quarta-feira, 18 de março de 2009

A DECISÃO DO TRT DE BRASÍLIA SOBRE DISCRIMINAÇÃO RACIAL NOS BANCOS PRIVADOS

Processo:
00936-2005-012-10-00-9 RO
(Acordão 1ª Turma)
Origem: 12ª VARA DO TRABALHO DE BRASÍLIA/DF
Juiz(a) da Sentença: ALEXANDRE NERY R. DE OLIVEIRA
Relator(a): Desembargadora ELAINE MACHADO VASCONCELOS NIENCZEWSKI
Revisor(a): Desembargador ANDRÉ R. P. V. DAMASCENO
Redator(a): Desembargador ANDRÉ R. P. V. DAMASCENO
Julgado em: 28/02/2007
Publicado em: 30/03/2007
Recorrente:Sindicato Dos Empregados em Estabelecimentos Bancários de Brasília
Advogado: José Eymard Loguércio
Recorrido:HSBC Bank Brasil S.A. - Banco Múltiplo
Advogado: Víctor Russomano Júnior
Recorrido:Ministério Público do Trabalho
Advogado: Otávio Brito Lopes
Acórdão do(a) Exmo(a) Juiz OSWALDO FLORÊNCIO NEME JUNIOR
Publicado em 30/03/2007
  • EMENTA
  • DISCRIMINAÇÃO NA CONTRATAÇÃO DE EMPREGADOS. PROVA FUNDADA EM DADOS ESTATÍSTICOS. IMPOSSIBILIDADE. Não se pode imputar a uma empresa a prática da discriminação racial pela simples observância de incongruência na formação de seu quadro de empregados em relação à composição populacional do Estado, quando se sabe que este falha violentamente no respeito aos direitos e garantias fundamentais, e mais especificamente no tocante à formação educacional, negando semelhantes oportunidades de desenvolvimento aos cidadãos.
  • RELATÓRIO
  • Nos termos do art. 150, parágrafo 1º do Regimento Interno desta Corte, é do seguinte teor o relatório aprovado em sessão: "O Exmº Juiz Alexandre Nery de Oliveira, da 12ª Vara do Trabalho de Brasília-DF, por meio da sentença de fls.638/663, complementada pela decisão prolatada em sede de embargos declaratórios de fls.698/705, julgou improcedente a ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho, à qual foi admitido o Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos Bancários de Brasília, na qualidade de assistente do autor. O Sindicado dos Bancários e o Ministério Público do Trabalho interpõem recurso ordinário às fls.676/697 e fls. 742/862, respectivamente. O Réu ofertou contra-razões às fls.872/882. O Ministério Público do Trabalho manifestou-se às fls. 887/889, requerendo a reautuação do processo para registrar sua condição de recorrente e pelo prosseguimento regular do feito, posto que sua condição de autor da ação inviabiliza sua manifestação quanto ao mérito da demanda. É o relatório."
  • VOTO
  • ADMISSIBILIDADE É do seguinte teor o voto de admissibilidade proferido pela Exma. Juíza Relatora e acatado pela Turma: "Atendidos os pressupostos de admissibilidade, conheço dos recursos ordinários do autor e do assistente." MÉRITO A Exma. Juíza Relatora considerou a ocorrência de discriminação a partir das evidências trazidas pelo Autor. Eis o teor do voto proferido pela Exma Juíza Relatora: "A DISCRIMINAÇÃO NA SOCIEDADE BRASILEIRA .Conforme relatado na sentença, o Ministério Público do Trabalho ajuizou ação civil pública contra HSBC BANK BRASIL S.A. - BANCO MÚLTIPLO, acusando o réu de prática discriminatória contra negros, mulheres e idosos, quanto à contratação; remuneração e ascensão funcional. Requereu seja determinado ao réu a cessação da discriminação contra as mulheres (ascensão funcional e remuneração), contra os negros (admissão, ascensão funcional e remuneração) e contra pessoas maiores de 40 anos (admissão), sob pena de multa diária de R$100.000,00 (cem mil reais) e condenação do réu no pagamento de R$30.000.000,00 (trinta milhões de reais), por danos morais coletivos. O Exmo. Juiz Alexandre Nery de Oliveira considerou insuficientes os dados estatísticos apresentados, aduzindo haver equívocos interpretativos por parte do autor e ausência de provas concretas hábeis a formar sua convicção pela existência das discriminações alegadas. Fundamentou sua decisão também na inexistência de lei que obrigue as empresas a adotarem regime de cotas na contratação de seus empregados. Pois bem. Trouxe o Ministério Público do Trabalho o Poder Judiciário Trabalhista, em especial a 10ª Região, para o centro de tema secular na sociedade brasileira - a discriminação social - atualmente em foco no debate sociológico em um de seus desdobramentos: a política de cotas como instrumento das ações afirmativas. A ação posta pelo Ministério Público é abrangente: trata da discriminação sofrida ou impingida aos trabalhadores negros (discriminação racial); às mulheres trabalhadoras (discriminação de gênero) e aos trabalhadores com idade acima de 40 anos (discriminação etária), em todos os seus desdobramentos. A questão em discussão é sobretudo política - de políticas públicas - razão pela qual diz respeito mais diretamente aos Poderes Legislativo e Executivo. Nesta seara, noticiou a "Agência Câmara" - órgão de imprensa da Câmara dos Deputados -,em 5.9.2006, a ocorrência de reunião entre a Comissão de Direitos Humanos e Minorias daquela instituição, com representantes da Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN), do Ministério Público do Trabalho; do Tribunal Superior do Trabalho; da Frente Parlamentar pela Igualdade Racial e da Educafro (rede de pré-vestibulares comunitários para negros e pessoas carentes). Da reunião resultou o consenso da necessidade de mapeamento da diversidade racial e social no setor bancário, para analisar a admissão, a ascensão, a remuneração e a idade dos funcionários. Trataram, pois, dos temas desta ação civil pública. Pois bem. Se o fórum adequado à discussão é o acima definido, qual o papel do Poder Judiciário nesta questão? Ao meu ver, o Judiciário brasileiro tem idêntica responsabilidade aos demais Poderes. Primeiro, porque o sistema democrático é assentado na tríplice divisão montesquiana de poder - Judiciário, Legislativo e Executivo -, independentes e harmônicos entre si (CF, art. 2º). Logo, o Judiciário não é uma massa inerte que só reage quando provocada. O Poder Judiciário tem poder e papel político a serem exercidos e aos quais não pode renunciar sob pena de enfraquecer o próprio regime a que dá sustentação. Assim definido, as ações coletivas são o terreno fértil e adequado à participação do Poder Judiciário nos grandes problemas nacionais, responsável que é por propiciar a toda a sociedade brasileira uma ordem jurídica justa. Esta atuação não se confunde com aquilo que alguns chamam de "ativismo jurídico". Como há muito já anotou ADA PELLEGRINI GRINOVER, "nas demandas coletivas, o próprio papel do magistrado modifica-se, enquanto cabe a ele a decisão a respeito de conflitos de massa, por isso mesmo de índole política. Não há mais espaço, no processo moderno, para o chamado ‘juiz neutro' - expressão com que freqüentemente se mascarava a figura do juiz não comprometido com as instâncias sociais" ("A Marcha do Processo", Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2000, p. 57). E o Judiciário não está imune a este movimento, conforme demonstra o documento de fls. 692/693, da EDUCAFRO, trazendo sínteses de notícias veiculadas no informativo ANAMATRA nº 77 "Anamatra defende política de emprego para negros"; nos sites do STJ, Seminário "A Justiça e a Promoção da Igualdade Racial no STJ"; da UNB - "UnB e STJ juntos pela inclusão" e manifestação do TST por intermédio de seu ex-presidente Min. Wantuil Abdala. Quando se fala em discriminação no Brasil, a primeira idéia que nos vem à mente é a discriminação racial. Embora mais abrangente, não se vinculando à cor da pele, como são exemplos o nazismo, as lutas religiosas (católicos X protestantes, judeus X muçulmanos), servos e croatas, etc., no nosso contexto social a discriminação incutida no inconsciente coletivo brasileiro remete à dicotomia branco x negro. Todavia, em sentido oposto, levantam-se vozes que sustentam vivermos no Brasil uma democracia racial. Assim não haveria espaço na nossa sociedade para comportamentos discriminatórios, típicos de outras regiões do planeta. A auxiliar o debate, começo invocando o Jornal "Correio Braziliense", para trazer o relato da recente experiência vivida por SÉRGIO MAZZO, publicada sob o título "CÍRCULO MACABRO": ‘Três histórias recentes me perturbam. Não foram noticiadas pelos jornais, pertencem ao âmbito da vida corriqueira. Fui testemunha acidental das duas primeiras. A outra, estava de corpo presente. Em comum, elas me deixaram em estado de silêncio, aquele em que as palavras ficam no meio do caminho. Até pouco tempo, não conseguia entrelaçá-las, apesar de todas terem como mote o preconceito em sua natureza mais cruel. Até que encontrei a peça mais difícil do quebra-cabeça. A cadeia se fechou. Na ordem dos acontecimentos: Caso 1. Noite de sexta-feira em supermercado chique do Sudoeste. Cinco garotos que há pouco atingiram a permissão para badalar nas madrugadas compram bebidas alcoólicas. Estampam felicidade. Brincam, riem, tagarelam. Um deles, o mais falante, encontra a venda um guia da Copa do Mundo. Na capa, Ronaldinho Gaúcho estampado, em close e de torso nu. Com olhar auspicioso, o rapaz dirige-se ao grupo. "Olha só! Vejam que chimpanzé. Ninguém merece!" Todos gargalham em cumplicidade. Caso 2 . Noite de quinta-feira em tradicional bar da Asa Sul. Numa mesa, amigo gay apresenta um rapaz branco a um mulato também gay. Os três travam conversa animada que dura pouco mais que 10 minutos. Em aparente desacordo de opiniões, o rapaz branco se levanta de súbito e vai em direção à quadra comercial. Exaltado, o mulato aumenta o tom de voz. "Bando de nordestinos. Comia calango assado no sertão antes de vir para Brasília. Agora que chegou aqui, faz pose de gente". Caso 3 . Tarde de um dia qualquer da semana em café do Sudoeste. Encontro a revista do Ronaldinho Gaúcho na prateleira. Mostro o exemplar a grupo de caros amigos. A mesa, uma única estranha, que veio de Fortaleza (importante capital nordestina). Ela reage subitamente. "Vamos concordar que essa foto comprova a teoria de que evoluímos mesmo dos macacos." O preconceito se fechou em círculo macabro. Dos meninos de classe média ao negro famoso. Do quase negro gay de classe média ao nordestino. Da mulher nordestina de classe média ao mesmo negro famoso. Muitas minorias envolvidas, todas historicamente oprimidas. Uma desrespeitando a outra, num salve-se quem puder, numa selva de pedra. Como as palavras sumiram de novo, então que atire a primeira pedra aquele que não tem preconceitos!' (pág. 20, publicada em 13 de julho de 2006, sérgio.mg@correioweb.com.br). No mesmo Jornal, em 7 de agosto de 2006, foi publicado editorial intitulado "Racismos e privilégios nossos de cada dia", que expressa a opinião de JOSÉ ANTÔNIO MORONI, Diretor de Relações Institucionais da Associação Brasileira de ONGs (Abong). Pontua o autor: "O Brasil é um país estranho e complexo. Pesquisa realizada em 2004 apontava que somente 4% dos entrevistados se reconheciam racistas, mas, contraditoriamente, 87% reconheciam a existência de racismo no Brasil. Se somente 4% se reconheciam racistas, onde está "guardado" o racismo dos 92%? Essa conta não fecha." (...) Informa o autor que a pesquisa referenciada serviu de base à campanha de 2005 "Onde você guarda o seu racismo?". Assinala o missivista: "Pergunta instigante e que faz pensar. Faz pensar porque no Brasil o racismo é ainda um tema tabu, ou periférico, na agenda política. Faz-nos pensar nas ações cotidianas de racismo que presenciamos e nos calamos ou achamos tão naturais que não mais percebemos. Por que isso? Porque não somos capazes de nos indignar com esse massacre cotidiano, permanente, explícito de desrespeito ao princípio elementar da vida societária, que é o direito de não ser discriminado. Porque não somos capazes de perceber que a pobreza no Brasil tem cor, ela é negra (64% da população de baixa renda é negra), é feminina (uma mulher negra ganha quatro vezes menos que um homem branco) e que quase 80% do jovens assassinados entre 16 e 24 anos são negros. Onde está a razão disso tudo?" Onde está nosso racismo é efetivamente uma pergunta instigante, especialmente quando nos recusamos a admitir sua existência. A respeito da negativa sistêmica de nossos preconceitos, interessante artigo foi publicado por SALLY LEHMAN na Edição Nº 50, de julho de 2006, na Revista Scientific American Brasil, e disponível na internet (www.sciam.com.br) sob o título "PRECONCEITO IMPLÍCITO", relatando estudos da psicóloga social da Universidade de Harvard, MAHZARIN BANAJI acerca de percepções distorcidas que raramente admitimos ter. Relata a autora uma atividade prática realizada pela psicóloga que usando humor, inteligência e simpatia, vem alertando executivos sobre os equívocos causados por preconceitos arraigados: "Mahzarin Banaji brigava com o projetor de slides quando começaram a entrar no auditório os executivos do New Line Cinema - o estúdio de cinema de Los Angeles que produziu a trilogia Senhor dos Anéis. Eles não pareciam muito animados. Haviam sido informados de uma palestra sobre diversidade que incluiria alguns vídeos. "Minha expectativa era de tédio total", admitiu Camela Galano, a presidente da empresa. No intervalo, no entanto, amontoaram-se em torno da palestrante não só os executivos da New Line como também vários outros da HBO (ambas as empresas são subsidiárias da Time Warner). A psicóloga social da Universidade Harvard começara a palestra com uma série de imagens que denunciavam alguns truques da mente. Um dos vídeos mostrava um grupo de pessoas trocando passes de basquete. Dos 45 expectadores, apenas um percebeu a mulher que andava lentamente pelo meio do grupo carregando um guarda-chuva branco aberto. Depois de mais alguns exemplos, Banaji convenceu-os de que esse tipo de engano de percepção ocorre o tempo todo, sobretudo em atitudes inconscientes ‘É compreensível e racional', disse Banaji à platéia. "E é um erro." Segundo ela, nós até podemos querer ser justos, mas a mente trabalha a despeito de nossa vontade, fazendo conexões e ignorando informações contraditórias. De fato, em um teste rápido, os executivos rapidamente associaram palavras positivas à empresa à qual estão ligados, a Time Warner. Em contrapartida, tiveram dificuldades de fazer o mesmo em relação à Walt Disney - a principal concorrente. E ficaram espantados ao descobrir a mesma tendência em relação a faces humanas. Termos positivos foram associados às feições européias; os negativos recaíram sobre as de ascendência africana." (grifei). A mencionada psicóloga estuda atitudes implícitas e seus efeitos sociais desde o fim dos anos 80, quando foi trabalhar na Universidade de Washington com o grupo de Anthony Greenwald, o criador do primeiro teste de associação implícita (IAT, na sigla em inglês), que consiste em medir a rapidez com que as pessoas apertavam teclas no computador em resposta a coisas que apareciam na tela. Como resultado, palavras positivas como "feliz" ou "paz", eram associadas a imagens de flores; palavras negativas, como "podre" e "feio", perfilavam-se ao lado de insetos. O passo seguinte dos pesquisadores foi testar palavras e imagens associadas a etnias, ocasião na qual constataram que reações automáticas dos participantes não estavam de acordo com a postura que eles afirmavam ter. O método em questão ganhou destaque rapidamente dentre as metodologias usadas na pesquisa em psicologia social. (O teste está disponível no site www.implicit.harvard.edu.implicit). Prossegue a autora relatando que, segundo BANAJI, "o preconceito é comum, está oculto e continua ativo fora do plano consciente, mesmo em pessoas com visão de mundo genuinamente igualitária. Ao dar-se conta do poder das atitudes inconscientes nas tomadas de decisão no dia-a-dia, o grupo decidiu levar isso a público. Qualquer pessoa pode realizar os testes pela internet (implicit.harvard.edu/implicit) e descobrir, por exemplo, se prefere inconscientemente o novo ao velho, o magro ao gordo. O site contém ainda IATs que incluem associações entre países e culturas, como Índia/hindus e Paquistão/muçulmanos." (Grifei). Como costuma acontecer nestes casos, o método sofreu questionamentos da comunidade acadêmica. As situações acima narradas - o caso concreto, a pesquisa realizada e o trabalho psicológico, demonstram que, regra geral, somos todos discriminadores, apenas diferenciando-se os níveis de discriminação em cada situação da vida. A discriminação racial é apenas uma das múltiplas faces do gênero discriminação - etária, de gênero, de condições físicas, de origem, de sexualidade, etc. Onde estaria a origem da discriminação na sociedade brasileira? Segundo os historiadores e sociólogos, dentre outros fatores, seria a escravidão a base da discriminação brasileira. Conhecida pela humanidade desde a antiguidade, cujo exemplo mais conhecido é a escravização dos hebreus, a escravidão tinha por justificativas as guerras e as dívidas, dentre outras. Para o historiador brasileiro, JACOB GORENDER, autor do clássico "O Escravismo Colonial", a escravidão teve grande força social na antiguidade clássica, sobretudo na área de influência greco- romana dissolvendo-se e desaparecendo com a derrocada do Império Romano e a emergência da sociedade feudal na Europa. A era dos descobrimentos, resultado das grandes navegações, permitiu o estabelecimento de uma relação planetária entre os povos e a descoberta da América, em especial, converteu esta no cenário geográfico do renascimento da instituição escravista em larga escala, envolvendo muitos milhões de indivíduos ao longo de três séculos. ("O Brasil em Preto e Branco", Livre Pensar, Ed. Senac, SP, 2000, pp. 19/20). Ironicamente, o capitalismo recém implantado no continente europeu, que forçou a adoção do trabalho livre para sobreviver, derrubando a relação de trabalho servil compulsória do feudalismo, viria a adotar nas colônias americanas um sistema que, à primeira vista, significava um enorme retrocesso nas relações sociais. Como salienta GORENDER, a escravidão não teve curso na Europa, entre os povos que caminhavam em direção ao capitalismo, porém, na América, naquelas regiões do continente americano geograficamente favoráveis à produção de certos bens cuja demanda cresceu no mercado europeu, sendo ela e o tráfico de escravos africanos a enorme fonte de riqueza que alimentou a acumulação capitalista na Europa. Se a escravidão greco -romana era essencialmente patriarcal - o escravo servia principalmente para fornecer bens e serviços às famílias dos escravistas -, a escravidão da era moderna foi predominantemente mercantil, isto é, com finalidade de produção de bens em larga escala para a comercialização com o mercado externo, pois as sociedades escravistas não tinham mercado interno capaz de absorver a produção. A inviabilidade de utilização no Brasil colônia de trabalhadores livres, cujo mercado estava em formação na Europa, impôs a necessidade de adoção do trabalho forçado. Num primeiro momento, os colonizadores voltaram-se para os indígenas. Porém, logo encontraram obstáculos, especialmente da Igreja Católica que os considerou "alvo de missão evangelizadora". Estas dificuldades despertaram o interesse pela escravização africana, a qual encontrou respaldo inclusive da Igreja. Ainda citando a análise de GORENDER, "a doutrina liberal democrática, elaborada pelos pensadores iluministas no século XVIII, também se viu às voltas com a gritante incoerência de proclamar a igualdade de todos os seres humanos e o direito de todos eles à liberdade civil, abrindo, porém, exceção com relação aos escravos de origem africana. Thomas Jefferson, redator principal da Declaração de Independência dos Estados Unidos, era grande proprietário de escravos. Uma vez que não podia excluí-los do gênero humano, justificava sua condição servil pelo fato de pertencerem a uma raça supostamente dotada de um grau de inteligência inferior. Os convencionais da Revolução Francesa aboliram a escravidão em 1794, mas Napoleão, em 1802, a restabeleceu. (...) Assim, a era chamada de moderna se iniciou sob o signo da contradição com os princípios políticos e espirituais proclamados pelos seus doutrinadores. Cristãos justificavam a escravidão como meio de evangelização. Iluministas se batiam pela liberdade e pela igualdade civil no âmbito das metrópoles européias e aceitavam a permanência da escravidão nas colônias. No Brasil pós-independência, como salientou Alfredo Bosi, o liberalismo, importado da Europa, associou serenamente a liberdade de comércio à escravatura. Tal contradição, oriunda da realidade concreta, constituiu todo um estilo de pensamento, que se prolonga até hoje, particularmente em países como o Brasil. Estilo que proclama princípios universais com exceções e ressalvas invalidadoras dos próprios princípios." (Ob. cit. pp. 31/32). A extinção da escravidão no Brasil se deu de forma bastante diversa daquela ocorrida nos Estados Unidos. Lá, ocorreu de maneira abrupta, resultado de um conflito armado de grandes proporções: a Guerra de Secessão. Aqui, a extinção da escravatura, já na condição de país independente, se deu de maneira lenta e gradual, reforçada na década de 1880 pela maciça imigração, em especial a italiana, trazendo a bordo os "trabalhadores livres". Extinta oficialmente em 1888, a abolição não apagou sua influência na sociedade brasileira, que convive com suas seqüelas até hoje, especialmente o racismo. Assegura JACOB GORENDER que nas primeiras décadas do século passado a elite brasileira, influenciada pela imigração européia, começou a sustentar a tese da necessidade de "branqueamento" da sociedade brasileira, adotando muitos dos autores teses pseudocientíficas para sustentar considerações racistas. Autores da linha de Euclides da Cunha, Sílvio Romero, Nina Rodrigues e Oliveira Viana teriam absorvido estas teses e adotado posições racistas na abordagem dos problemas nacionais, especialmente considerando "que o segmento negro da nação brasileira trazia desvantagem grave ao esforço de desenvolvimento nacional". Condenavam, por isso, a mestiçagem, na qual percebiam fatores de degenerescência. Em razão deste contexto, em 1933, opondo-se ao pensamento relatado, GILBERTO FREIRE lança sua obra-prima: Casa Grande & Senzala, que viria a ser a semente da corrente teórica da denominada "democracia racial" brasileira, com seguidores até hoje. Opondo-se às idéias racistas da época, o sociólogo pernambucano contestou a tese sobre a inferioridade do negro, defendendo a contribuição racial e cultural e a miscigenação como via de convivência salutar entre os segmentos raciais diversos. A importância da obra de FREIRE seria mitigada anos mais tarde, porquanto traduzia a sua visão histórica e sociológica a partir da Casa Grande, ou seja, da família patriarcal e sua relação, em especial, com os escravos domésticos, ignorando por completo as tensões das relações da senzala, em especial a resistência negra. Se nos Estados Unidos e na África do Sul, os negros, após a abolição sofreram a radical segregação legalizada sob o aspecto espacial e institucional, isto não ocorreu no Brasil. Aqui, os negros, em sua maioria analfabetos, sem profissão definidas, sem terras, sem a propriedade dos meios de produção, em suma, com os despossuídos, com os mais pobres, "deu-se sua aglomeração em favelas e bairros de periferia, configurando uma segregação estabelecida na prática. Contudo, nunca houve restrições legais formalizadas à escolha de moradia, acesso a locais públicos e meios de transporte, nem discriminação com relação a hospitais, escolas, igrejas, etc. O racismo não veio a ter, assim, expressão concentrada, mas difusa. Circunstância que dificultou o desenvolvimento de uma atitude combativa da própria população negra diante das discriminações costumeiras que lhe eram impostas, na vida cotidiana. Os negros brasileiros preferiram, comumentemente, a busca de soluções individuais em vez do enfrentamento coletivo dos problemas colocados pela discriminação racista." (Gorender,ob. cit, p. 60). Desigualdades existem em todos os países e variadas são as suas causas. No caso brasileiro, não se pode omitir o peso da escravidão, pois esta era a base de uma sociedade marcada pela separação entre senhores e escravos; entre homens livres possuidores de escravos e pobres não possuidores. O ordenamento jurídico do país pré-proclamação da República impunha e legalizava a desigualdade rigorosamente polarizada entre as classes sociais. A sociedade capitalista que se estabeleceu após o regime escravista suprimiu o ordenamento jurídico que o sustentava e implantou serenamente o ideal liberal republicano, estabelecendo a igualdade perante a lei. Contudo, manteve intocados os fatores que imprimiriam o viés sócio-econômico da desigualdade que se instalara desde a época colonial e se manteve após a independência nacional, por todo o período monárquico. Buscando novamente a análise de GORENDER, ao escravismo que impôs sobre a população de ascendência negra a discriminação opressiva do racismo (1º fator), somam-se outros dois fatores: o predomínio do latifúndio (2º fator) na estrutura da propriedade da terra, que prossegue e se acentua, aumentando os despossuídos do âmbito rural, que vem a cada dia inchando as cidades e aumentando a categoria dos desempregados no campo ou nas favelas das cidades. O terceiro fator, que também remonta à escravidão e se transferiu à sociedade capitalista sucessiva, é a inferiorização que se abate sobre a parcela feminina da população brasileira. (ob. cit. p. 84). Some-se aos fatores indicados pelo renomado Historiador brasileiro, outro tão grave quanto estes e fundamental para a necessária mobilidade social: a ausência de acesso a uma educação de qualidade. Noutros tempos, a escola pública de qualidade, acessível a todos, era a base do sistema educacional brasileiro. Paulatinamente, houve o desmonte deste sistema, com a abertura das portas da educação às instituições privadas. Oferecendo melhores salários e condições de trabalho, a migração dos melhores professores foi conseqüência natural, a que se somou outra, a migração dos alunos das classes média e alta. Hoje, com raras exceções, restou à população pobre de todas as matizes - branca, negra, indígena,- a escola pública abandonada tanto pelo Poder Público, quanto pela sociedade com algum poder de pressão sobre os gestores da coisa pública. A mais simples análise que se faça da distribuição de recursos públicos em matéria de educação escancara a perversão do sistema. O ensino fundamental, dever do Estado, obrigatório e gratuito a todos, conforme estabelece o artigo 208, caput e inciso I, da Constituição Federal, tem ainda a condição de "direito público subjetivo" (§ 1º) e o seu não-oferecimento regular pelo Poder Público, importa responsabilidade da autoridade competente (§2º). Examinadas as condições do ensino público hoje oferecido no Brasil, a previsão constitucional transforma-se em mera retórica, assegurando simples garantia formal. O Estado alega não ter condições de oferecer o ensino de qualidade a todos. Com isto, as classes mais favorecidas pela péssima distribuição de renda matriculam seus filhos em escolas particulares, altamente seletivas. Ao mesmo tempo o Estado subsidia a educação privada por intermédio de mecanismos sutis como a renúncia fiscal que favorece as escolas privadas, dispensando-as do recolhimento de imposto sobre a renda. Com amparo dos três poderes da República e sob o manto da legalidade, porquanto a exclusão praticada tem amparo da lei, o Estado mantém de um lado, na penúria, a escola pública, aberta a pobres e ricos e que deveria ser de qualidade para todos, contrapondo do outro lado, escolas privadas, elitistas, discriminatórias e largamente financiadas com recursos que deveriam beneficiar a todos, contrariando o ideal liberal-republicano de que os recursos públicos devem ser revestidos em prol do interesse de todos, do bem-estar geral da coletividade. Se falta um ensino fundamental gratuito e de qualidade, o índice dos que completam o nível médio é baixíssimo, assim como a qualidade do aprendizado. Para completar, o gargalo de acesso ao ensino superior é cada vez mais estreito. Paradoxalmente, o ensino superior de qualidade no Brasil está maciçamente nas mãos do Estado. Ensino este público e gratuito. E o que faz o Estado? Cria mecanismos altamente seletivos, como o vestibular, propiciando às classe mais abastadas, com cabedal de estudo mais consistente forjado nas escolas particulares, o acesso quase exclusivo, sobretudo nos cursos de maior prestígio e, conseqüentemente, capazes de propiciar ao estudante que os conclui, um bom futuro profissional. Aqueles mesmos cidadãos que rejeitaram a escola pública no ensino fundamental e médio, não mais se interessam pelas faculdades e universidades privadas e agora acorrem às universidades públicas de qualidade e gratuitas. Fecha-se assim o círculo da exclusão social dos pobres e marginalizados. A eles foi reservada uma escola pública precarizada e, àqueles que sobreviveram aos percalços e chegam às portas da universidade as encontram fechadas por mecanismos excludentes e, paradoxalmente, a estes excluídos economicamente, resta o caminho da universidade privada, de péssima qualidade e paga. Em razão deste contexto os governos e outros setores da sociedade vem implantando programas como avaliação seriada, o pró-uni, as cotas, etc. É este o caminho da discriminação perpetuada pela sociedade brasileira com seus cidadãos mais pobres e, em especial, com os negros, porquanto estes são a maioria do contingente dos excluídos. Cabe aqui uma pergunta à reflexão: qual a probabilidade da filhas de uma empregada doméstica branca - que em sua imensa maioria recebem apenas um salário mínimo de remuneração-, adotar a profissão da mãe e assim perenizar a exclusão social e as condições de exploração? Qual sua possibilidade de ascensão social? E, se ela for negra, há diferenças nessas possibilidades? A única saída para as filhas destas trabalhadoras é o estudo, o conhecimento, a educação. Para tanto, além de necessitarem que a família tenha capacidade de sustentá-las até o banco da faculdade, a elas está reservada uma escola pública de má-qualidade que, em regra, lhe dará cabedal para disputar apenas uma vaga nas caríssimas faculdades privadas. O ranço da escravidão e do servilismo está presente no parágrafo único do artigo 7º da Constituição Federal que mantém a condição de inferiorização dos empregados domésticos, ao lhes negar a equiparação com os demais trabalhadores, sonegando-lhes o direito à fundo de garantia, horas extras, adicional noturno, seguro contra acidentes do trabalho e outros direitos. Os estudos sociológicos não deixam dúvidas de que os indivíduos tendem a reproduzir o meio em que vivem, sendo fortemente por ele influenciados. A única conclusão possível, sem devaneios hipócritas, é que somos parte de uma sociedade discriminadora; que possui mecanismos sutis de discriminação, reforçados dia-a-dia pelos indivíduos em suas ações particularizadas e pelas instituições públicas e privadas e pelos órgãos de cada uma das três esferas de Poder. Até meados dos anos de 1980, o Brasil era o país do futuro, o país dos jovens. As melhorias das condições de vida e o avanço da medicina, aliados à diminuição das taxas de pessoas por domicílio, dentre outros fatores, reverteram aquela condição e nos colocam hoje como um país cuja população idosa aumenta a cada dia. Todavia, não temos uma cultura de valorização, não só dos idosos, mas também das pessoas mais experientes, em geral, acima dos 40 anos. Trabalhador bom é trabalhador jovem, dinâmico, barato em termos salariais. Esta a razão porque os dados estatísticos demonstram um quadro funcional no reclamado em que 93,5% dos empregados possuem idade inferior a 40 anos e destes, 58,6% com idade abaixo de 30 anos (fls. 38). Tais dados não trazem novidade a esta Justiça Especializada, que tem visto ao longo dos anos a demissão sistemática de inúmeros empregados, não só do reclamado, mas também de outros estabelecimentos bancários, todos possuindo em média 20, 25 anos de serviço. É o uso de um mecanismo cruel, consciente ou inconsciente, de seleção para a permanência no emprego. A superação da barreira dos quarenta anos traz uma série de conseqüências para o trabalhador: a saúde não é mais a mesma (o número de casos de LER/DORT no meio bancário é elevado), em conseqüência aumentam os casos de ausência justificada ao trabalho; a produtividade em geral sofre queda de rendimento; a disponibilidade do empregado em benefício do empregador se restringe e, especialmente, empregados com mais de 20 anos de banco são caros em termos salariais, em razão dos benefícios auferidos ao longo da carreira. Fatores tais como os referidos deixam estes trabalhadores na linha de frente de qualquer ajuste no quadro de pessoal e muitas vezes, são disfarçados em Planos de Demissões Voluntárias. Noutro norte, a mulher na sociedade brasileira desempenhou papel secundário até o início da década de 1980. O direito a voto negado na Constituição Republicana de 1891 só foi reconhecido em 1934 no primeiro governo Vargas. Apesar disso, por muitos anos as mulheres estiveram ausentes ou desfiguradas na história política brasileira. Culturalmente, até alguns anos após o movimento mundial conhecido como Revolução Sexual ocorrido na década de 1960, as mulheres estavam subjugadas ao credo de ser o lar o seu domínio, sofrendo restrições da própria família e da sociedade. Rompidas as barreiras, as mulheres ingressam no mercado de trabalho com ampla desvantagem, vendo seus trabalhos desqualificados e remunerados distintamente em relação ao trabalho masculino. Este quadro evoluiu, mas o quadro descrito pelo IPEA na pesquisa estatística não se restringe aos bancos, permeando todo o contexto laboral privado brasileiro, embora a qualificação feminina seja em termos percentuais mais elevada que a masculina. Este breve exame permite concluir a obviedade: A discriminação no Brasil, especialmente a social, é secular e não está baseada exclusivamente em fatores econômicos. Não iremos encontrar facilmente discriminação consciente, especialmente diante das conseqüências sociais e jurídicas impostas e, ainda que ocorra, será difícil prová-la. Permite, também, afirmar que a premissa da discriminação inconsciente se revela verdadeira. Se todos são iguais perante a lei e constatada a discriminação social, qual o caminho a percorrer num país que proclama princípios universais em sua Constituição e adota exceções e ressalvas que invalidam os próprios princípios? IGUALDADE FORMAL OU MATERIAL? O artigo 5º, caput, da Constituição Federal assegura que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade." Desde a era dos grande filósofos gregos, o princípio da igualdade é relativizado. A igualdade defendida por Aristóteles aplicava-se aos cidadãos gregos, excluídos os escravos, posto que, tratados como coisas, integravam a propriedade material destes indivíduos. Se inexistente nos sistemas escravista e feudal, senão no interior das próprias classes - igualdade entre escravos e igualdade entre servos -, a igualdade foi um dos baluartes utilizados pela classe burguesa francesa, ao lado da liberdade e da fraternidade, para agregar a massa revolucionária em torno dos ideais da Revolução Francesa no combate ao Antigo Regime e, em especial, para abolir os privilégios e as distinções baseadas na linhagem pessoal presente na rígida e imutável hierarquização social por classes característica da França pré-revolução. Alcançado o êxito revolucionário, a classe burguesa liberal, fortemente calçada no direito de propriedade, obviamente rejeitou qualquer possibilidade de igualdade material, porquanto não iria dividir o "butim" econômico angariado da nobreza feudal decadente com o povo. Para legitimar o discurso revolucionário de que todos são iguais, o liberalismo revolucionário encontrou a inteligente saída da igualdade perante a lei (igualdade formal). É nos documentos constitucionais promulgados após as Revoluções Francesa e Americana que a noção de igualdade é elevada à categoria de princípio jurídico incontornável. Trata-se, porém, de uma construção jurídico-formal, segundo a qual a lei, genérica e abstrata, deve ser igual para todos, sem qualquer distinção ou privilégio e que se difundiu por todo o constitucionalismo dos séculos XIX e XX, dando suporte jurídico ao Estado liberal burguês. É esta a igualdade assegurada no artigo 5º da nossa Constituição. Uma igualdade meramente formal, identificada, durante muito tempo, como garantia da concretização da liberdade, para o que lhe bastaria para sua concretização ser incluída dentre o rol dos direitos fundamentais. Se para os estudiosos das ciências histórica, política e sociológica desde muito cedo ficou clara a natureza formal da igualdade assegurada, os estudos de direito comparado bem mais recentes têm constatado a partir da experiência internacional o caráter ficcional da igualdade jurídica. Sustenta o jurista português GUILHERME MACHADO DRAY, citado por JOAQUIM B. BARBOSA GOMES*, "Paulatinamente, porém, a concepção de uma igualdade puramente formal, assente no princípio geral da igualdade perante a lei, começou a ser questionada, quando se constatou que a igualdade de direitos não era, por si só, suficiente para tornar acessíveis a quem era socialmente desfavorecido as oportunidades de que gozavam os indivíduos socialmente privilegiados. Importaria, pois, colocar os primeiros ao mesmo nível de partida. Em vez de igualdade de oportunidades, importava falar em igualdade de condições". ("O Princípio da Igualdade no Direito do Trabalho", ed. Livraria Almedina, Coimbra, 1999, *Doutor em Direito Público pela Universidade de Paris II (Panthéon- Assas)França e professor da Faculdade de Direito da UERJ, Ministro do STF). Também a professora CARMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA, hoje Ministra do Supremo Tribunal Federal já assinalava: "concluiu-se, então, que proibir a discriminação não era bastante para se ter a efetividade do princípio da igualdade jurídica. O que naquele modelo se tinha e se tem é tão-somente o princípio da vedação da desigualdade, ou da invalidade do comportamento motivado por preconceito manifesto ou comprovado (ou comprovável), o que não pode ser considerado o mesmo que garantir a igualdade jurídica." Assinala a Professora que "em nenhum Estado Democrático, até a década de 60, e em quase nenhum até esta última década do século XX se cuidou de promover a igualação e vencerem-se os preconceitos por comportamentos estatais e particulares obrigatórios pelos quais se superassem todas as formas de desigualação injusta. Os negros, os pobres, os marginalizados pela raça, pelo sexo, por opção religiosa, por condições econômicas inferiores, por deficiências físicas ou psíquicas, por idade etc. continuam em estado de desalento jurídico em grande parte do mundo. Inobstante a garantia constitucional da dignidade humana igual para todos, da liberdade igual para todos, não são poucos os homens e mulheres que continuam sem ter acesso às iguais oportunidades mínimas de trabalho, de participação política, de cidadania criativa e comprometida, deixados que são à margem da convivência social, da experiência democrática na sociedade política." (Ação Afirmativa – O Conteúdo Democrático do Princípio da Igualdade Jurídica", in Revista Trimestral de Direito Público nº 15/85). Tanto no contexto contemporâneo, como na atualidade, se fez imperiosa, nas palavras de BARBOSA GOMES, "a adoção de uma concepção substancial da igualdade, que levasse em conta em sua operacionalização não apenas certas condições fáticas e econômicas, mas também certos comportamentos inevitáveis da convivência humana, como é o caso da discriminação." Assim, "em lugar da concepção ‘estática' da igualdade extraída das revoluções francesa e americana, cuida-se nos dias atuais de se consolidar a noção de igualdade material ou substancial, que, longe de se apegar ao formalismo e à abstração da concepção igualitária do pensamento liberal oitocentista, recomenda, inversamente, uma noção ‘dinâmica', ‘militante' de igualdade, na qual necessariamente são devidamente pesadas e avaliadas as desigualdades concretas existentes na sociedade, de sorte que as situações desiguais sejam tratadas de maneira dessemelhante, evitando-se assim o aprofundamento e a perpetuação de desigualdades engendradas pela própria sociedade. Produto do Estado Social de Direito, a igualdade substancial ou material propugna redobrada atenção por parte dos aplicadores da norma jurídica à variedade das situações individuais, de modo a impedir que o dogma liberal da igualdade formal impeça ou dificulte a proteção e a defesa dos interesses das pessoas socialmente fragilizadas e desfavorecidas." ("A recepção do instituto da ação afirmativas pelo Direito Constitucional Brasileiro", "Revista de Informação Legislativa a. 38 n. 151 jul/set.2001, p. 131) Surge daí, segundo o autor, a idéia de igualdade de oportunidades, noção justificadora de diversos experimentos constitucionais pautados pela necessidade de se extinguir ou pelo menos mitigar o peso das desigualdades econômicas e sociais e, conseqüentemente, de promover a justiça social. Trata-se de situação em que o Estado abandona a sua tradicional posição de neutralidade, valor tão caro aos ideais liberais, deixando de ser mero expectador dos embates sociais e passa a atuar ativamente na busca da concretização da igualdade assegurada nos textos constitucionais. Surgem pois, as chamadas ações afirmativas ("affirmative action") nos Estados Unidos e discriminações positivas ("discrimination positive") na Europa. Embora agora esteja se difundindo no Brasil o conhecimento das ações afirmativas, sobretudo pela imensa discussão em torno da questão das cotas para os negros nas universidades públicas, temos nos Estados Unidos da América a sociedade pioneira na adoção de políticas sociais concebidas inicialmente como mecanismos para solucionar a marginalização social e econômica do negro na sociedade americana, políticas estas posteriormente transferidas às mulheres e a outras minorias étnicas e nacionais, aos índios e aos deficientes físicos. Guardadas as devidas adequações, os grupos marginalizados repetem-se na nossa e em outras sociedades, demonstrando que a discriminação atinge escala mundial, daí o trabalho incessante da Organização das Nações Unidas, origem da CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE A ELIMINAÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO RACIAL, cuja finalidade é encorajar o entendimento entre as raças e adotar todas as políticas e meios apropriados para a eliminação da discriminação racial no mundo. Examinado o quadro social brasileiro, fica difícil sustentar que os índios, os negros e as mulheres não estão subrepresentados tanto nas atividades públicas quanto nas atividades privadas, seja em posições de mando e prestígio no mercado de trabalho, seja nas instituições de formação profissional. Além dos obstáculos de acesso impostos aos mais pobres, os que conseguem rompê-los irão se juntar às mulheres de todas as classes no enfrentamento das barreiras invisíveis que impedem a ocupação dos cargos de chefia e direção. É o chamado GLASS CEILING, expressão utilizada pelos norte-americanos para designar as barreiras artificiais e invisíveis que obstaculizam o acesso de negros e mulheres qualificados a posições de poder e prestígio, limitando-lhes o crescimento e o progresso individual. "O reconhecimento oficial da existência desses obstáculos artificiais se deu por ocasião da promulgação pelo Congresso do Civil Rights Act de 1991, que criou a «Glass Ceiling Commission», um órgão consultivo de natureza colegiada, composto por 21 membros nomeados pelo Presidente da República e por líderes do Congresso, com a incumbência de identificar as barreiras invisíveis e propor medidas hábeis a criar oportunidades de acesso de minorias a posições de mando e prestígio na órbita econômica privada. A referida Comissão constatou que, apesar dos avanços obtidos graças ao movimento dos direitos civis, no ano de 1995, 97% dos cargos executivos superiores das 1000 maiores empresas relacionadas pela revista Fortune eram ocupados por pessoas brancas e do sexo masculino. Vale dizer, um índice injustificável sob qualquer critério, haja vista que 57% da força de trabalho americana compõe-se de representantes do sexo feminino ou de minorias, ou de ambos.". ("Desigualdades raciais e ação afirmativa no Brasil: reflexões a partir da experiência dos EUA."; Rosana Heringer, 1999; disponível no site DESIGUALDADES SOCIAIS E AÇÃO AFIRMATIVA NO BRASIL, http://r.heringer.sites.uol.com.br/, consulta realizada em 22.08.2006). É interessante a informação prestada por NELSON SATO do Departamento Técnico do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo, verbis: ‘A questão de gênero também está sendo muito discutida no país e no planeta. A mulher jornalista Brasileira se encontra em melhor situação que as muitas outras trabalhadoras. Em primeiro lugar, o seu salário é maior em relação as parceiras de muitas categorias e a diferença com os homens jornalistas é pequena como veremos adiante. É comum as mulheres se queixarem sobre discriminação em seus locais de trabalho, principalmente em relação aos salários. Até o momento ainda não houve denúncia da mulher jornalista apontando tal discriminação. Ao contrário: elas próprias afirmam que recebem o mesmo salário que os homens jornalistas. Se elas ganham os mesmos salários dos homens, por quê razão o salário médio das mulheres jornalistas no geral é menor? O que elas reclamam é o fato de existir um número maior de chefias ocupado por homens. Como os salários das chefias são maiores, estes puxariam a média para cima. A pergunta que fica no ar ou é formulada: por quê tantos homens em chefias? A resposta a esta pergunta pode suscitar a discussão sobre a discriminação feminina nas redações. Existem de fato as "paredes de vidro" que impedem o crescimento profissional das mulheres nas empresas? (informações e dados extraídos da RAIS - Relação de Informações Sociais, ano 1999, do Ministério do Trabalho e Emprego - Secretaria de Políticas de Emprego e Salário; www.autor.org.br/jornal/artigos/nsato.htm, consulta realizada em 11.09.2006).(grifei) Tal como se observa, mesmo em profissões em que não há discriminação salarial, a diferenciação ocorre exatamente em razão da barreira de acesso às mulheres aos cargos de chefia. Nestes contextos surgem as políticas afirmativas com o importante papel de propiciar a efetiva igualdade de oportunidades de forma a permitir a ocupação das posições do Estado e do mercado de trabalho de acordo com o caráter plúrimo da sociedade, buscando equilibrar a representatividade com a diversidade, com alvo principal na eliminação das barreiras artificiais e invisíveis que impedem o avanço de negros e mulheres na inserção no mercado de trabalho e, uma vez, inseridos, na ascensão aos postos de comando. SAMANTHA S. MOURA RIBEIRO, mestranda em Teoria do Estado pela PUC-RIO define ações afirmativas como "o conjunto de mecanismos implantados nos setores públicos ou privados para a concretização do princípio da igualdade no acesso aos bens da vida, a partir da inclusão social das minorias marginalizadas". ("A Contribuição da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial para a Inserção do Negro na Sociedade Brasileira" -,artigo publicado em 21.04.2005. www.mundojuridico.adv.br, consulta realizada em 8.8.2006). CÁRMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA nos diz que "ações afirmativas se definem como políticas públicas e privadas voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física" ("Ação afirmativa: o conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica"; Revista Trimestral de Direito Público, n. 15/85). JOAQUIM B. BARBOSA GOMES indica que atualmente "as ações afirmativas podem ser definidas como um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero, por deficiência física e de origem nacional, bem como para corrigir ou mitigar os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego." Indo além, ao examinar a recepção das ações afirmativas pelo Direito Constitucional Brasileiro, sustenta o autor que "diferentemente das políticas governamentais antidiscriminatórias baseadas em leis de conteúdo meramente proibitivo, que se singularizam por oferecerem às respectivas vítimas tão somente instrumentos jurídicos de caráter reparatório e de intervenção ex post facto, as ações afirmativas têm natureza multifacetária (RESKIN, 1997) e visam a evitar a que a discriminação se verifique nas formas usualmente conhecidas - isto é, formalmente, por meio de normas de aplicação geral ou específica, ou por meio de mecanismos informais, difusos, estruturais, enraizados nas práticas culturais no imaginário coletivo. Em síntese, trata-se de políticas e de mecanismos de inclusão concebidos por entidades públicas, privadas e por órgãos dotados de competência jurisdicional, com vistas à concretização de um objetivo constitucional universalmente reconhecido - o da efetiva igualdade de oportunidades a que todos os seres humanos têm direito." ("A recepção do instituto da ação afirmativa pelo Direito Constitucional Brasileiro", in "Revista de Informação Legislativa" a.38 nº 151/jul/set/2001). Se é certo que o Judiciário só age quando provocado, não podendo se imiscuir nas funções do Legislativo ou do Judiciário, não menos certo se lhe impõe dar às normas constitucionais a interpretação que lhe transforme numa Constituição real, sem que isto implique em estabelecer a norma que lhe cabe interpretar, isto é, sem agir com legislador ou executor de políticas governamentais. A vontade da Constituição Brasileira expressa nos seus objetivos fundamentais não é dirigida apenas à tríade de poderes. É dirigida a toda a comunidade brasileira - pessoas físicas e jurídicas, públicas ou privadas. Conseqüentemente, constatada qualquer conduta contrária a esta vontade, cabe a todos, espontaneamente, unirem forças para a correção dos rumos e, se for o caso, ao Judiciário cabe impor coativamente a ordenação, tanto das funções estatais próprias, quanto das funções sob responsabilidade das entidades privadas. Exposta a conceituação impõe-se antes de se prosseguir no debate, desfazer a grosseira confusão sobre tema que hoje é foco de debate nacional, poucas vezes visto no cenário brasileiro, que é a política de cotas, especialmente para os afro-descendentes nas universidades brasileiras. O sistema de cotas é apenas uma das variáveis das ações afirmativas. Definitivamente, a espécie não se confunde com o gênero, conforme definições que permeiam as discussões Brasil afora. As ações afirmativas são mecanismos temporários de igualação e inserção que não representam e nem se transformam em discriminações inversas pois existem apenas enquanto persistirem as situações de desigualdades injustas pré-existentes. Conforme veiculado na imprensa brasileira há alguns dias, diminuiu a distância entre os níveis salariais de homens e mulheres. Isto se deu, principalmente em face do elevado nível de escolarização e qualificação por elas adquiridos (em geral, mais elevado que seus colegas homens). Ainda assim, prosseguindo a curva ascendente, "as mulheres vão ter que esperar 75 anos para receberem o mesmo salário que os homens, mesmo exercendo funções semelhantes. Estudo do BNDES aponta que somente em 2081 as mulheres conseguirão paridade aos homens no que diz respeito a salários, mantido o nível de evolução dos últimos 10 anos." (Jornal do Brasil/Brasília, p. D8, domingo, 10 de setembro de 2006.). Por vários fatores, inclusive a lentidão das transformações, foi que as ações afirmativas surgem com a perspectiva de harmonia social e criação jurídico-político-social, engendrando uma mudança comportamental dos juízes e políticos de todo o mundo democrático do pós-guerra. Está ocorrendo uma conscientização generalizada da necessidade de transformação na forma de distribuição e efetivação dos direitos. A Constituição Republicana de 1988 trouxe em nível constitucional a adoção de ações afirmativas, traduzindo, na verdade, permissão expressa para sua utilização, com o intuito de implementar a igualdade, (art. 5º, I), como são exemplos a reserva de vagas para pessoas portadoras de deficiências físicas (art. 37,VIII)e a proteção do mercado de trabalho da mulher (art. 5º, XX). Traduzem exemplos vivos de ações afirmativas, amplamente discutidas na época, as nomeações para o Supremo Tribunal Federal, da Exma. Ministra ELLEN GRACIE NORTHFLEET e do Exmo. Ministro JOAQUIM BARBOSA. Se dúvidas não há quanto ao preenchimento dos requisitos do cargo, em especial quanto ao notável saber jurídico de ambos, tampouco persiste quanto aos elementos determinantes: a condição de primeira mulher a ocupar tal cargo na história republicana e igualmente, do primeiro negro a ser nomeado para a Corte Constitucional. Os reflexos destas nomeações para as parcelas sociais alvos das discriminações é inegável. Outro exemplo pouco contestado de ação afirmativa diz respeito à reserva de vagas para as mulheres nos pleitos eleitorais, no percentual inicial de 20% (Lei 9.100/1995), posteriormente ampliado pela Lei 9.504/1997 para 50%, tendo como resultado a ampliação da participação feminina nas esferas legislativas. Em razão de tais precedentes, as vozes que se levantam contra as cotas para os negros traduzem sintomática reação e também a mais clara demonstração do racismo enrustido na sociedade brasileira, pois, como dito, nosso ordenamento jurídico, a começar pela Carta Constitucional, é permeado de ações afirmativas nunca contestadas e plenamente aceitas pela comunidade. Afora as medidas mencionadas, inúmeras propostas para a implementação de ações afirmativas pela via legislativa apresentadas até o final da década de 1990 não foram aprovadas. Segundo SABRINA MOEHLECKE, somente a partir de 2001 se observa a utilização de políticas de ação afirmativa para a população negra por decisão do Poder Público, seguindo a mesma linha dos projetos de lei; tendo como base o sistema de cotas e a idéia da necessidade de representação desse setor em diversas esferas da sociedade. Exemplifica a autora, que "o Ministro do Desenvolvimento Agrário, por exemplo, assinou, em setembro de 2001, portaria que cria uma cota de 20% para negros na estrutura institucional do Ministério e do INCRA, devendo o mesmo ocorrer com as empresas terceirizadas, contratadas por esses órgãos. O Ministro da Justiça, em dezembro de 2001, assinou portaria que determina a contratação, até o fim de 2002, de 20% de negros, 20% de mulheres e 5% de portadores de deficiências físicas para os cargos de assessoramento do Ministério. O mesmo princípio será aplicado às empresas de prestação de serviços para o órgão federal. O Ministério de Relações Exteriores decidiu que, a partir de 2002, serão concedidas vinte bolsas de estudo federais a afrodescendentes que se preparam para o concurso de admissão ao Instituto Rio Branco, encarregado da formação do corpo diplomático brasileiro. Medidas semelhantes também são encontradas em outras instâncias." ( in " Cadernos de Pesquisa", n. 117, novembro/ 2002, p. 209). Por oportuno, cabe transcrever a abordagem de outra questão não menos importante: a adoção de políticas de ação afirmativa no Brasil caracterizaria a garantia de um direito ou o estabelecimento de um privilégio? Diz a autora: "aqueles que as percebem como um privilégio, atribuem-lhes um caráter inconstitucional. Significariam uma discriminação ao avesso, pois favoreceriam um grupo em detrimento de outro e estariam em oposição à idéia de mérito individual, o que também contribuiria para a inferiorização do grupo supostamente beneficiado, pois este seria visto como incapaz de vencer por si mesmo. Para os que as entendem como um direito, elas estariam de acordo com os preceitos constitucionais, à medida que procuram corrigir uma situação real de discriminação. Não constituiriam uma discriminação porque seu objetivo é justamente atingir uma igualdade de fato e não fictícia. Elas não seriam contrárias à idéia de mérito individual, pois teriam como meta fazer com que este possa efetivamente existir. Seria, nesse caso, a sociedade brasileira a incapaz, e não o indivíduo; seria incapaz de garantir que as pessoas vençam por suas qualidades e esforços ao invés de vencer mediante favores, redes de amizade, cor, etnia, sexo. O que está em disputa nessas posições são diferentes interpretações da Constituição e posturas distintas em termos normativos com relação à noções de igualdade e justiça." (ob. cit. p. 210) Do ponto de vista governamental, em razão da denúncia apresentada pela Central Única dos Trabalhadores - CUT e pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdade - CEER, em razão do sistemático descumprimento pelo Brasil da Convenção 111 da OIT, da qual este é signatário, após o questionamento formal deste organismo internacional, o governo brasileiro admitiu, em 1995, a existência de discriminação no país e criou o Grupo de Trabalho para Eliminação da Discriminação no Emprego e na Ocupação - GTEDEO, cuja finalidade é implementar as medidas da Convenção. Ora, o governo brasileiro ao se pronunciar perante o organismo internacional, o fez em nome da República Federativa do Brasil, ou seja, em nome de seus três poderes - Legislativo, Executivo e Judiciário. Assim, teria o Poder Judiciário, considerado o seu papel político, legitimidade para negar a existência da discriminação no acesso e ocupação do emprego por seu cidadãos? Estaria este reconhecimento restrito à esfera pública? Em ambos os casos a resposta parece ser negativa. Em conclusão, havendo desigualdade estrutural, geradora de situações de discriminação, há espaço para as ações afirmativas, inclusive ações afirmativas de caráter jurídico, sem que isto represente afronta aos direitos assegurados na Constituição Federal. DA PROVA NO PROCESSO COLETIVO. DO EQUÍVOCO DA APLICAÇÃO DOS PREMISSAS DO DISSÍDIO INDIVIDUAL. A tendência mundial da coletivização dos processos encontra na problemática da prova uma de suas grandes questiúnculas. Há resistências à adoção de meios probatórios às vezes completamente estranhos àqueles que os julgadores estão acostumados a lidar, impregnados que estão pelas regras do sistema do processo individual adotado pelos sistemas processuais ocidentais. Daí o equívoco interpretativo, data venia, expresso na sentença, a começar pelo pressuposto de análise de que a ação não se originou de nenhuma acusação ou denúncia contra o réu ("alvo circunstancial"), porquanto nenhum empregado ou candidato a empregado formulou queixa contra o réu, engajando-se, pois, em aspectos políticos, sociais e econômicos. Pontua a juíza sentenciante não ter o autor feito qualquer comparativo de "pessoas" que teriam tido tratamento desigual ou discriminatório (fls. 698). Esta é uma das premissas adotadas. Ou seja, uma premissa pertinente ao processo individual adotada para julgamento de um processo coletivo. Sob outra vertente, a discriminação salarial das mulheres e dos negros (homens e mulheres) não é um privilégio brasileiro, é uma chaga mundial, sendo poucos os países em que essa disparidade é quase inexistente. Somente seria possível o Judiciário analisar a questão a partir de casos individuais? Seria admissível rejeitar a prática salarial discriminatória a partir de fundamentos da legislação individual do trabalho? Parece-me que a resposta é negativa. Repete-se, portanto, o equívoco ao se buscar amparo no artigo 461 da CLT, pois não teria o autor indicado "o mínimo comparativo matemático de 2 empregados, um negro e um branco, em idêntica função, com diferença de tempo de serviço na mesma função não maior que 2 anos (CLT, art. 461 para concluir, a partir do fato, a prática de discriminação." (fls. 701). O dispositivo celetista é inquestionavelmente direcionado a dissídios individuais, razão pela qual sua aplicação aos dissídios coletivos irá gerar uma decisão disssociada do escopo do processo coletivo. O avanço da tutela coletiva e a insuficiência do sistema de processo para resolver as questões desta tutela levou os doutrinadores de vários países a constatarem a necessidade de adoção de um "código de processo coletivo". Segundo DIOGO CAMPOS MEDINA MAIA, no estudo PROCESSOS COLETIVOS - O PROJETO DE CÓDIGO MODELO DO INSTITUTO IBERO- AMERICANO DE DIREITO PROCESSUAL, a idéia de um Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América foi fruto de uma intervenção do Professor Antônio Gidi no VII Seminário Internacional co-organizado em Roma pelo ""Centro di Studi Giuridici Latino Americani"" da ""Universita degli Studi di Roma –– Tor Vergata"", pelo ""Istituto Italo- Latino Americano"" e pela ""Associazione di Studi Sociali Latino-Americani"". (*) especialista em Direito do Trabalho, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho pela UCAM-RJ, Mestrando em Direito Processual pela UERJ. A idéia foi amadurecida e, em assembléia, aprovada a proposta de elaboração de um Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América nos moldes dos já editados Código Modelos de Processo Civil e de Processo Penal. Salienta o autor que "O Projeto de Código Modelo" é resultado de uma longa caminhada de estudos sobre a tutela coletiva e seus aspectos polêmicos frente à teoria geral do Direito Processual individualista originalmente concebido. Tenta adequar e regulamentar o sistema processual coletivo às necessidades de uma sociedade moderna, com propostas de vanguarda que rompem com alguns princípios clássicos do Direito Processual, como o princípio do dispositivo, da isonomia e da autoridade limitada da coisa julgada, adaptando-os, ao Direito Processual Coletivo. "O Projeto de Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América foi apresentado à Assembléia Geral levada a cabo no dia 28 de setembro de 2004 em Caracas, na Venezuela, por ocasião das XIX Jornadas Ibero-Americanas de Direito Processual. Muito embora a experiência de juristas de diversos países tenha colaborado para a confecção do Código Modelo, é de se notar que a legislação brasileira foi fonte principal de inspiração para o texto apresentado." (ob. cit.) O Projeto é composto por 41 artigos distribuídos em sete Capítulos com o espírito de conferir à tutela coletiva a maior efetividade possível. Dentre seus dispositivos, merece destaque o artigo 39, que trata dos princípios da interpretação. Observa-se em outros artigos, também, a preocupação da comissão relatora do Projeto em confeccionar um sistema aberto, de interpretação teleológica, mais consentânea com os ideais de acesso à justiça. Neste aspecto ressai a influência brasileira, diante das previsões de admissão de todas as espécies de ações para a defesa dos interesses e direitos coletivos (tal como consta no nosso CDC); de interpretação extensiva do pedido e da causa de pedir; e de possibilidade de alteração do objeto do processo a qualquer tempo e grau de jurisdição. Salienta ALUÍSIO GONÇALVES DE CASTRO MENDES, Membro da Comissão Elaboradora do Código Modelo de Processo, que "sob o aspecto da carga dinâmica da prova, não se ateve o Código Modelo à tradicional distribuição revista no artigo 333 do Código de Processo Civil brasileiro[14], mas, também, por outro lado, deixou de renovar a possibilidade de inversão contida no artigo 6ºº, inciso VII, do Código de Defesa do Consumidor. Optou por fórmula que atribui o ônus da prova à parte que detiver conhecimentos técnicos ou informações específicas sobre os fatos ou maior facilidade em sua demonstração. Caberia, assim, às partes revelar os conhecimentos científicos e informações pertinentes ao caso, considerando não apenas as suas alegações, mas, também, as da parte contrária. A detenção dos conhecimentos técnicos ou informações específicas e a maior facilidade na demonstração passam a ser matéria, em potencial, controvertida e, portanto, prejudicial, que pode, em si, demandar a colheita de prova ou aplicação das regras de experiência." (Prof. Doutor da Univ.do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Juiz Federal; Especialista em Dir. Processual Civil pela Univ. de Brasília (UnB); Mestre em Dir. pela Univ. Federal do Paraná (UFPR); Mestre em Dir. pela Johann Wolfgang Goethe-Universität (JWG, Alemanha); Doutor em Dir. pela UFPR e JWG; Pós-Doutor em Dir. pela Univ. de Regensburg (Alemanha); Membro do Instituto Brasileiro de Dir. Processual, da Associação Teuto-Brasileira de Juristas, do Instituto Ibero-americano de Dir. Processual e da Associação Internacional de Dir.Processual). O Código Modelo prevê em seu artigo 13, verbis: ‘Artigo 13 - A prova estatística ou por amostragem é permitido como complemento à prova direta ou quando a prova direta for custosa ou de difícil ou impossível produção.'. Obviamente que o Código, até porque ainda não oficialmente promulgado e adotado pelos países interessados, não possui aplicabilidade coercitiva, senão apenas indicativa da tendência a ser seguida pelo direito processual coletivo. Mas, não podemos ignorar a influência de nossos juristas sobre o projeto. Os doutrinadores brasileiros, e já parte considerável da jurisprudência entendem que o sistema jurisdicional de tutela coletiva construído no Brasil e base da proposta do Código Modelo, escora-se primordialmente na Constituição Federal, na Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/85) e no Código de Defesa do Consumidor (Título III), restando ao Código de Processo Civil (e por conseqüência a CLT), a condição de fonte subsidiária, restrita àquilo que não contrariar os princípios e disposições próprias desse "sistema processual coletivo". Em geral, as ações coletivas buscam combater atos ilícitos (discriminações, coações, conluios, assédios, abusos de poder, desvios de finalidade, etc.), que são de difícil demonstração direta, pois, em geral, o infrator busca deliberadamente ocultar ou desconstituir qualquer elemento ou evidência capaz de caracterizar o descumprimento da lei. Prova documental nestas hipóteses é algo extremamente raro, sendo de difícil prova por meio de testemunhas. Nesta situação, cabe invocar a aplicação subsidiária do artigo 335 do CPC, que autoriza o juiz aplicar "as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e ainda as regras de experiência técnica, ressalvado, quanto a esta, o exame pericial". Conforme acentua NELSON NERY JÚNIOR, ao comentar o referido artigo, as máximas de experiência "adquirem autoridade porque trazem consigo a imagem do consenso geral, pois certos fatos e certas evidências fazem parte da cultura de uma determinada esfera social" ("CPC Comentado e legislação extravagante"; 7ª ed., Ed. RT, 2003, p. 720). Outrossim, cabe lembrar que o processo coletivo admite a inversão do ônus da prova para "a facilitação da defesa de seus direitos ...a seu favor...quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência" (CDC, art. 6º, III). É cabível a aplicação do preceito nas ações coletivas trabalhistas em que se discutem temas de difícil consecução e demonstração documental, testemunhal ou pericial, visando facilitar a defesa dos direitos da coletividade titular, situação que ocorre em especial nas práticas discriminatórias de grupos de trabalhadores (por motivo de raça, sexo, idade, tempo de serviço, opção religiosa, estado de saúde, condição física ou mental, etc.); nas fraudes (terceirizações e intermediações de mão-de-obra ilícitas, dentre outras); no abuso e assédio (sexual, moral e profissional); ofensas à privacidade e à intimidade dos trabalhadores e negligência quanto ao meio ambiente de trabalho. A prática discriminatória é sutil, não deixa rastros evidentes e tal como outras hipóteses admitidas pelo Direito, deve levar em consideração as presunções, os indícios. Não se lhe pode exigir provas cabais. Em sintonia com as premissas postas supra, em se tratando de discriminação - consciente ou inconsciente - a qual pode ser apreciada na forma do dispositivo processual mencionado, nenhum óbice se verifica no ordenamento jurídico brasileiro à adoção de dados estatísticos no processo coletivo como elementos válidos de prova. A estatística é reconhecida como ramo das ciências exatas, tanto que integra o rol de cursos das Universidades, formando profissionais qualificados. Embora muitos insistam em negar, o Direito é uma ciência multidisciplinar. Neste aspecto, não pode o intérprete privilegiar ou estabelecer graus de confiabilidade distintos para este ou aquele ramo da ciência. Conforme esclarece o Professor Raul Yukihiro Matsushita, do Departamento de Estatística da Universidade de Brasília, "a estatística moderna é uma tecnologia quantitativa para a ciência experimental e observacional que permite avaliar e estudar as incertezas e os seus efeitos no planejamento e interpretação de experiências e de observações de fenômenos da natureza e da sociedade. A estatística não é uma caixa-preta, nem bola de cristal, nem mágica. Tampouco é um conjunto de técnicas úteis para algumas áreas isoladas ou restritas da ciência. Por exemplo, ao contrário do que alguns imaginam, a estatística não é um ramo da matemática onde se investigam os processos de obtenção, organização e análise de dados sobre uma determinada população. A estatística também não se limita a um conjunto de elementos numéricos relativos a um fato social, nem a números, tabelas e gráficos usados para o resumo, a organização e apresentação dos dados de uma pesquisa, embora este seja um aspecto da estatística que pode ser facilmente percebido no cotidiano (basta abrir os jornais e revistas para ver o "bombardeio" de estatísticas). Ela é uma ciência multidisciplinar: um mesmo programa de computador que permite a análise estatística de dados de um físico poderia também ser usado por um economista, agrônomo, químico, geólogo, matemático, biólogo, sociólogo psicólogo e cientista politico. Mesmo que as interpretações dessas análises sejam diferentes por causa das diferenças entre as áreas do conhecimento, os conceitos empregados, as limitações das técnicas e as conseqüências dessas interpretações são essencialmente as mesmas." (www.unb.org.br, consulta realizada em 8.8.2006, 23h15m). Anota o Professor as afirmações de Rao (1999), de que "a estatística é uma ciência que estuda e pesquisa sobre: o levantamento de dados com a máxima quantidade de informação possível para um dado custo; o processamento de dados para a quantificação da quantidade de incerteza existente na resposta para um determinado problema; a tomada de decisões sob condições de incerteza, sob o menor risco possível. Finalmente, a estatística tem sido utilizada na pesquisa científica, para a otimização de recursos econômicos, para o aumento da qualidade e produtividade, na otimização em análise de decisões, em questões judiciais, previsões e em muitas outras áreas. " (RAO, C.R. Statistics: A technology for the millennium Internal. J. Math. & Statist. Sci, Vol. 8, No. 1, June 1999, 5-25). Registra o sociólogo Luiz Henrique Proença Soares, Diretor Adjunto de Produção de Dados da Fundação SEADE/SP, que credibilidade e legitimidade passaram a ser características fundamentais a serem perseguidas, tanto pelas estatísticas como pelas agências que as produzem, sob pena de, ausentes tais atributos, umas e outras perderem completamente o sentido e a própria razão de serem. Competência técnica e isenção constituem objetivos permanentes para esse tipo de entidade." (http://www.comciencia.br; contato@comciencia.br, 2002 SBPC/Labor Brasil Consulta em 8.8.2006; 22h45m) Conforme explicam os profissionais da área, uma hipótese estatística é uma suposição ou afirmação que pode ou não ser verdadeira, relativa a uma ou mais populações. A veracidade ou falsidade de uma hipótese estatística nunca é conhecida com certeza, a menos que, se examine toda a população, o que é impraticável na maior parte das situações. Em razão disso, toma-se uma amostra aleatória da população de interesse e com base nesta amostra é estabelecido se a hipótese é provavelmente verdadeira ou provavelmente falsa. A decisão de que a hipótese é provavelmente verdadeira ou falsa é tomada com base em distribuições de probabilidade denominadas de "distribuições amostrais". Segundo ELIANA ZANDONADE, a estatística hoje é uma ciência de apoio para diversos ramos do conhecimento. Na área biomédica (bioestatística); na área exata (como as Engenharias); na área humana (Ciência Sociais - pesquisas de opinião; Comunicação Social - pesquisas de mercado; Administração - modelos de previsão; Economia - econometria; Psicologia - psicometria; Geografia - geoestatísca este apoio já é bem difundido. Salienta a Professora da Universidade Federal do Espírito Santo, que "o desafio é a aplicação de métodos estatísticos na área judiciária" ("Estatística Judiciária, Importância e Meios" Rev. CEJ, Brasília, Nº 17, p. 49/51, abr/jun 2002. Conferência proferida no 2º Congresso Brasileiro de Administração da Justiça - Painel III "Gerência e Função Social do Judiciário"). Diz a autora ser possível na "função típica (jurisdição), o uso da estatística no julgamento de processos "como um instrumento para determinar se situações são devidas simplesmente ao acaso. A contratação de estatísticos como peritos a serviço da Justiça ainda não é comum no Brasil, mas nos Estados Unidos da América encontramos uma vasta literatura com exemplos de aplicação de técnicas estatísticas que auxiliam na compreensão dos fatos." E exemplifica: "Em DeGroot, Fienberg e Kadane" - Statistics and the Law New York - "encontramos um exemplo de estudo de caso elaborado por Coulam, e Fienberg relata a importância da utilização de um perito na área de Estatística para um caso de discriminação por sexo numa empresa. Tanto o autor quanto o réu se valeram de métodos estatísticos para avaliar se o sexo é um fator importante na determinação da posição hierárquica, do salário e dos demais benefícios para o indivíduo trabalhador. O papel do perito neste caso foi de grande importância para avaliar as metodologias utilizadas" (ob. cit. p. 41, grifei - interessante observar a semelhança com o caso em análise). Prossegue a autora destacando a utilização cada vez mais intensa da Estatística pelo Poder Judiciário nas suas funções atípicas - administrativas. Concluo, portanto, que embora não tenha o Poder Judiciário o hábito de adotar dados estatísticos como prova nos processos judiciais submetidos a seu julgamento, nenhum óbice há a esta utilização. Equivocada a tese defensiva do reclamado no sentido de trazer o artigo 334 do CPC enunciação taxativa das hipóteses de dispensa de prova (fls. 322). A questão não está por ele regulada, mas pela regra geral de que em direito são admitidas todos os tipos lícitos de prova. Assim, enquanto não se adota o estatístico como perito do juízo, nenhum impedimento se verifica na utilização dos dados fornecidos pelos órgãos oficiais como o IBGE, posto que orientadores das políticas públicas. No caso, assegura o Ministério Público que as informações requisitadas e prestadas pelo Banco sobre o número de trabalhadores do Distrito Federal agrupados por gênero, raça e idade foram trabalhadas sob a mesma metodologia dos estudos da OIT e IPEA assim como de meios acadêmicos. Dados estatísticos não são números frios. Suas relevâncias estão nos olhos de quem lê os dados; no seu grau de compreensão ou comprometimento com as causas em análise. Como bem registra N. C. SENRA, "...com os números procura-se fazer com que as ações e as decisões sejam racionais, mais exatamente, impessoais; tudo se passa como se os números tivessem decidido, ou ainda, tudo se passa como se diante de certos números todos tomassem as mesmas decisões ou tivessem as mesmas opiniões. Na verdade, embora os números sejam peças chaves das tomadas de decisão, não contém em si mesmos as decisões, isto é, não conseguem dispensar os decisores de assumirem os ônus das escolhas, em decorrência dos ônus das renúncias (pois, quem escolhe, renuncia, o que é de fato o lado difícil da decisão)." (in "Políticas Públicas e Informações Estatística: A Informação Estatística como Política Pública", Luiz Henrique Proença Soares; www.comciencia.br, consulta realizada em 8.8.2006, 22h45min.). Por tais razões, contraponho-me aos ótimos fundamentos postos na sentença recorrida, para definir pela validade da prova estatística para fins de embasamento das decisões judiciais, especialmente sob o enfoque das peculiaridades das ações coletivas. Aos que fazem um paralelo com o instrumento máximo de seleção de emprego invocado pelos defensores da "meritocracia", o concurso público, observamos que a adoção deste critério nos bancos oficiais e outros empregos ou cargos públicos não tem o condão de justificar a negação da possibilidade de imposição ou adoção de ações afirmativas às entidades privadas. Isto porque, o concurso público justo e democrático não é garantia de não discriminação. Nos bancos oficiais pode não ocorrer na admissão, mas também há espaço suficiente para a prática discriminatória por ocasião da ascensão na carreira ou na escolha de indivíduos ou grupos a serem demitidos. Nos empregos e cargos públicos, o indivíduo está sujeito à avaliação subjetiva de chefias, abrindo-se espaço à discriminação, tanto na permanência quanto da progressão funcional, em que pese aqui ter o indivíduo, em tese, maior possibilidade de defesa. Por estas e outras razões é um equívoco achar que inexiste discriminação nas contratações por concurso público. Na verdade, é uma visão parcial e pouco aprofundada da dinâmica histórica e social. A discriminação já se deu, lá atrás, quando da oportunidade ou não de se freqüentar boas escolas. É a tese da meritocracia analisada somente a partir da extremidade final. Os aprovados chegaram lá por seus méritos, dizem... Para se ter uma noção exata do que isto significa, basta olhar nosso quadro de servidores e magistrados e veremos um tribunal "branqueado". Seria pura incompetência e despreparo dos negros? Sim, porque, felizmente, quanto ao gênero não se verifica esta disparidade, porquanto as mulheres, a custa de muita luta e sacrifício para se qualificarem, estão, hoje, por intermédio da educação, ocupando espaços par e passo com os homens neste Regional, isto é, se já não formarem o quadro majoritário. Haveria diferenças significativas entre o concurso público e o vestibular quanto ao aspecto da igualdade de oportunidades? Nestes casos, estamos diante de uma desigualdade: a desigualdade de oportunidades que esvazia o princípio constitucional da igualdade. Admitida a desigualdade, a representatividade obtida pela consideração da População Economicamente Ativa - PEA - tem relevância, não só para a compreensão sociológica e econômica, mas também para compreensão e aceitabilidade jurídica. Uma questão a ser considerada ainda no confronto dos mecanismos de ocupação das vagas no mercado de trabalho diz respeito à não exigência nos cargos e empregos públicos, ocupados mediante certame público, do esperado reflexo da repartição social no estrato de empregados. Por que concluir, então, que na iniciativa privada, onde a contratação é livre, seria obrigatório o espelho social? Primeiro, há uma distinção básica. Um é emprego público, custeado pela sociedade e disponível a todos os cidadãos; o outro é emprego privado, sujeito aos interesses do empregador. Aquele está sujeito à dinâmica do direito público, das políticas legislativas e governamentais. Este depende exclusivamente da vontade e do comprometimento do empregador, cujo poder potestativo, ainda que ao amparo do regime liberal-capitalista, registre-se, não é absoluto. No mínimo, ele está obrigado a observar a Constituição do país. Segundo fator. Quem contrata o servidor público é o Estado, ente impessoal, desvinculado de um dos maiores apelos da sociedade eletrônica: a imagem. Os agentes do Estado possuem menos instrumento para exercerem seu lado discriminatório pessoal, ao contrário das instituições privadas, que, induvidosamente, adotam práticas dissimuladas de rejeição dos candidatos a emprego que não se enquadram no perfil "jovem", "moderno", "dinâmico", "caucasiano" de empresa. Terceiro fator. A seleção dos candidatos não se dá de forma apenas objetiva, como sói acontecer com a maioria dos concursos públicos. Há análise de currículos (com fotografias e demais dados pessoais); há entrevistas, etc., em suma, há contato pessoal antes da contratação, o que não ocorre no concurso público, favorecendo assim o exercício de práticas discriminatórias. Salienta a decisão recorrida que "não é possível vislumbrar a discriminação efetiva por parte da empresa baseada na mera premissa estatística, tanto mais quando generalizante, sem descrever os grupos específicos segundo as exigências para as diversas funções ocupadas no âmbito empresarial." A discriminação salarial das mulheres e dos negros (homens e mulheres) não é um "privilégio" brasileiro, é uma chaga mundial, sendo poucos os países em que essa disparidade é quase inexistente e, obviamente, ela não se dá às claras, em especial diante da imputação criminal desta conduta; ela ocorre na surdina, nos entremeios das práticas administrativas empresariais. Assim considerando, somente seria possível o Judiciário analisar a questão da discriminação a partir de casos individuais para concluir pela existência ou não de discriminação na admissão e no acesso aos cargos de direção? Parece-me que a resposta é negativa. Ora, os dados estatísticos mostram o insignificante acesso da população pobre e negra ao ensino superior brasileiro que, em tese, propiciaria melhores condições de acesso ao emprego. Esta situação está demonstrada estatística e especificamente em relação ao reclamado, sendo totalmente incompatível com a idéia de igualdade, justiça e democracia. A DISCRIMINAÇÃO AUTORIZADA PELA CONVENÇÃO 111 DA OIT O artigo 1º da Convenção 111 da OIT, da qual o Brasil é signatário, repudia a discriminação, mas admite, em seu item 2, que "as distinções, exclusões e preferências fundadas em qualificações exigidas para determinado emprego não são consideradas como discriminação.". Os intérpretes defensores da "meritocracia", paradoxalmente, interpretam este item de forma a esvaziar o disposto no caput. Ora, todo e qualquer cargo exige algum tipo de qualificação. Este tipo de argumento justifica toda e qualquer discriminação na ocupação dos cargos de chefia, por exemplo. Basta dizer que esta ou aquela nomeação decorreu, no caso dos bancários, de "anos de experiência"; "exercícios anteriores de cargos de chefia", etc, para justificar a preferência por trabalhadores do sexo masculino em detrimento das mulheres. Todavia, neste tipo de escolha podem estar implícitos os mais variados tipos de preconceitos contra as mulheres, desde biológicos - a gestação; a maternidade, a tensão pré-menstrual, o determinismo biológico (diferenças sexuais decorrentes do processo evolutivo humano) -, até o preconceito e o "machismo" masculino puro e simples. Induvidosamente, as mulheres arcam com o desafio extra de equilibrar sua vida familiar e doméstica com suas metas de carreira, um peso que costuma ser menor para os homens do que para as mulheres. Informa a edição nº 14 da Revista Época, de 24.8.1998, que àquele ano, pesquisa realizada pela Escola Nacional de Administração Pública quantificou a discriminação feminina, detectando que dentre os funcionários da administração pública federal, 44% eram mulheres, ocupando 234.118 postos de trabalho. No entanto, apenas 18 delas chegaram a funções elevadas na hierarquia do funcionalismo, recebendo salários de R$ 6.000,00 na categoria DAS 6. No contingente, 45,6% era o percentual de mulheres com menos de 45 anos, possuindo o Ministério da Justiça o menor índice de participação feminina - 15%. Registrou, ainda, a pesquisa: 2 mulheres são ministras do Tribunal Superior do Trabalho, não havendo mulheres no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal. Passados 8 anos, podemos dizer: alguma coisa mudou! Hoje temos 5 (cinco) ministras no STJ e 2 (duas) no STF. O TST continua estacionado com 2 (duas) ministras. Trata-se de uma quebra naquilo que JOAQUIM BARBOSA chama de "hierarquização oficiosa" - uma submanifestação da discriminação - de que ainda são vítimas as mulheres no aparelho judiciário brasileiro: não obstante constituírem quase a metade do contingente total de juízes do país, elas exercem suas funções majoritariamente em primeira instância. Aliás, como salienta o próprio recorrente nas suas razões de defesa, o Ministério Público do Trabalho registra, de 1941 até nossos dias, apenas agora o acesso da primeira mulher à condição de chefia daquela instituição, na figura da ilustre Procuradora Sandra Lia Simón. Ainda que concorde com a tese de que a distinção fundada em qualquer motivo é uma "escolha motivada", não dispensando a vontade de discriminar, seja sob o aspecto positivo (da qualificação especializada) ou negativo (discriminação stricto sensu), entendo que a discriminação vedada pela Convenção não está restrita à discriminação consciente. Conforme demonstrada alhures, a discriminação mais eficaz é a discriminação inconsciente ou não- intencional, decorrente não de um propósito explícito ou implícito de exclusão de determinado grupo, mas sim da indiferença e postura passiva dos entes públicos ou privados em face de grupos sociais marginalizados, que são deixados ao relento por uma identificação errônea do conceito de igualdade material com a igualdade formal. A ausência de implementação de políticas públicas ou privadas capazes de reverter o quadro de exclusão de oportunidades leva a uma aceitação natural das desigualdades, imune inclusive à sua percepção como "discriminação inconsciente", reforçando o exercício de um poder simbólico pelos agentes de exclusão. Em regra, esta discriminação não assume um caráter explícito ou facilmente identificável pelo próprio que impõe a exclusão. É possível, inclusive, ocorrer discriminação inconsciente até mesmo na aplicação do direito. Embora a norma não contenha um elemento discriminatório, por ocasião de sua aplicação revelam- se resultados disparatados que apontam o desfavorecimento desarazoado de um grupo em favor de outros. Doutro modo, a própria lei pode trazer subliminarmente, sob o pálio de um critério aparentemente neutro, um propósito discriminatório. Por assim ser, pode-se dizer que todos os indivíduos sociais, em algum momento, praticam atos discriminatórios, em graus variados, em relação a outros. Daí iniciar a norma internacional - Convenção 111 da OIT - pelo vocábulo "toda" - no sentido de "qualquer" - discriminação é repudiada. O propósito desta norma está bem definido no artigo 3º, IV, da Constituição Federal que estabelece como objetivo fundamental da República "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação". Para os estudiosos da ação afirmativa, este é um conceito que inclui diferentes tipos de estratégias e práticas destinadas ao objetivo de buscar resolver problemas históricos e atuais das sociedades em relação aos diversos tipos de discriminação. Além de considerar os fatores que impedem a ascensão social de determinados grupos, elas também consideram a complexa rede de motivações explícita ou implicitamente preconceituosas. Um destes instrumento é a definição de metas, assim definidas como um padrão desejado pelo qual se mede o progresso das práticas para eliminação/diminuição da discriminação. Ao contrário do que apregoam os opositores, política de ação afirmativa não exige, necessariamente, o estabelecimento de vagas (cotas) a serem necessariamente preenchidas pelos grupos beneficiados. Objetivam as metas a estimular as empresas a buscarem pessoas de grupos discriminados (étnicos, raciais, deficientes físicos, gênero), seja para compor seus quadros, seja para fins de promoção ou qualificação profissional. Data venia dos entendimentos contrários, metas e cotas são conceitos diversos, revelando-se as cotas mero instrumento que possibilita o atingimento da meta principal: no caso, diminuir a distância entre negros e brancos, entre homens e mulheres, entre jovens e idosos na contratação e na permanência nos empregos. Neste aspecto, a acionamento do Judiciário para que as entidades públicas e privadas adotem medidas para a diminuição da discriminação reveste-se do caráter de ação afirmativa. Esta ações não implicam exigir das empresas que adotem "cotas" para esta ou aquela raça, ao menos por falta de lei que as obrigue a tanto. Exige, isto sim, a demonstração do engajamento na criação de formas de acesso ao emprego e ascensão profissional para as pessoas dos grupos não identificados com aqueles tradicionalmente hegemônicos em cargos hierarquicamente superiores e em determinadas funções geralmente mais qualificadas e melhor remuneradas, porquanto não são estes detentores de competência exclusiva. Os defensores das ações afirmativas não deixam de observar a necessária cautela para que não ocorram, a partir delas, novas discriminações, agora em desfavor das maiorias, em razão da perda de espaço para os grupos beneficiados pela aplicação do princípio isonômico não formal do Direito. Para viabilizar as políticas afirmativas sem incorrer neste novo equívoco, os Estados que as adotaram primam pela fixação de percentuais mínimos garantidores da presença dos grupos discriminados, porquanto o objetivo é romper os preconceitos contra eles ou ao menos propiciar as condições para sua superação, ainda que em face de convivência juridicamente forçada. Esta reserva mínima adotada por entidades públicas ou privadas não tem o condão, no dizer destes estudiosos, de impedir a livre disputa da maioria às vagas nas escolas, nos empregos e demais áreas de interesse da sociedade, garantido-se assim o exercício das liberdades individuais e coletivas próprias da sociedade democrática, inexistindo risco à meritocracia como sistema. DAS PROVAS Realizado o exame das premissas que sustentariam a discriminação racial, de gênero e de idade no Brasil, concluindo-se pela existência dos atos discriminatórios e considerando a dimensão do princípio da igualdade e seus desdobramentos nas ações afirmativas, assim como a necessidade de aplicação de normas de processo coletivo na resolução da questão posta em juízo, passo ao exame do conjunto probatório. Por sua relevância ao tema em debate, permito-me fazer referência às fls. 435 dos autos do processo TRT-RO 00930-2005-016-10-00-7, também de minha relatoria e em que contendem o Ministério Público e o Banco Bradesco. Embora não presente nestes autos, àquela folha esta anexada reportagem jornalística, portanto de domínio público - a página B4 do Jornal Folha de São Paulo, de 25 de setembro de 2005 -, narrando a pesquisa feita pelo IBGE e ilustrando o caso de Patrícia Dias, mulher negra de 33 anos, graduada em Administração pela PUC-Rio, com MBA em marketing pela mesma universidade e fluência em cinco idiomas, que só conseguiu emprego como vendedora. Narra o jornal a informação prestada por Gustavo Fagundes, diretor comercial da BRASIF, distribuidora da MAC - empresa canadense - no Brasil, que a empresa tem preocupação no processo seletivo de ter vendedores que representem todos os sexos, raças e idades. "Não temos nenhuma cota, mas procuramos ter um grupo de vendedores que represente a diversidade da população", diz. Conclui a reportagem que há empresas que ainda são mais ativas na busca da diversidade racial. É o caso da HP do Brasil, que iniciou um programa com meta de ter 5% de negros e deficientes em seus quadros. Políticas semelhantes foram adotadas também pela IBM, BANCO REAL, DUPONT e CAMISARIA COLOMBO. É esta a política que cobram o Ministério Público e o Sindicato dos Bancários da empresa ré, o HSBC Bank Brasil - Banco Múltiplo. Cobram com base na sua responsabilidade social a adoção de ações afirmativas que diminuam as discriminações nas várias etapas da relação de emprego. Aliás, conforme salienta o Ministério Público e não refuta o recorrido, cobra-se do reclamado a mesma política de valorização das diferenças adotada na matriz européia. Trata-se da discriminação institucional inconsciente - procedimentos e práticas arraigadas nas instituições que operam dentro e fora do mercado de trabalho, que reproduzem e reforçam esta forma sutil de discriminação (OIT). As políticas afirmativas das empresas supra mencionadas alinham-se ao entendimento da OIT de que são essas mesmas instituições que podem e devem romper o ciclo de reprodução da discriminação. Daí porque se mostra válido o argumento apresentado pelo recorrente embasado na responsabilidade social do reclamado. Aliás, não só do recorrente, mas de todas as empresas nacionais, especialmente as de grande porte e de maior alcance social. Demonstra o reclamante pelo gráfico de fls. 23 que apenas 22% da população bancária brasileira é composta por negros, estando 65% deste percentual ocupados em manutenção e conservação de edifícios e apenas 6,5% ocupam a função de escriturário de contabilidade, cargo típico da carreira bancária. Da mesma forma, mais da metade dos contínuos, garçons, "barmen" e copeiros dos bancos são negros, enquanto apenas 13,7% são caixas de banco e operadores de câmbio e 15,9% são gerentes de operações ou apoio destes mesmos bancos. O reclamado opôs-se a estes dados. Especificamente em relação ao HSBC, o autor demonstra no gráfico 28, às fls. 28, que o reclamado, com rede de atendimento de em torno de 10 (dez) agências no Distrito Federal, possui em seus quadros 55,6% de trabalhadores do sexo masculino e 44,4% do sexo feminino. Deste percentual, apenas 23,7% é composta por trabalhadores da raça negra, estando os outros 76,3% ocupados por trabalhadores da raça branca. Se a prova estatística pode adquirir maior capacidade de flutuação quando se toma por base o número de agências de todo o país, é difícil usar este argumento para um universo tão pequeno de agências. Ainda que se dispense o uso dos índices da População Economicamente Ativa (PEA) do Distrito Federal para comparar com o número de trabalhadores negros do HSBC no Distrito Federal, o gráfico específico demonstra, por um lado paridade razoável na contratação de gênero e, incontestavelmente, a disparidade na contratação de pessoas da raça negra. Para tanto não é necessário grandes esforços matemáticos. Também se mostra evidente a disparidade quando comparada a realidade das mulheres negras, limitadas a um percentual de apenas 10,8% do universo de trabalhadores do banco (fls. 30). O reclamado não desconstitui estes dados em sua defesa e nem poderia, pois foram fornecidos ao Ministério Público pelo próprio banco (gráficos 11 e 13, fls. 28 e 30). Confrontados os dados com o indicativo populacional do Distrito Federal fica bastante clara a disparidade entre o percentual contratado e o quantum de mão-de- obra deste grupo social disponível no mercado de trabalho. Também no que se refere à ascensão profissional, o reclamado forneceu os dados estatísticos apresentados no gráfico nº 15 (fls. 32). Aqui já se vislumbra uma perspectiva, se não ideal, mais animadora sob o enfoque do gênero, posto que demonstra a ocupação equilibrada dos cargos de chefia - 60,6% pelas mulheres e 39,4% pelos homens. No quesito raça, porém, a disparidade retornas, com 46,5% dos cargos ocupados por mulheres brancas e apenas 14,1% por mulheres negras. Esta diferença se acentua na comparação entre homens brancos e negros em função de chefia - 33,8% a míseros 5,6%. A discriminação por idade evidencia-se cabalmente no gráfico estatístico nº 21, às fls. 38. Dentre os 236 (duzentos e trinta e seis) funcionários do banco, 93,5% possuem idade inferior a 40 anos e apenas 6,5% idade acima deste patamar. Quando analisada a faixa etária do grupo majoritário, a "jovialidade" do quadro do reclamado também é impressionante: 58,6% têm menos de 30 anos de idade e 41,4%, idade entre 30 e 40 anos. É fato público e notório que a profissão de bancário foi uma das que mais sofreu com a mecanização e informatização dos serviços, perdendo milhares de postos de trabalho no país todo. Conseqüentemente, o número de profissionais especializados e com experiência nesta área não pode deixar de ser significativo, especialmente na faixa etária superior a 40 anos. Contudo, apesar do contingente de ex-bancários em condições de continuarem a atuar na área e do elevado nível de desemprego no país, soa pouco crível que o Banco não receba currículos de profissionais com idade superior a 40 anos interessados em serem nomeados para os cargos. A disparidade estatística não deixa dúvidas da existência de discriminação na contratação de trabalhadores com idade acima de 40 anos. Se questionamentos cabem quanto ao uso da estatística como instrumento de prova, eles não procedem quanto a dados matemáticos irrefutáveis (até porque se trata de ciência exata). Assim compreendido, às fls. 120/126 estão os dados numéricos apresentados pelo HSBC ao Ministério Público contendo a relação dos contratados em todas as agências do Distrito Federal, especificados por grau de instrução (escolaridade ou anos de estudo); faixas etárias (grupos de idade); tipo de ocupação (conforme Classificação Brasileira de Ocupação - CBO); rendimento nominal por tipo de ocupação (CBO); rendimento mensal médio por grupos de gênero e raça. Tratam-se, pois, de dados concretos a partir dos quais foram elaborados os índices estatísticos. Ou seja, não se trata aqui de uma amostragem da população bancária do HSBC, mas de sua totalidade no Distrito Federal. Em razão da longa fundamentação supra exposta, concluo que o reclamado pratica a discriminação, ainda que inconsciente nas suas relações de trabalho, tanto pré- contratuais (admissão) quanto contratuais (ascensão profissional e remuneração), assim como na permanência ou rescisão contratual (opção pelos jovens), conduta esta que merece ser reparada a partir de políticas internas para a evitação do quadro discriminatório comprovado nos autos. Rechaçada a proposta do Ministério Público de ajuste de conduta no sentido, não de estabelecer cotas, mas de comprometimento com o reexame a médio prazo dos critérios adotados pela instituição bancária, resta ao Poder Judiciário preservar os direitos e garantias constitucionais impondo ao reclamado a medida coercitiva requerida. DAS OBRIGAÇÕES DE FAZER E NÃO FAZER. A INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL COLETIVO. O autor requer a condenação do réu no pagamento de R$30.000.000,00 por dano moral coletivo. Consoante se infere na doutrina, o dano moral coletivo consiste na injusta lesão da esfera moral de uma dada comunidade, que tem seu círculo de valores coletivos atingido por uma conduta antijurídica. "Quando se fala em dano moral coletivo, está-se fazendo menção ao fato de que o patrimônio valorativo de uma certa comunidade (maior ou menor), idealmente considerada, foi agredido de maneira absolutamente injustificável do ponto de vista jurídico: quer isso dizer, em última instância, que se feriu a própria cultura, em seu aspecto material" (Carlos Alberto Bittar Filho). Ocorrido o dano moral coletivo impõe-se ao causador do dano, pessoa física ou jurídica, o dever de reparação, pecuniária ou não, independentemente de culpa, responsabilizando-se o agente pelo simples fato da violação (CF, art. 5º, V e X). Analisada a questão e suas variáveis, conclui-se pela existência de discriminação na contratação (gênero, raça e idade), na ascensão aos cargos e na remuneração. Discriminação Inconsciente. Assim como a maioria da sociedade brasileira - instituições, empresas e indivíduos -, o réu adota políticas que trazem no seu bojo, de forma inconsciente, a discriminação, prolongando a sobrevivência desta chaga social que nos acompanha desde o Brasil Colônia. Sob o enfoque das ações afirmativas, o procedimento do réu é incompatível com os ditames da Constituição Brasileira e com a Convenção 111 da OIT. Outrossim, exige-se do réu, comprometimento social com a diminuição das desigualdades e extirpação de toda forma de discriminação, consciente ou inconsciente, para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Merece, portanto, ser condenado. Assim definido, chega-se ao momento da estipulação dos valores desta condenação. A reparação de dano moral tem a função de compensar o dano sofrido pelo indivíduo ou grupo lesado, de atribuir uma sanção ao lesante e de prevenir a prática de atos que atinjam bens essenciais e inerentes destes indivíduos ou grupos repercutindo socialmente. Mas o que é valor? Qual o seu significado? Reconhecer um certo aspecto das coisas como valor consiste em levá-lo em conta na tomada de decisões ou, em outras palavras, em estar inclinado a usá-lo como elemento a ter em consideração na escolha e na orientação que damos a nós próprios e aos outros. Quem vê os valores como ‘subjetivos' considera essa situação em termos de uma posição pessoal, adotada como uma espécie de escolha e imune ao argumento racional (embora, muitas vezes, e curiosamente, merecedora de um certo tipo de reverência e de respeito). Os que concebem os valores como algo ‘objetivo' supõem que por alguma razão - exigências da racionalidade, da natureza humana, de Deus ou de outra autoridade - a escolha pode ser orientada e corrigida a partir de um ponto de vista independente. Valores podem ser usados para classificar virtualmente qualquer coisa, incluindo abstrações - onde a lógica fica acima da intuição -, objetos, experiência (amar e perder acima de nunca amar), comportamento, características pessoais e estados de ser. Em todos os casos, o que torna a idéia um valor é seu uso para categorizar coisas em relação a outras, e não compará-las como sendo apenas semelhantes ou diferentes. Feitas estas considerações filosóficas e sociológicas, impende questionar qual o valor que deve ser atribuído ao dano moral. O artigo 5º, inciso V, da Constituição Federal de 1988, cogita de um critério de proporcionalidade entre a reparação e o agravo sofrido pela vítima. A legislação infra-constitucional, contudo, é omissa no que pertine à definição de critérios mais objetivos para a fixação de um patamar mínimo e máximo na mensuração do dano moral. A doutrina aponta diretrizes para a fixação do quantum indenizatório, dentre elas: a)a extensão do dano; b) o porte econômico do agente; c) o porte econômico da vítima; d) o grau de reprovabilidade da conduta; e e) o grau de culpabilidade do agente. A jurisprudência no âmbito trabalhista tem oscilado - ora arbitrando valores irrisórios, ora estipulando valores elevados. A justificativa para a fixação de alto valor monetário tem origem no Direito Comparado, especificamente nos países da common law que muito tem contribuído para a implementação efetiva de um sistema de pleno respeito aos direitos da personalidade humana, uma vez que as indenizações refletem expressivamente no patrimônio do ofensor e advertem, - tanto a este como à sociedade, de que o desrespeito a esses direitos é repelido duramente. Por outro lado, a principal razão para a fixação de valores modestos tem sido evitar o "enriquecimento ilícito" da vítima. Para tanto costuma-se usar como referência para a fixação dos valores da indenização o "porte econômico" da vítima. Eta magistrada alinha-se à primeira corrente, porém, fortemente balizada pelo princípio da razoabilidade. De outra forma, não há como atrelar indenização derivada de ato ilícito a enriquecimento ilícito (artigos 884 a 886 do Código Civil). Este somente se verifica quando não há justa causa ou a justa causa que o justificava deixou de existir. Decididamente, o enriquecimento, se é que assim se pode qualificar, se deve em face da ilicitude do ato e do dano. Segundo o disposto no art. 1553 do Código Civil de 1916, a compensação era fixada por arbitramento do juiz, sem limites predeterminados, ou seja, era tarefa diretamente ligada à discricionariedade do julgador. O Código Civil de 2002 não repetiu tal dispositivo, tampouco criou critérios claros para a indenização nestas hipóteses (arts.944 e 954). A razoabilidade enquanto critério para a mensuração do dano moral possui o significado especial de estabelecimento de regras de comedimento que resultem na conclusão pela conciliação entre o campo de interesse do indivíduo ou grupo (lesado) e o campo de interesse do lesante, de tal maneira que o dano moral encontre o seu fundamento na síntese formada pela necessidade de preservação do equilíbrio das relações sociais (essencialmente dinâmicas), e pelo anseio de justiça. Assim, o julgador, utilizando-se da razoabilidade, deve considerar a gravidade do dano causado pelo empregador e a intensidade do sofrimento infligido à vítima, de modo que a indenização se constitua em compensação ao lesado e sirva de desestímulo ao agente causador do dano. Esta razoabilidade, porém, não deve ser um manto sobre decisões que se consubstanciem em novas lesões à honra dos jurisdicionados, como sói acontecer quando grupos econômicos são condenados ao pagamento de valores individuais irrisórios e lesões são indenizadas em valores maiores aos mais ricos, como se a dor destes fosse menos doída do que a dos pobres. No caso, o pedido de indenização é de R$30.000.000,00. Contudo, não é a condenação neste elevado valor que irá redefinir a política dos bancos que atuam no território brasileiro ou qualquer outra empresa. O montante requerido revela-se exorbitante para uma ação inédita que objetiva muito mais chamar a atenção para a necessidade de reeducação das instituições públicas e privadas para o discriminação social presente na sociedade brasileira, e, em especial, na categoria profissional dos bancários. O que desejam o Ministério Público e os grupos por ele representados, assim como toda a sociedade brasileira, e por razões de direito, com amparo do Poder Judiciário, é uma readequação do Banco nos aspectos referentes aos seus empregados, em todos os seus aspectos, evitando políticas discriminatórias, ainda que inconscientes, a partir do processo de seleção e em todas as fases das relações de trabalho estabelecidas. Registre-se, consoante declaração feita ao Ministério Público do Trabalho pela representante do Banco haver, de antemão "...boa vontade em relação ao tema de inserção de negros e mulheres no mercado de trabalho em igualdade de condições." (fls. 157). A condenação deve se propor muito mais a uma sinalização para o réu da necessidade de alterações na sua política de pessoal de forma a cumprir também sua responsabilidade social pela diminuição da desigualdade entre os cidadãos brasileiros que muito contribuem para seus fantásticos lucros. Tais razões impedem o deferimento do pedido de cessamento imediato da discriminação e da obrigação de se abster (não-fazer) de discriminar seus trabalhadores com base no sexo, na raça e na idade. Poder-se-ia fixar um prazo razoável para adequação da política de pessoal do reclamado. Todavia, não há pedido neste sentido. Considerados tais aspectos, assim como o porte econômico do lesado e o caráter didático da condenação que por certo terá reflexos sobre toda a comunidade bancária, fixo a condenação em R$3.000.000,00 (três milhões de reais), a ser revertido para o Fundo de Amparo ao Trabalhador - FAT." Acompanhei a eminente Juíza Relatora quanto ao relatório e à admissibilidade, contudo, apresentei divergência em relação ao mérito, a fim de manter inalterada a sentença de origem. Analisando a visão dos fatos narrados pelas partes, assim como das provas não vislumbro a alegada discriminação. A inicial é fartamente instruída com dados estatísticos, comparando a proporção dos grupos discriminados em relação à quantidade de indivíduos pertencentes a tais grupos, no quadro de empregados da Ré. A premissa, todavia, é enganosa. A discriminação revelada em dados estatísticos não determina a conduta ilícita atribuída à Reclamada. Ao contrário, com mais força e clareza, aponta a incompetência, a inoperância, e o fracasso dos programas sociais e educacionais adotados pelos últimos governos. Logo, os dados estatísticos abundantemente citados mostram sim que o Brasil é um país que segrega, e que ainda não conseguiu oferecer ao seu povo um modelo democrático minimamente justo e equilibrado. Essa discriminação evidenciada nas pesquisas, porém, não pode ser atribuída à Ré, pelo simples fato de apresentar seus quadros de empregados com números desiguais de homens brancos e negros, mulheres e idosos. O panorama da inegável discriminação tem causa e autores sociais e políticos muito mais importantes que a Reclamada. Assim, percebo que o ponto nevrálgico da questão ora tratada é identificar se o maior índice de ocupação formal de homens brancos revela tendência à segmentação do mercado de trabalho, ou na verdade mostra a triste diferença de oportunidades e a péssima qualidade da formação educacional e profissional proporcionada pelo Estado aos indivíduos de menor poder aquisitivo, onde, pelas óbvias razões históricas, se inserem com grande incidência os afro-descendentes? Parece-me mais verdadeira a segunda hipótese, que é claramente revelada pelas últimas ações chamadas "de inclusão" patrocinadas por governantes de diversas esferas da Federação, como por óbvio exemplo, o sistema de favorecimento no ingresso acadêmico a determinados grupos. De fato, ao criar o programa de cotas para os negros e índios nas universidades públicas, o Estado não está a admitir a existência de discriminação racial na admissão de alunos nessas instituições, mas simplesmente reconhecendo a sua incompetência na educação e formação dessas pessoas. A prevalecer a tese do Autor, tão singelamente enquadrada nos modelos matemáticos e estatísticos narrados, será inevitável a conclusão de que há discriminação racial não só em quase todas as empresas nacionais, como também nos orgãos públicos, em todas as esferas: municipais, estaduais e federal. Parece-me, com efeito, que o quadro de procuradores do MPT não reflete realidade diferente. Qual a proporção de negros e brancos? E de índios? De idosos e jovens? De mulheres e homens? Ora, resta claro, então, que não se pode imputar a uma empresa a prática da discriminação racial pela simples observância de incongruência na formação de seu quadro de empregados em relação à composição populacional do Estado, quando se sabe que este falha violentamente no respeito aos direitos e garantias fundamentais, e mais especificamente no tocante à formação educacional, negando semelhantes oportunidades de desenvolvimento aos cidadãos. Como bem apontado na sentença de origem, para a comprovação de discriminação, "há que se indagar se a empresa faz maiores exigências para a admissão de mulheres, negros e idosos que as que solicita dos homens, dos brancos e dos jovens a final contratados". De fato, a lição não poderia ser mais precisa. Se as exigências admissionais são as mesmas, então não se poderá falar em discriminação, ainda que o quadro de servidores não reflita proporcionalmente a composição da população. Apesar de volumoso, impõe-se constatar que o processo não contém evidências materiais capazes de comprovar, por parte da Ré, maiores dificuldades ou exigências para a contratação dos grupos tidos como discriminados pela inicial. Em conseqüência, não vejo como penalizar a empresa. Assim, acompanhei a Exma. Juíza Relatora quanto ao relatório, divergindo no mérito, a fim de manter inalterada a sentença de origem. Desse modo, neguei provimento ao recurso, sendo acompanhado pela maioria dos Juízes da Turma. CONCLUSÃO Pelo exposto, conheço dos recursos e, no mérito, nego-lhes provimento, nos termos da fundamentação.
  • CONCLUSÃO
  • Por tais fundamentos, ACORDAM os Juízes da Egrégia Primeira Turma do Tribunal Regional do Trabalho da Décima Região, em sessão realizada na data e nos termos contidos na respectiva certidão de julgamento, por unanimidade, aprovar o relatório, conhecer dos recursos e, no mérito, por maioria, negar-lhes provimento, nos termos do voto do Juiz Revisor.
    SAS, QUADRA 01, BLOCO D, PRAÇA DOS TRIBUNAIS SUPERIORES - 70097-900 TEL: (61)3348-1100

    2 comentários:

    1. ESTA DECISÃO DEVE SER LEVADA À COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS DA OEA.
      HUMBERTO ADAMI

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