia o temor de que a sociedade brasileira se tornasse mais negra do que já era. Por isso, europeus eram vistos como racialmente superiores, mais qualificados e capazes de "branquear" a sociedade brasileira, como conta Thomas Skidmore em Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento (Paz e Terra, 1976).

Pagando passagens, construindo centros de recepção, cedendo terras e incentivos de toda ordem, o Brasil conseguiu, depois de mais de meio século de importação estrangeira, criar e fazer prosperar descendentes europeus e japoneses, que, hoje, trabalham nos setores mais dinâmicos e produtivos do país, enquanto a maioria dos afrodescendentes continua sobrevivendo com trabalhos desqualificados, que não conduzem à prosperidade.

Entre meados do século 19 até os anos 30 do século 20, o governo brasileiro lançou maciça campanha publicitária nos jornais europeus oferecendo excelentes condições a quem quisesse imigrar para o Brasil. A campanha foi feita em parte nos jornais Il Seculo e Seculo 19, de Gênova, além de Paese, La Discussione e Mattino, de Nápoles.

Logo, as autoridades comemoraram os resultados, pois, no início da campanha, entre 1884/1888, o número de imigrantes no país passou de 23.574 para 132.070, um aumento de 573%! Já em 1906, no Rio de Janeiro, havia 210.515 estrangeiros entre os 811.443 habitantes. Entre esses estrangeiros, 133.393 eram portugueses, representando 16% da população. Do fim do século 19 até 1941, o Brasil recebeu 188.986 portugueses, de acordo com pesquisadores de imigração.

Segundo Skidmore, os fazendeiros que quisessem instalar imigrantes europeus em suas terras gozariam de benefícios garantidos por lei. Em 1886, em São Paulo, fazendeiros criaram a Sociedade Promotora da Imigração, com polpudos recursos públicos e privados para recrutar italianos, pagando suas passagens e providenciando trabalho nas plantações. "O governo usava fundos públicos para financiar o recrutamento de mão-de-obra imigrante através de um consórcio de fazendeiros ricos, cujo chefe era Martinho Prado Junior", escreve Skidmore.

Elites, compartilhem

O negócio da mão-de-obra imigrante era tão promissor que empresas estrangeiras firmavam contratos com o governo brasileiro para trazer ao Brasil a mão-de-obra para o campo. Em 1º de dezembro de 1912, o governo mineiro celebrou contrato com o italiano Camilo Cresta para trazer 10 mil trabalhadores italianos para o Brasil. O governo do estado concedia lotes de terra a seus novos habitantes. O Decreto nº 777, de 1/9/1894, por exemplo, incentivava a criação de núcleos coloniais urbanos para os imigrantes em Minas Gerais. Pela lei estadual 202, de 18/9/1894, aos colonos italianos que estavam há sete anos no Brasil era concedido título definitivo das terras. A Lei nº 32, de 7/7/1896, criou mais seis núcleos coloniais para imigrantes alemães, portugueses e italianos. Em Minas, até 1896, 70% dos imigrantes são italianos. O programa de subsídios à importação de braços para a agricultura, que foi mantido até 1926 em São Paulo – quando a mão-de-obra estrangeira já era suficiente para a demanda no campo –, não permitia a entrada de asiáticos e africanos, somente com autorização do Congresso Nacional, sob condições estipuladas. Na época, imigrantes negros americanos foram impedidos de entrar no Rio de Janeiro, o que já demonstrava o caráter racial da legislação imigratória.

Sidney Chalhoub, em Trabalho, lar & botequim, mostra que o descendente de africano, que não é objeto de nenhuma ação cidadã do Estado, passa ser então objeto de repressão da ordem republicana, pois a nova ideologia do trabalho assalariado exige vigilância e repressão contínuas para estabelecer seu projeto de nação. Por isso, todo o foco das polícias sempre foi a repressão ao negro vadio e desempregado – como até hoje ocorre. Ou seja, hoje a tentativa da comunidade negra de ser tornar mais cidadã e integrada à sociedade brasileira encontra barreiras político-ideológicas, já que, como estamos "carecas" de saber, trata-se do grupo étnico mais violentado da história do Brasil.

Se o Brasil produziu uma poderosa ação afirmativa atravessando dois séculos para diversas etnias estrangeiras, por que não repeti-la com a comunidade negra, já que os próprios estudos de agências governamentais (Ipea, IBGE) vêm clamando por isso? E como ficam os opositores das cotas se, para chegar à universidade, os negros nem sequer dispõem de condições, pois suas escolas vivem atravessadas de tiros, faltam dinheiro, roupas, passagem e alimentação para sua manutenção? Só Deus sabe o que passaram os afrodescendentes que conseguiram chegar às universidades. As elites brasileiras devem deixar de receber só pra si mesmas e compartilhar com os demais cidadãos as riquezas da nação que os negros e carentes ajudaram – e continuam a ajudar – a construir.

Estereótipos da pobreza

A imprensa passa a cumprir papel retrógrado, virando propagandista do racismo cordial brasileiro, colocando-se ao lado dos privilégios históricos da parcela da população beneficiada pela invisibilidade dos negros e pela alegada ilegitimidade da reparação das desigualdades sociais, que tentam naturalizar (e perpetuar), como agora, ao tentar justificar que a pobreza não tem cor.

Sou autor de ação na OEA, em que processo o Brasil pelo crime de escravidão, e nela proponho a criação de uma força-tarefa educacional, pela qual universidades públicas país afora instalem núcleos de otimização educacional, como forma de corrigir as desigualdades acumuladas ao longo dos 350 anos em que escravos africanos ficaram sem direitos, só com obrigações. Hoje, seus descendentes merecem, no mínimo, uma compensação pelo que lhe foi negado.

Mas o racismo mostra com mais veemência a sua cara, atacado que foi numa das bases de seus privilégios. A campanha contra as cotas revela até o interesse das escolas privadas e do monopólio dos cursinhos de pré-vestibular caríssimos – possuidores de gordas fatias do mercado publicitário nos veículos de comunicação –, ao verem reduzidas as suas margens de aprovação.

No século 19 vimos o Estado brasileiro incentivar grupos étnicos europeus para embranquecer o país. Nesta empreitada, estes grupos receberam terras e subsídios do governo para se instalarem no país. Hoje estão aí, como parte do Brasil legal, sendo os distintos cidadãos. Os afrodescendentes querem os mesmos incentivos, para deixarem de ser o estereótipos da pobreza – na mídia, na história oficial, nos livros. Isto não é decente. Neste conturbado início do século 21, a sociedade brasileira precisa rever seus conceitos e corrigir os erros do passado.

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